sexta-feira, 20 de junho de 2025

Gente certa




[…]

Vemos voltemos. O Buriti-Pintado, o Oi-Mãe, o rio Soninho, a Fazenda São Serafim; com outros, mal esquecidos, seja. Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios tantos, ou aí subindo e descendo solaus, recebendo o empapo de chuva e mais chuva, a gente se fervia ― debaixo desses extraordinários de Zé Bebelo ― a gente lambia guerra. Zé BebeloVaz Ramiro ― viva o nome! A gente vinha sobre o rastro deles, dos hermógenes ― por matar, por acabar com eles, por perseguir. No borrusco, o Hermógenes corria, longes, de nós, sempre. As artes que fugiam. Mas eu com aquilo já tinha inteirado costume. Era ruim e era bom.
Aí quando muito vento abriu o céu, e o tempo deu melhora, a gente estava na erva alta, no quase liso de altas terras. Se ia, aos vintes e trintas, com Zé Bebelo de bota-fogo. Assim expresso, chapadão voante. O chapadão é sozinho ― a largueza. O sol. O céu de não se querer ver. O verde carteado do grameal. As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras ― araral ― conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia? Chove ― e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama! a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, chapadão, chapadão.
De dia, é um horror de quente, mas para a noitinha refresca, e de madrugada se escorropicha o frio, o senhor isto sabe. Para extraviar as mutucas, a gente queimava folhas de arapavaca. Aquilo bonito, quando tição acêso estala seu fim em faíscas ― e labareda dalalala. Alegria minha era Diadorim. Soprávamos o fogo, juntos, ajoelhados um frenteante o ao outro. A fumaça vinha, engasgava e enlagrimava. A gente ria. Assim que fevereiro é o mês mindinho: mas é quando todos os cocos do buritizal maduram, e no céu, quando estia, a gente acha reunidas as todas estrelas do ano todo. Mesmas vezes eu ria. Homem dorme com a cabeça para trás, dois dedos no queixo. Era o Pitoló. Um Pitoló, sei lá, cabra destemido, com crimes nos maniçobais perto para cima de Januária; mas era nascido no barranco. No Carinhanha, rio quase preto, muito imponente, comprido e povooso. Ademais que ele contava casos de muito amor; Diadorim às vezes gostava. Mas Diadorim sabia era a guerra. Eu , no gozo de minha ideia, era que o amor virava senvergonhagem. Turvei, tanto. ― Andorinha que vem e que vai, quer é ir bem pousar nas duas torres da matriz de Carinhanha... ― o Pitoló falava. Eu tinha súbitas outras minhas vontades, de passar devagar a mão na pele branca do corpo de Diadorim, que era um escondido. E em Otacília, eu não pensava? No escasso, pensei. Nela, para ser minha mulher, aqueles usos-frutos. Um dia, eu voltasse para a Santa Catarina, com ela passeava, no laranjal de lá. Otacília, mel do alecrim. Se ela por mim rezava? Rezava. Hoje sei. E era nessas boas horas que eu virava para a banda da direita, por dormir meu sensato sono por cima de estados escuros.
Mas levei minha sina. Mundo, o em que se estava, não era para gente: era um espaço para os de meia-razão. Para ouvir gavião guinchar ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar as grandes emas e os veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar gado, em rancharias sem morador? Isso, quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada é para aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a um tiro de pistola ― isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus pintos, para esgaravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando. Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas. No mais, nem mortalma. Dias inteiros, nada, tudo o nada ― nem caça, nem pássaro, nem codorniz. O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juizo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o sertão tonteia. Os tamanhos. A alma deles. Mas Zé Bebelo, andante, estava esperdiçando o consistir. E que o Hermógenes só fizesse por se fugir toda a vida, isso ele não entendia. ― Vai cavacando buraco, vai, que tu vê! ― oco da paciência, ele resmungou. Ainda que, nesses dias, ele menos falasse; ou, quando falava, eu não queria ouvir. Digo que, no cível trivial, Zé Bebelo me indispunha com algum enjôo. A antes uma conversa com Alaripe, somente simples, ou com o Fafafa, que estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em doma e em criação. Zé Bebelo só tinha graça para mim era na beira dos acontecimentos ― em decisões de necessidade forte e vida virada ― horas de se fazer. O traquejar. Se não, aquela mente de prosa já me aborrecia.
A monte andante, ao adiável, aí assim e assaz eu airei meu pensamento. Amor eu pensasse. Amormente. Otacília era, a bem-dizer, minha nôiva? Mas eu carecia era de mulher ministrada, da vaca e do leite. De Diadorim eu devia de conservar um nôjo. De mim, ou dele? As prisões que estão refincadas no vago, na gente. Mas eu aos poucos macio pensava, desses acordados em sonho! e via, o reparado ― como ele principiava a rir, quente, nos olhos, antes de expor o riso daquela boca; como ele falava meu nome com um agrado sincero; como ele segurava a rédea e o rifle, naquelas mãos tão finas, brancamente. Esses Gerais em serras planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente pequenino. Como se eu estivesse calçando par de chinelo muito flote; e eu queria um sinapismo, botim reiúno, duro, redomão.
Agora ― e os outros? ― o senhor dirá. Ah, meu senhor, homens guerreiros também têm suas francas horas, homem sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas môitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. ― E essa natureza da gente... ― ele disse; eu não tinha perguntado explicação. O que eu queria era um divertimento de alívio. Ali, com a gente, nenhum cantava, ninguém não tinha viola nem nenhum instrumento. No peso ruim do meu corpo, eu ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz? Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no não-acontecido nos passados. O senhor me entende?
De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber os sobejos dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, por que? Eu estava calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem tremer. Porque eu desconfiava mesmo de mim, não queria existir em tenção soez. Eu não dizia nada, não tinha coragem. O que tinha era uma esperança? Mesmo parava tempos no pensar numa mulher achada! Nhorinhá, a minha moça Rosa uarda, aquela mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim tonto sonho se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito neblina noruega movente no frio de agosto.
A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada; de tudo me prostrei. Ao que me veio uma ânsia. Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor. Anda que levantei, a pé caminhei em redor do arrancho, antes do romper das horas dalva. Saí no grande orvalho. Só os pássaros, pássaro de se ouvir sem se ver. Ali se madruga com céu esverdeado. Zé Bebelo podia pautear explicação de tudo: de como a gente ia alcançar os hermógenes e dar neles grave derrota; podia referir tudo que fosse de bem se guerrear e reger essa política, com suas futuras benfeitorias. De que é que aquilo me servisse? Me cansava. E vim vindo, para a beira da vereda. Consegui com o frio, esperei a escuridão se afastar. Mas, quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal. Um buriti ― teteia enorme. Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os antigos, porque num homem que eu nem conheci ― aquele Siruiz ― eu estava pensando. Versos ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável valor:

