39.
De
repente, como se um destino médico’ me houvesse operado de uma
cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da
minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo
que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto
tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do
que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não
sou.
Olho,
como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e
noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais
certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais
lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura
natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei.
Representaram-me. Fui, não o ator, mas os gestos dele.
Tudo
quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou
a um ente falso que julguei meu, porque agi dele para fora, ou de um
peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste
momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado
onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não
fui eu.
Vem-me,
então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os
limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e
descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com
consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem
acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é
liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se
habituara.
Pesa-me,
realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção
repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre
viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É
tão difícil descrever o que se sente quando se sente que realmente
se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são
as palavras humanas com que possa defini-lo. Não sei se estou com
febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida.
Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa
vila estranha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos
que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro
durante muito tempo — desde a nascença e a consciência -, e
acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que
existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me
incógnita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado
sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e
fictício, inteligente e natural.
Foi
um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me cercam, os
desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças
poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência,
o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as
palavras, e não sei se não foram também tentados vencedoramente
pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de
si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é
ter subitamente a noção da mónada íntima, da palavra mágica da
alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus
até de nós.
Foi
só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui.
E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido
é dormir.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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