[…]
A
aragem. Diadorim onde estivesse? Soube que ele parava em outro ponto,
em seu posto em praça. Sustentava, picando alvos a para a frente,
junto com o Fafafa, o Marruaz, Guima e Cavalcânti, na barra da
varanda. Todo lugar não era lugar? Não se podendo esbarrar, de
jeito nenhum, no arrebentar, nas manivelas da guerra. Aprendi os
momentos. Assim, assazmente, João Concliz tornava a vir, zelante,
com Alaripe, José Quitério e Rasga-em-Baixo. ― Espera! ― ele
mandou. Pelo que vinham também o Pitolô e o Moçambicão, puxando
uns couros de boi. Esses couros inteiros eram para a gente pregar lá
em riba, nas padieiras, ficarem dependurados de cortinado bambo, nos
vãos das janelas. Depois, o Pacamã-de-Presas mais o Conceiço,
socavando com ferramenta, a fito de abrir torneiras nas paredes ―
por onde buraco de se atirar. Aquela guerra ia durar a vida inteira?
O que eu atirava, ouvia menos. Mas o dos outros! assovios bravos, o
achispe, isto de ferro ― as balas apedrejadas. Eu e eu. Até meus
estalos, que a cada, no próprio do coração. A mira de enviar um
grão de morte acertado naquelas raras fumaças dansáveis. Assim é
que é, assim.
Ah!
E então, aí, no súbito aparecer, Zé Bebelo chegou, se encostou
quase em mim. ― Riobaldo, Tatarana, vem cá... ― ele falou, mais
baixo, meio grosso ― com o que era uma voz de combinação, não
era a voz de autoridade. A de ver, o que ele quisesse de mim? Para eu
passar avante na posição, me transpor para um lugar onde se matar e
morrer sem beiras, de maior marca? Andei e segui, presente que, com
Zé Bebelo, tudo carecia mais era de ser depressa. Mesmo me levou.
Mas me levou foi para um outro cômodo. Ali era um quarto, pequeno,
sem cama nenhuma, o que se via era uma mesa. Mesa de madeira
vermelha, respeitável, cheirosa. Desentendi. Dentro daquele quarto,
como que não entrava a guerra. Mas o pensar de Zé Bebelo ―
ansiado eu sabia ― era coisa que estralejava, inventante e forte.
― Mais
antes larga o rifle aí, deposita... ― ele falou. O depor meu
rifle? Pois botei, em cima da mesa, esquinado de través, botei com o
todo cuidado. Ali se tinha lápis e papel. ― Senta, mano... ―
ele, pois ele. Ofereceu a cadeira, cadeira alta, de pau, com recosto.
Se era para sentar, assentei, em beira de mesa. Zé Bebelo de
revólver pronto na mão, mas que não contra mim ― o revólver era
o comando, o constante revirar e remexer da guerra. E ele nem me
olhou, e me disse:
― Escreve...
Caí
num pasmo. Escrever, numa hora daquelas? O que ele explicado mandou,
eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil do que entender.
Era? Não sou cão, não sou coisa. Antes isto, que sei, para se ter
ódio da vida: que força a gente a ser filho-pequeno de estranhos...
Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar... ― me
lembrei dessas palavras. Mas palavras que, em outra ocasião, quem
tinha falado era Zé Bebelo, mesmo.
― Escreve...
O
zunzum da guerra acontecendo era que me estorvava de direito pensar.
E Zé Bebelo não estava ali não era para isso, para pensar por
todos? Como que fosse, o papel, para o que carecia, era pouco. Tinham
de caçar mais papel, qualquer, por ali devia de ter. Enquanto isso,
eu cumprisse de escrever, na seca mão da necessidade.
E
ouvimos praga de dór.
― Ao
que foi? Uns gemidos, despautados, de sorrógo. ― Companheiro
ofendido. O Leocádio... ― ouvimos. Sem-modos se precipitado, Zé
Bebelo avançou para ali, para ver. Sem determinação tomada de ir,
eu também já estava lá, atrás dele. O homem, o primeiro ferido,
caído sentado, as pernas estendidas para diante, as costas amparadas
na parede; com a mão esquerda era que ele suportava sua testa, mas
com a direita ainda segurava o rifle, que o asno rifle ele não tinha
largado. Conforme Raymundo Lé já tinha exigido, alguns vinham da
cozinha, trazendo as latas d água. Raymundo Lé lavava a cara do
homem ensanguentada, do Leocádio. Esse estava atirado pelas
queixadas, má bala que lhe partira o ôsso, o vermelho brabotava e
pingava. ― Meu filho, tu aguenta ainda brigar? ― Zé Bebelo quis
saber. O Leocádio, que fez careta, garantiu que podia! ― O que
posso. Em nome de Deus e de meu São Sebastião guerreiro, o que
posso! Sempre sendo a careta sem gracejo; pois falar era o que para
ele custava e maltratava. ― E da Lei... E da Lei, também... Ah,
então, vamos, faz vingança, menino, faz vingança! ― Zé Bebelo
aforçurou. Semelhante só botasse apreço nos fatos por resultar. Zé
Bebelo se endemoninhava.