Trouxe tanto este dinheiro o quanto, no meu surrão,
pra comprar o fim do mundo no meio do Chapadão.
Urucúia ― rio bravo cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas que turvam na perdição.
Vida é sorte perigosa passada na obrigação toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão…

Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso ― o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.
Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim, também, por que se aguentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava folga nem cansaço; o Reinaldo ― que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro e de ouro, e de carne e ósso, e de minha melhor estimação; Marcelino Pampa, segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de muito respeito; João Concliz, que com o Sesfrêdo porfiava, assoviando imitado de toda qualidade de pássaros, este nunca se esquecia de nada; o Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num dia suas quinze léguas, cavalos que haja; Joaquim Beijú, rastreador, de todos esses sertões dos Gerais sabente; o Tipote, que achava os lugares d’água, feito boi geralista ou buriti em broto de semente; o Suzarte, outro rastreador, feito cão cachorro ensinado, boa pessoa; o Quêque, que sempre tinha saudade de sua rocinha antiga, desejo dele era tornar a ter um pedacinho de terra plantadeira; o Marimbondo, faquista, perigoso nos repentes quando bebia um tanto de mais; o Acauã, um roxo esquipático, só de se olhar para ele se via o vulto da guerra; o Mão-de-Lixa, porreteiro, nunca largava um bom cacete, que nas mãos dele era a pior arma; Freitas Macho, grão-mogolense, contava ao senhor qualquer patranha que prouvesse, e assim descrevia, o senhor acabava acreditando que fosse verdade; o Conceiço, guardava numa sacola todo retrato de mulher que ia achando, até recortado de folhinha ou de jornal; José Gervásio, caçador muito bom; José Jitirana, filho dum lugar que se chamava a Capelinha-do-Chumbo! esse sempre dizia que eu era muito parecido com um tio dele, Timóteo chamado; o Preto Mangaba, da Cachoeira-do-Choro, dizia-se que entendia de toda mandraca; JoãoVaqueiro, amigo em tanto, o senhor já sabe; o Coscorão, que tinha sido carreiro de muito ofício, mas constante que era canhoto; o Jacaré, cozinheiro nosso; Cavalcânti, competente sujeito, só que muito soberbo ― se ofendia com qualquer brincadeira ou palavra; o Feliciano, caôlho; o Marruaz, homem desmarcado de forçoso! capaz de segurar as duas pernas dum poldro; Guima, que ganhava em todo jogo de baralho, era do sertão do Abaeté; Jiribibe, quase menino, filho de todos no afetual paternal; o Moçambicão ― um negro enorme, pai e mãe dele tinham sido escravos nas lavras; Jesualdo, rapaz cordato ― a ele fiquei devendo, sem me lembrar de pagar, quantia de dezoito mil-réis; o Jequitinhão, antigo capataz arrieiro, que só se dizia por ditados; o Nelson, que me pedia para escrever carta, para ele mandar para a mãe, em não sei onde moradora; Dimas Doido, que doido mesmo não era, só valente demais e esquentado; o Sidurino, tudo o que ele falava divertia a gente; Pacamã-de-Presas, que queria qualquer dia ir cumprir promessa, de acender velas e ajoelhar adiante, no São Bom Jesus da Lapa; Rasga-em-Baixo, caolho também, com movimentos desencontrados, dizia que nunca tinha conhecido mãe nem pai; o Fafafa, sempre cheirando a suor de cavalo, se deitava no chão e o cavalo vinha cheirar a cara dele; Jõe Bexiguento, sobrenomeado Alparcatas, deste qual o senhor, recital, já sabe; um José Quitério: comia de tudo, até calango, gafanhoto, cobra; um infeliz Treciziano; o irmão de um, José Félix; o Liberato; o Osmundo. E os urucuianos que Zé Bebelo tinha trazido: aquele Pantaleão, um Salústio João, os outros. E ― que ia me esquecendo ― RaymundoLé, puçanguara, entendido de curar qualquer doença, e Quim Queiroz, que da munição dava conta, e o Justino, ferrador e alveitar. A mais, que nos dedos conto: o Pitoló, José Micuim, Zé Onça, Zé Paquera, Pedro Pintado, Pedro Afonso, ZéVital, João Bugre, Pereirão, o Jalapa, Zé Beiçudo, Nestor. E Diodôlfo, o Duzentos, João Vereda, Felisberto, o Testa-em-Pé, Remigildo, o Jósio, Domingos Trançado, Leocádio, Pau-na-Cobra, Simião, Zé Geralista, o Trigoso, o Cajueiro, Nhô Faísca, o Araruta, Durval Foguista, Chico Vosso, Acrísio e o Tuscaninho Caramé. Amostro, para o senhor ver que eu me alembro. Afora algum de que eu me esqueci ― isto é: mais muitos... Todos juntos, aquilo tranquilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E bastantes morreram, no final. Esse sertão, esta terra.
[…]

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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