segunda-feira, 7 de julho de 2025

José Rebêlo Adro Antunes, cidadão e candidato


[…]

A aragem. Diadorim onde estivesse? Soube que ele parava em outro ponto, em seu posto em praça. Sustentava, picando alvos a para a frente, junto com o Fafafa, o Marruaz, Guima e Cavalcânti, na barra da varanda. Todo lugar não era lugar? Não se podendo esbarrar, de jeito nenhum, no arrebentar, nas manivelas da guerra. Aprendi os momentos. Assim, assazmente, João Concliz tornava a vir, zelante, com Alaripe, José Quitério e Rasga-em-Baixo. ― Espera! ― ele mandou. Pelo que vinham também o Pitolô e o Moçambicão, puxando uns couros de boi. Esses couros inteiros eram para a gente pregar lá em riba, nas padieiras, ficarem dependurados de cortinado bambo, nos vãos das janelas. Depois, o Pacamã-de-Presas mais o Conceiço, socavando com ferramenta, a fito de abrir torneiras nas paredes ― por onde buraco de se atirar. Aquela guerra ia durar a vida inteira? O que eu atirava, ouvia menos. Mas o dos outros! assovios bravos, o achispe, isto de ferro ― as balas apedrejadas. Eu e eu. Até meus estalos, que a cada, no próprio do coração. A mira de enviar um grão de morte acertado naquelas raras fumaças dansáveis. Assim é que é, assim.
Ah! E então, aí, no súbito aparecer, Zé Bebelo chegou, se encostou quase em mim. ― Riobaldo, Tatarana, vem cá... ― ele falou, mais baixo, meio grosso ― com o que era uma voz de combinação, não era a voz de autoridade. A de ver, o que ele quisesse de mim? Para eu passar avante na posição, me transpor para um lugar onde se matar e morrer sem beiras, de maior marca? Andei e segui, presente que, com Zé Bebelo, tudo carecia mais era de ser depressa. Mesmo me levou. Mas me levou foi para um outro cômodo. Ali era um quarto, pequeno, sem cama nenhuma, o que se via era uma mesa. Mesa de madeira vermelha, respeitável, cheirosa. Desentendi. Dentro daquele quarto, como que não entrava a guerra. Mas o pensar de Zé Bebelo ― ansiado eu sabia ― era coisa que estralejava, inventante e forte.
Mais antes larga o rifle aí, deposita... ― ele falou. O depor meu rifle? Pois botei, em cima da mesa, esquinado de través, botei com o todo cuidado. Ali se tinha lápis e papel. ― Senta, mano... ― ele, pois ele. Ofereceu a cadeira, cadeira alta, de pau, com recosto. Se era para sentar, assentei, em beira de mesa. Zé Bebelo de revólver pronto na mão, mas que não contra mim ― o revólver era o comando, o constante revirar e remexer da guerra. E ele nem me olhou, e me disse:
Escreve...
Caí num pasmo. Escrever, numa hora daquelas? O que ele explicado mandou, eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil do que entender. Era? Não sou cão, não sou coisa. Antes isto, que sei, para se ter ódio da vida: que força a gente a ser filho-pequeno de estranhos... Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar... ― me lembrei dessas palavras. Mas palavras que, em outra ocasião, quem tinha falado era Zé Bebelo, mesmo.
Escreve...
O zunzum da guerra acontecendo era que me estorvava de direito pensar. E Zé Bebelo não estava ali não era para isso, para pensar por todos? Como que fosse, o papel, para o que carecia, era pouco. Tinham de caçar mais papel, qualquer, por ali devia de ter. Enquanto isso, eu cumprisse de escrever, na seca mão da necessidade.
E ouvimos praga de dór.
Ao que foi? Uns gemidos, despautados, de sorrógo. ― Companheiro ofendido. O Leocádio... ― ouvimos. Sem-modos se precipitado, Zé Bebelo avançou para ali, para ver. Sem determinação tomada de ir, eu também já estava lá, atrás dele. O homem, o primeiro ferido, caído sentado, as pernas estendidas para diante, as costas amparadas na parede; com a mão esquerda era que ele suportava sua testa, mas com a direita ainda segurava o rifle, que o asno rifle ele não tinha largado. Conforme Raymundo Lé já tinha exigido, alguns vinham da cozinha, trazendo as latas d água. Raymundo Lé lavava a cara do homem ensanguentada, do Leocádio. Esse estava atirado pelas queixadas, má bala que lhe partira o ôsso, o vermelho brabotava e pingava. ― Meu filho, tu aguenta ainda brigar? ― Zé Bebelo quis saber. O Leocádio, que fez careta, garantiu que podia! ― O que posso. Em nome de Deus e de meu São Sebastião guerreiro, o que posso! Sempre sendo a careta sem gracejo; pois falar era o que para ele custava e maltratava. ― E da Lei... E da Lei, também... Ah, então, vamos, faz vingança, menino, faz vingança! ― Zé Bebelo aforçurou. Semelhante só botasse apreço nos fatos por resultar. Zé Bebelo se endemoninhava.
