quinta-feira, 24 de julho de 2025

O expresso das cinco horas


8

Novamente este óleo de lamparina!”, pensou Nika com raiva, andando de um lado para outro, no quarto. As vozes das visitas se aproximavam. A fuga foi descartada. No quarto havia duas camas, a de Voskoboinikov e a dele, de Nika. Pensando rápido, Nika se enfiou debaixo da segunda.
Ouvia como procuravam e chamavam por ele em outros quartos, admirando-se com o seu sumiço. Depois foram até o quarto dele.
O que fazer? — disse Vedeniapin. — Vá passear um pouco, Iúri, pode ser que depois encontremos o seu amigo, e então poderão brincar. — Durante algum tempo eles conversaram sobre as agitações universitárias em Petersburgo e Moscou, detendo Nika durante vinte minutos na emboscada humilhante e tola. Finalmente foram para o terraço. Nika abriu a janela devagarinho, pulou por ela e foi embora para o parque.
Hoje, ele se sentia estranho, e na noite anterior perdera o sono. Estava com treze anos e cansado de ser pequeno. Como não dormiu a noite inteira, ao amanhecer saiu de casa. O sol nascia e a terra do parque estava coberta pelas sombras compridas, molhadas de sereno e nodosas das árvores. A sombra não era preta, mas cinza-escuro, como feltro úmido. O perfume embriagador da manhã parecia exalar exatamente desta sombra umedecida na terra, com faixas de luz parecidas com dedos de menina.
De repente, uma corrente prateada de mercúrio, igual às gotas de sereno no capim, correu a alguns passos dele. Acorrente fluía, fluía, e a terra não a absorvia. Com um movimento brusco, a corrente saltou para o lado e sumiu. Era uma cobra-de-vidro. Nika estremeceu.
Ele era um menino estranho. Quando estava exaltado, conversava consigo mesmo em voz alta. Ele puxou à mãe na inclinação para os assuntos superiores e paradoxais.
Como é bom estar no mundo!”, pensava ele. “Mas por que sempre dói tanto? Deus, é claro, existe. Mas, se ele existe, então ele sou eu. Por exemplo, vou ordenar-lhe”, pensou, olhando para o álamo que tremulava todo, de baixo a cima (suas folhas molhadas e rutilantes pareciam coitadas de lata), “vou ordenar-lhe” — e superando insensatamente as suas forças ele murmurou, mas com toda a sua alma e com todo seu corpo e sangue desejou e pensou: “Pare!” e a árvore no mesmo instante tornou-se imóvel, obedientemente. Nika soltou uma gargalhada de alegria e correu a tomar banho de rio.
Seu pai, o terrorista Dementi Dudorov, cumpria pena de trabalhos forçados que substituíram, por indulto imperial, o enforcamento ao qual fora condenado. Sua mãe, uma princesa georgiana da família dos Eristov, era uma moça estabanada, ainda jovem e bonita, sempre entusiasmada com revoltas, rebeldes, teorias extremistas, artistas famosos e pobres coitados.
Ela adorava Nika e de seu nome, Innokenti, criava um monte de apelidos carinhosos inconcebíveis e bobos, como Inotchek ou Notchenka, e levou-o até Tiflis para mostrá-lo a seus parentes. Lá, o que mais o impressionou foi a árvore com patas, no pátio da casa onde ficaram hospedados. Era um gigante tropical desajeitado. Com suas folhas parecidas com orelhas de elefante, ela protegia o pátio do céu tórrido do sul. Nika não conseguia aceitar a idéia de que esta árvore era uma planta, e não um animal.
Era perigoso para o menino usar o terrível nome do pai. Ivan Ivanovitch, com a permissão de Nina Galaktionovna, queria solicitar à Sua Alteza Imperial atribuir a Nika o sobrenome da mãe.
Quando ele estava deitado embaixo da cama, reclamando da vida, entre outras coisas, pensava sobre isso. Quem é Voskoboinikov para se intrometer tanto? Eles vão ver só!
E esta Nádia! Se ela tem quinze anos, isso quer dizer que tem direito de arrebitar o nariz e conversar com ele como com um menininho? “Eu a odeio”, disse ele várias vezes em voz baixa. “Eu a matarei! Vou convidá-la para passear de barco e a afogarei.”