Segurou
meu braço, suscitado de se voltar para a mesa, para se escrever,
amanuense. Pelo discorrer, revólver na mão, às vezes achei, em
minha fantasia, que ele estava me ameaçando. ― Ei, ai, vamos ver.
Que tenho esquadrão reiúno! esses é que vão vir me dar
retaguarda! ― ele falasse. Eu escrevesse, com mais urgência. Os
bilhetes ― missiva para o senhor oficial comandante das forças
militares, outro para o excelentíssimo juiz da comarca de São
Francisco, outro para o presidente-da-câmara de Vila Risonha, outro
para o promotor. ― Apresta. A massa do volume deles também dá
valor... ― ele regendo. Acertei. Escrevi. O teor era aquilo mesmo,
o simples! que, se os soldados no soflagrante viessem, de rota
abatida, sem esperdiçar minuto, então aqui na Fazenda dos Tucanos
pegavam caça grossa, reunida ― de lobo, jaguatirica e onça ― de
toda a jagunçada maior reinante no vezvez desses gerais sertões. A
rasa, à justa, e cerrar com fecho formal: Ordem e Progresso, viva a
Paz e a Constituição da Lei! Assinado: José Rebêlo Adro
Antunes, cidadão e candidato.
No
pique dum momento, perdi e achei minha ideia, e esbarrei. A em pé,
agora formada, eu conseguia a alumiação daquela desconfiança.
Assim. Em que maldei, foi: aquilo não seria traição? Rasteiro,
tive que olhei Zé Bebelo, no grude dos olhos. Daí, tão claro e
aligeirado pensei ― os prefácios. Aquele tinha sido homem pago
estipendiado pelo Governo, agora os soldados do Governo com ele se
encontravam. E nós, todos? Diadorim e eu, os tristes e alegres
sofrimentos da gente, a célebre morte de Medeiro Vaz, a vingança em
nome de Joca Ramiro? Nem eu sabia ao certo, depois, no correr de
tantos mêses, o extrato da vida de Zé Bebelo, o que ele tinha
realmente feito, somenos se cumprida a viagem de ida até em Goiás.
Soubesse, o pior, era que ele, por ofício e por espécie, não podia
esbarrar de pensar, não podia esbarrar de pensar inventado para
adiante, sem repouso, sempre mais. A gente estava por conta dele ―
e sem repouso nenhum também, nenhum ― o portanto. E ele tinha
trazido o bando cá para perto do São Francisco, tinha querido
falhar os três dias naquela fazenda atacável. Quem sabe, então, o
recado para os soldados virem, ele mesmo já não teria enviado,
desde tempos? Ideia, essa. Arre de espanto ― ah, como quando onça
de-lado pula, quando a canoa revira, quando cobra chicoteia. Désse
de ser? Ao caminho dos infernos ― para prazo! Aí , careci de
querer a calma. O tiroteio já redobrava. Ouvi a guerra.
Decerto
eu estava exagerado. Antes Zé Bebelo havendo de ser mesmo o chefe
para a hora, safado capaz. Nem se desprazia. ― Oi, xó! Pra esses,
munição não falta?... ― ele escarnecendo disse, quando as
descargas vieram em salva mais forte ― o fiufíu e os papocos. Ah
as balas que partiam telhas e que as paredes todas recebiam. Cacos
caindo, do alto. ― Te apressa, Tatarana, que nós dois temos também
de atirar! Alegre dito. Na janela, ali, tinham pendurado igualmente
um daqueles couros de boi! bala dava, zaque-zaque, empurrando o
couro, daí perdia a força e baldava no chão. A cada bala, o couro
se fastava, brando, no ter o choque, balangava e voltava no lugar, só
com mossa feita, sem se rasgar. Assim ele amortecia as todas, para
isso era que o couro servia. Traição? ― eu não queria pensar. Eu
já tinha preenchido três cartas. Não é do tutuco nem do zumbiz
das balas, o que daquele dia em minha cabeça não me esqueço; mas
do bater do couro preto, adejante, que sempre duro e mole no ar se
repetia.
