A casa da Baronesa do Capitão era-nos
imaginária. Passava-se na rua sem se poder ver nada de nada para o
que iria lá dentro. Era de paredes opacas, de janelas apenas viradas
para o mar. Ficava cega para quem chegava. Só quem lá entrasse
haveria de se deparar com os luxos que se inventavam para lá
existirem. Havia quem dissesse que, dentro da casa, tinha um lago com
peixes vermelhos, móveis trazidos da China e do Japão todos
esculpidos de dragões e árvores, penduravam-se quadros enormes
pintados por pessoas antigas a mostrarem nobres de toda a Europa com
seus penteados e joias, louças de cristal que produziam cintilâncias
a competir com o mar inteiro, coisas de ouro, até nas toalhas, que
punham ouro nos tecidos e nem se podiam lavar na água e sabão. A
casa da Baronesa do Capitão era tão grande que poderiam caber ali
cem pessoas sem sequer serem magras, e havia bancos para cada uma.
Contudo, vivia ela com duas criadas de bico calado. Umas depenadas
que só comiam ervas e cresciam nos olhos, sem casarem nem terem
família. Pareciam duas estacas. Uns paus que acompanhassem, de lado
e de outro, a mulher aperaltada. Contava-se muito que suas criadas
serviam para sustentar bandeiras. Sacudiam as toalhas dos almoços ao
sol e haveriam de parecer postes a fazer sinais de independência aos
navios cruzando o horizonte.
Muitos homens tinham intenções de
desonrar as criadas, que viviam com o destino de encalhadas. Mas não
lhes encontravam tempos livres nem respostas. Ainda que não fossem
de grande beleza, também não eram mortas. Valeriam para as piores
intenções dos pervertidos. Isso piorava os humores da Baronesa, que
tinha a impressão de que se alguém lhe tocasse nas criadas lhe
diminuía o património e o poder. As criadas, mais do que
domésticas, eram domesticadas. Por obedecerem, pareciam tão
distantes da comunidade quanto a patroa. Sabíamos nada delas. Podiam
ter sido apanhadas de um lixo qualquer. De um naufrágio. Podiam ter
sido trazidas numa arca desde países vencidos. Poderiam ter sido
achadas congeladas da pré-história. Eram iguais, verdadeiramente
repetidas. Assemelhavam, mais e mais, com o tempo. Até nem terem
nome. Ninguém lhes dava nome. Eram em dupla e equivaliam. Como se,
de igual modo, também não fossem ninguém.
Dizia-se que a Baronesa era antipática
e achacada a fúrias. Declarava sua frustração pelo mundo
indelicado, corrupto, preguiçoso, feio, malcheiroso, ímpio,
pecador, ganante, falso, que era o nosso. A mulher era tão crítica
da humanidade que se precavia de maiores desgostos rejeitando à
partida o convívio com os demais. Usava impropérios em alto som e
um sem-fim de resmungos surdos. Se reparássemos bem, passava os dias
a trilhar palavras silentes na boca. Caminhava e restava uma
impressão de se ouvir algo, como alguém que deixasse uma certa
poeira no ar. Era algo tão impreciso, tão sem corpo, que uma
insinuação de vento dissipava logo a seguir. O Capitão, sempre
embarcado a mandar nos militares, aparecia tão quase nunca que era
mais raro que os avistamentos santeiros. A Baronesa existia toda à
espera e talvez fosse isso mesmo que lhe dava amores pelos cachorros
e um amuo constante pelas pessoas.
Costumávamos vê-la nas missas de
domingo, mas jamais nos respondera aos bons-dias. Era demasiado
importante e seguia ao centro das passadeiras e das alcatifas. Nós
caminhávamos sempre pelas beiras. Encolhidos e sem feder. Tínhamos
gratidão. A mulher nem era bonita e tanto poderia ter quarenta como
setenta anos. Não havia maneira de avaliar. Era muito pintada e
muito vestida. Mesmo em dias de calor, metia-se em casacos e lenços,
espaventava toda e reluzia dos dedos e das orelhas. Até nos dentes
havia qualquer coisa ao dependuro. Era muito estranha, um trogalho.
Parecia menos uma pessoa e mais uma coisa de guardar em casa. Como se
fosse uma complicação inútil, sem préstimo nem harmonia, sem
galanteio, apaziguamento nem princípio, meio e fim. Algo a que se
tivesse dado um nó que não se desfazia de jeito nenhum. Um sarilho
que ninguém desensarilhava mais. Minha mãe confessava que lhe
parecia as linhas de costuras quando os novelos se enroscavam e,
depois de tanto se tentar, a solução estava apenas em tesourar por
ali e deitar fora. A Baronesa só se comporia com uma tesourada,
porque não se destrinçava vista de qualquer ângulo. Nós,
confrontados com ela no percurso pedonal da igreja do Campanário,
úteis, sempre úteis, desviávamos os rabos e os olhares e sempre
dizíamos bom-dia. Ela passava muda, toda cheia de pudores entre suas
criadas de guarda, e ia para o primeiro banco da igreja, como se
fosse tratar de assuntos mais de perto com Deus. As pessoas do
Campanário aquietavam-se, e a missa começava sempre com um
cumprimento do padre ao auditório e, depois, outro à Baronesa do
Capitão, que, por vezes, fungava para dar resposta.