E mamãe, também... Enganou, é claro, a ele e Voskoboinikov quando partiu. Não está no Cáucaso, nada, mas pura e simplesmente desviou no primeiro entroncamento ferroviário para o norte e está calmamente em Petersburgo, junto com os estudantes, atirando na polícia. E ele tem que apodrecer vivo neste buraco estúpido? Ele vai enganar a todos. Afogará Nádia, deixará o ginásio e fugirá para a Sibéria para junto do pai, a fim de organizar o levante.
A margem do lago estava coberta de lírios-d'água. O barco cortou esta densidade, com um barulho seco. A água do lago surgia no meio do mato como o suco aparece no triângulo talhado na melancia.
O menino e a menina começaram a arrancar flores. Os dois agarraram o mesmo caule, que não quebrava e parecia uma borracha. O caule puxou os dois. Suas cabeças chocaram-se. O barco foi puxado para a margem com uma vara. Os caules se enroscavam e encurtavam, as flores brancas com o miolo claro, como gema com sangue, afundavam na água e emergiam com a água escorrendo delas.
Nadia e Nika continuavam a arrancar as flores, inclinando ainda mais o barco e quase deitados um ao lado do outro, na borda vazia.
Cansei de estudar — disse Nika. — Está na hora de começar a vida, receber salário, virar gente.
Eu queria tanto lhe pedir para me ensinar as equações de segundo grau. Sou tão fraca em álgebra que quase fiquei em segunda época.
Nika percebeu nestas palavras algumas alfinetadas. Certamente ela está colocando-o em seu devido lugar, lembrando que ele ainda é pequeno. Equações de segundo grau! E ele ainda nem cheirara a álgebra.
Sem deixar transparecer sua irritação, ele perguntou com indiferença fingida e no mesmo instante entendeu como era tolo:
Quando você crescer, vai casar com quem?
Oh, isso ainda está tão longe. Provavelmente com ninguém. Não pensei nisso ainda.
Não pense que isso me interessa tanto.
Então, por que está perguntando?
Você é boba.
Começaram a discutir. Nika se lembrou de sua misoginia matinal. Ele ameaçou Nádia de que se não parasse de dizer insolências, ele a afogaria.
Tente — disse Nádia. Ele agarrou-a pela cintura. Começaram a lutar. Perderam o equilíbrio e caíram na água.
Os dois sabiam nadar, mas os lírios os prendiam pelas mãos e pés e eles ainda não tinham conseguido tocar o fundo. Finalmente, atolando no limo, eles chegaram à margem. A água escorria como córregos dos seus sapatos e bolsos. Nika era o mais cansado.
Caso isso tivesse acontecido há pouco tempo, não antes da primavera deste ano, os dois, sentados ali molhados e encharcados, depois de uma travessia destas, estariam com certeza fazendo algazarra, discutindo ou então dando gargalhadas.
Mas agora estavam calados e mal respiravam, sufocados pelo absurdo do ocorrido. Nádia reclamava e se indignava calada. Nika estava com o corpo todo dolorido, parecia ter apanhado com um pedaço de pau nas pernas e nas mãos e quebrado as costelas.
Finalmente, como adulta e baixinho, Nádia proferiu: “Maluco!” e ele, da mesma forma adulta, disse: “Desculpe-me.”
Começaram a subir para casa, deixando um rastro molhado como dois barris de água. O caminho subia por uma trilha poeirenta, que fervilhava de cobras, perto do local onde Nika de manhã encontrara uma cobra-de-vidro.
Nika se lembrou da exaltação mágica da noite, do amanhecer e dos seus poderes matinais, quando ele, ao seu bel-prazer, mandava na natureza. O que ordenar-lhe agora?, pensou. O que ele mais desejava? Imaginou que o que ele mais gostaria que acontecesse novamente era cair no lago com Nádia. Pagaria caro agora, só para saber se isso iria ou não acontecer algum dia.

Boris Pasternak, em Doutor Jivago

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