Segurou meu braço, suscitado de se voltar para a mesa, para se escrever, amanuense. Pelo discorrer, revólver na mão, às vezes achei, em minha fantasia, que ele estava me ameaçando. ― Ei, ai, vamos ver. Que tenho esquadrão reiúno! esses é que vão vir me dar retaguarda! ― ele falasse. Eu escrevesse, com mais urgência. Os bilhetes ― missiva para o senhor oficial comandante das forças militares, outro para o excelentíssimo juiz da comarca de São Francisco, outro para o presidente-da-câmara de Vila Risonha, outro para o promotor. ― Apresta. A massa do volume deles também dá valor... ― ele regendo. Acertei. Escrevi. O teor era aquilo mesmo, o simples! que, se os soldados no soflagrante viessem, de rota abatida, sem esperdiçar minuto, então aqui na Fazenda dos Tucanos pegavam caça grossa, reunida ― de lobo, jaguatirica e onça ― de toda a jagunçada maior reinante no vezvez desses gerais sertões. A rasa, à justa, e cerrar com fecho formal: Ordem e Progresso, viva a Paz e a Constituição da Lei! Assinado: José Rebêlo Adro Antunes, cidadão e candidato.
No pique dum momento, perdi e achei minha ideia, e esbarrei. A em pé, agora formada, eu conseguia a alumiação daquela desconfiança. Assim. Em que maldei, foi: aquilo não seria traição? Rasteiro, tive que olhei Zé Bebelo, no grude dos olhos. Daí, tão claro e aligeirado pensei ― os prefácios. Aquele tinha sido homem pago estipendiado pelo Governo, agora os soldados do Governo com ele se encontravam. E nós, todos? Diadorim e eu, os tristes e alegres sofrimentos da gente, a célebre morte de Medeiro Vaz, a vingança em nome de Joca Ramiro? Nem eu sabia ao certo, depois, no correr de tantos mêses, o extrato da vida de Zé Bebelo, o que ele tinha realmente feito, somenos se cumprida a viagem de ida até em Goiás. Soubesse, o pior, era que ele, por ofício e por espécie, não podia esbarrar de pensar, não podia esbarrar de pensar inventado para adiante, sem repouso, sempre mais. A gente estava por conta dele ― e sem repouso nenhum também, nenhum ― o portanto. E ele tinha trazido o bando cá para perto do São Francisco, tinha querido falhar os três dias naquela fazenda atacável. Quem sabe, então, o recado para os soldados virem, ele mesmo já não teria enviado, desde tempos? Ideia, essa. Arre de espanto ― ah, como quando onça de-lado pula, quando a canoa revira, quando cobra chicoteia. Désse de ser? Ao caminho dos infernos ― para prazo! Aí , careci de querer a calma. O tiroteio já redobrava. Ouvi a guerra.
Decerto eu estava exagerado. Antes Zé Bebelo havendo de ser mesmo o chefe para a hora, safado capaz. Nem se desprazia. ― Oi, xó! Pra esses, munição não falta?... ― ele escarnecendo disse, quando as descargas vieram em salva mais forte ― o fiufíu e os papocos. Ah as balas que partiam telhas e que as paredes todas recebiam. Cacos caindo, do alto. ― Te apressa, Tatarana, que nós dois temos também de atirar! Alegre dito. Na janela, ali, tinham pendurado igualmente um daqueles couros de boi! bala dava, zaque-zaque, empurrando o couro, daí perdia a força e baldava no chão. A cada bala, o couro se fastava, brando, no ter o choque, balangava e voltava no lugar, só com mossa feita, sem se rasgar. Assim ele amortecia as todas, para isso era que o couro servia. Traição? ― eu não queria pensar. Eu já tinha preenchido três cartas. Não é do tutuco nem do zumbiz das balas, o que daquele dia em minha cabeça não me esqueço; mas do bater do couro preto, adejante, que sempre duro e mole no ar se repetia.