Advindo
que algum me trouxe mais papel, achado por ali, nos quartos, em
remexidas gavetas. Só coisa escrita já, de tinta firme; mas a gente
podendo aproveitar o espaço em baixo, ou a banda de trás, reverso
dita. Que era que estava escrito nos papéis tão velhos? Um favor de
carta, de tempos idos, num vigente fevereiro, 11, quando ainda se
tinha Imperador, no nome dele com respeito se falava. E noticiando
chegada em poder, de remessa de ferramenta, remédios, algodão
trançado tinto. A fatura de negócios com escravos, compra, os
recibos, por Nicolau Serapião da Rocha. Outras cartas... ―
Escreve, filho, escreve, ligeiro... A traição, então? Altamente eu
escutava os gritos dos companheiros, xingatório, no meio da desbraga
do quanto combate, na torração. Aqui mesmo, esgueirados para a
janela, o Duzentos e o Rasga-em-Baixo agora ombreavam armas, seu
vez-em-quando a ponto atiravam. Assim como não pude, eu esbarrei,
outra vez ― e encarei Zé Bebelo sem final.
― Que
é? Que é lá?! ― ele me perguntou. Devia de ter me deduzido, dos
meus olhos, mesmo melhor do que o que eu sabia de mim.
― A
pois... Por que é que o senhor não se assina, ao pé: Zé
BebeloVaz Ramiro... como o senhor outrora mesmo declarou?... ―
eu cacei contra, reperguntando.
Ato
visível, que ele esteve pego, no usual de seu modo, assim, de se
espantar no ar. Conheci. As vezes, também, um atraiçóa, sem nem
saber o que é que está produzindo ― às falsas hajas! Mas ele não
tinha surpreendido a verdade do meu indagar, a expedição de minha
dúvida. Conforme, prazido consigo, recachou, e me disse, me
engambelando:
― Ah,
hã -an... Também pensei. Tanto que pensei; mas, não se pode...
Muito alta e sincera é a devoção, mas o exato das praxes impõe é
outras coisas: impõe é o duro legal...
Aí,
fui escrevendo. Simples, fui, porque fui; ah, porque a vida é
miserável. A letra saía tremida, no demoroso. Meu outro braço
também recomeçava a doer, quáse que. Traição ... ― sem querer
eu fui lançando no papel a palavra; mas risquei. Uma bala no couro
assoviou soco, outra entrou atrás, entrou com o couro levantado, deu
na parede, defronte, ricocheteou e veio cair, quente, perto da gente.
Ali na parede, tinha um chifre de boi de se dependurar roupa; até
armador de rede era de chifre de boi, naquela Casa. Sumamente, eu
esperei o pispissíu de alguma outra bala, eu queira. Soubesse por
que? O pensar caladíssimo de Zé Bebelo me perturbava.
Mas
ele disse: ― Que é que é? ― se debruçando ― Que erro que
foi? Não viu, porque eu já tinha riscado. Mas, então, ele muito
falou. Ia explicando. De noite, no escuro feito, ia mandar dois
cabras, dos mais espertos viajeiros, para rastejarem por ali, furando
o cerco, cada um levava ruma igual daquelas cartas. Assim, Deus azado
ajudasse, e eles ou ao menos um deles conseguisse, então era resumo
certo que a soldadesca se movimentava de vir. Apareciam, os
trapezavam, apropositavam, arrebentavam com os hermógenes!
― E
a gente? ― eu perguntei.
― Ae?
A gente? A ver, que você não me entendeu? A gente obra jeito de se
escapar, no cererê da confusão...
Antes,
tanto, que era muito difícil ― eu repostei.
― Ah,
sim, dificultoso é, meu filho. Mas pego, é o nosso recurso. Se não,
se outra, que saldo é que temos? ― e Zé Bebelo, do dito, sagaz se
rigozijava.
Então,
com respeito, eu disse que a gente podia experimentar de fazer isso
mesmo agora! furar uma saída, por entre os hermógenes, brigando e
matando. Eu disse isso. Mas tinha esquecido que estava era encostado
em Zé Bebelo, no questionar. Aí quem era que podia com a ideia
daquele homem, quem era que se sustentava? A foro, pois, assim ele me
respondeu!
― Pois
era, Tatarana? Olhe! escuta, pensa ― esses hermógenes não são
mais valentes do que nós, nem estão em quantidade maior; mas fato é
que eles chegaram a surdas, e nos cercaram, tomaram tudo quanto há
de melhor, nessas posições. Asseados, é que estão. Agora, nesta
hora, a gente forçar um escape, pode ser que se tenha sorte ― mas
mesmo assim sofrendo muitas mortes, e sem meios para descontar essas,
sem alcance nenhum para se matar um bom poucado desses inimigos. Tu
entende? Mas, se os soldados chegarem, têm de dar o forte fogo
primeiro contra os hermógenes, fazendo neles muito estrago. Aí, se
foge, com tenção só na escapula. Ao menos, algum lucro se teve...
Ah, tu vê o que se quer? Ah, o que tu também quer, pois não
quer?!…
[…]
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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