Advindo que algum me trouxe mais papel, achado por ali, nos quartos, em remexidas gavetas. Só coisa escrita já, de tinta firme; mas a gente podendo aproveitar o espaço em baixo, ou a banda de trás, reverso dita. Que era que estava escrito nos papéis tão velhos? Um favor de carta, de tempos idos, num vigente fevereiro, 11, quando ainda se tinha Imperador, no nome dele com respeito se falava. E noticiando chegada em poder, de remessa de ferramenta, remédios, algodão trançado tinto. A fatura de negócios com escravos, compra, os recibos, por Nicolau Serapião da Rocha. Outras cartas... ― Escreve, filho, escreve, ligeiro... A traição, então? Altamente eu escutava os gritos dos companheiros, xingatório, no meio da desbraga do quanto combate, na torração. Aqui mesmo, esgueirados para a janela, o Duzentos e o Rasga-em-Baixo agora ombreavam armas, seu vez-em-quando a ponto atiravam. Assim como não pude, eu esbarrei, outra vez ― e encarei Zé Bebelo sem final.
Que é? Que é lá?! ― ele me perguntou. Devia de ter me deduzido, dos meus olhos, mesmo melhor do que o que eu sabia de mim.
A pois... Por que é que o senhor não se assina, ao pé: Zé BebeloVaz Ramiro... como o senhor outrora mesmo declarou?... ― eu cacei contra, reperguntando.
Ato visível, que ele esteve pego, no usual de seu modo, assim, de se espantar no ar. Conheci. As vezes, também, um atraiçóa, sem nem saber o que é que está produzindo ― às falsas hajas! Mas ele não tinha surpreendido a verdade do meu indagar, a expedição de minha dúvida. Conforme, prazido consigo, recachou, e me disse, me engambelando:
Ah, hã -an... Também pensei. Tanto que pensei; mas, não se pode... Muito alta e sincera é a devoção, mas o exato das praxes impõe é outras coisas: impõe é o duro legal...
Aí, fui escrevendo. Simples, fui, porque fui; ah, porque a vida é miserável. A letra saía tremida, no demoroso. Meu outro braço também recomeçava a doer, quáse que. Traição ... ― sem querer eu fui lançando no papel a palavra; mas risquei. Uma bala no couro assoviou soco, outra entrou atrás, entrou com o couro levantado, deu na parede, defronte, ricocheteou e veio cair, quente, perto da gente. Ali na parede, tinha um chifre de boi de se dependurar roupa; até armador de rede era de chifre de boi, naquela Casa. Sumamente, eu esperei o pispissíu de alguma outra bala, eu queira. Soubesse por que? O pensar caladíssimo de Zé Bebelo me perturbava.
Mas ele disse: ― Que é que é? ― se debruçando ― Que erro que foi? Não viu, porque eu já tinha riscado. Mas, então, ele muito falou. Ia explicando. De noite, no escuro feito, ia mandar dois cabras, dos mais espertos viajeiros, para rastejarem por ali, furando o cerco, cada um levava ruma igual daquelas cartas. Assim, Deus azado ajudasse, e eles ou ao menos um deles conseguisse, então era resumo certo que a soldadesca se movimentava de vir. Apareciam, os trapezavam, apropositavam, arrebentavam com os hermógenes!
E a gente? ― eu perguntei.
Ae? A gente? A ver, que você não me entendeu? A gente obra jeito de se escapar, no cererê da confusão...
Antes, tanto, que era muito difícil ― eu repostei.
Ah, sim, dificultoso é, meu filho. Mas pego, é o nosso recurso. Se não, se outra, que saldo é que temos? ― e Zé Bebelo, do dito, sagaz se rigozijava.
Então, com respeito, eu disse que a gente podia experimentar de fazer isso mesmo agora! furar uma saída, por entre os hermógenes, brigando e matando. Eu disse isso. Mas tinha esquecido que estava era encostado em Zé Bebelo, no questionar. Aí quem era que podia com a ideia daquele homem, quem era que se sustentava? A foro, pois, assim ele me respondeu!
Pois era, Tatarana? Olhe! escuta, pensa ― esses hermógenes não são mais valentes do que nós, nem estão em quantidade maior; mas fato é que eles chegaram a surdas, e nos cercaram, tomaram tudo quanto há de melhor, nessas posições. Asseados, é que estão. Agora, nesta hora, a gente forçar um escape, pode ser que se tenha sorte ― mas mesmo assim sofrendo muitas mortes, e sem meios para descontar essas, sem alcance nenhum para se matar um bom poucado desses inimigos. Tu entende? Mas, se os soldados chegarem, têm de dar o forte fogo primeiro contra os hermógenes, fazendo neles muito estrago. Aí, se foge, com tenção só na escapula. Ao menos, algum lucro se teve... Ah, tu vê o que se quer? Ah, o que tu também quer, pois não quer?!…
[…]

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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