Um dia, estávamos todos a mijar os
maracujás que corriam o muro nascente da sua casa. Cheio de
vergonha, eu também mijei porque sofri pela humilhação de minha
mãe que fechou os olhos à passagem da Baronesa. As próprias
criadas tremelicaram as pálpebras numa espécie de sobressalto que
lhes provocou indignação, mas jamais se atreveriam a interferir,
jamais intercederiam. Poderiam ser até mortas, assassinadas por
desobediência. Se não eram dali, não tinham família, se houvessem
de desaparecer por um buraco, ou na boca de algum bicho, ninguém
andaria muito a perguntar por elas, sobre quando voltariam, sobre o
que disseram à despedida. Ficariam no esquecimento em dois dias. E
podiam ser substituídas por outras de mesmo efeito. Fardadas do
mesmo modo, o bico calado, hasteando bandeiras disciplinadas na
melhor tradição de nossos militares da marinha, quaisquer mulheres
magrinhas e assustadas haveriam de poder desempenhar aquelas funções.
Meu pai dizia que eram mais funções de temor do que de trabalho.
Algumas pessoas eram empregues pelo medo que sentiam. E não
exactamente pelo serviço que tinham de prestar.
Meu pai, incauto, absurdo e ingénuo,
tinha idealizado pedir um emprego ao Capitão. Deixar de fabricar o
campo e talvez emigrar, como emigravam os pais todos. Mas a Baronesa
nem lhe permitiu concluir duas frases. Era avessa a súplicas e cheia
de carentes em redor. Fazia sua caridade em silêncio. Que não seria
mais do que deitar uma moedinha no ofertório dos domingos.
Certamente uma moedinha tão pequena quanto a nossa. Minha mãe, de
vexame, fechou os olhos. Ela fora sempre da opinião que a Baronesa
não teria compaixão. Era descoroçoada. Sofria da cabeça. Era
doente. Talvez nem devêssemos querer-lhe vingança alguma, que isso
era tão feio. Deveríamos sentir tristeza por ela. Mais nada.
Eu e Nhanho e outros dois buzicos
mijámos os maracujás porque nos havia constado que as criadas os
vinham colher, e a Baronesa os comia consolada. Eu mijava quanto
pudesse e pensava: Ave Maria, cheia de graça. Tinha vergonha. Mas
também tinha honra e precisava de alguma fúria.
No dia em que Pouquinho nasceu, no
entanto, o Capitão estava na ilha, e a Baronesa teve uma festa.
Vieram do Funchal uns senhores para queimarem no jardim um fogo
preso. Era um fogo de artifício que, ao cair da noite, ardeu em flor
por uns breves minutos. Esqueceram, contudo, do medo dos cachorros.
Os cachorros escapuliram-se estonteados e nunca mais foram vistos.
Eram dois pequenatos, uns canitos felpudos que a mulher tratava como
filhos de quatro patas. Um branco e outro loiro. Os dois importados
de algum país com bichos de montra. Bichos de pousar de enfeite. Um
chamava-se Artur e outro chamava-se Josefina. Um menino e uma menina.
Meu pai assim contou à mesa e padre Estêvão sorria, minha mãe
aconchegava Pouquinho ao peito, que adormecera novamente. Eu pensei
que os cachorros haveriam de fugir para um canto lá em baixo. Não
se levantariam na encosta. Mais depressa desceriam até ao calhau da
praia, diante do Ilhéu. A Baronesa prometeu que daria cinco mil
escudos a quem encontrasse seus queridos canitos. Cinco mil escudos.
Era um dinheiro que valeria aos meus pais por meses. Eu disse: vou
encontrar os bichos. Meu pai, desço para fabricar o campo como me
pediu e, se me der licença, vou numa corrida ver se encontro os
bichos da senhora do Capitão. Minha mãe estava à mesa. A única
coisa que agora se dizia era que ela não se devia ter levantado. Era
melhor que ficasse em sossego. Não valia a pena que se ocupasse de
etiquetas. Os padres, dizia padre Estêvão, são de todas as casas
sem sobressalto. Devem ser contados entre as coisas de serviço, como
talheres e vassouras, mantas e cortinas, sifões e lâmpadas. São
uma laranja sempre fresca. Minha mãe foi deitar-se. O padre saiu, e
meu pai acabou por sentar-se ao espelho. Ali se calou por uns
instantes. Esperava de seu próprio rosto um sinal. Que sinal seria,
eu ainda não imaginaria. E talvez ele mesmo também não o pudesse
imaginar. O seu pressentimento não era atendido. Eu fiquei
convencido de que meu precioso pai ficara irremediavelmente sem
qualquer atendimento. Padeceu disso. Haveria de padecer disso para
sempre. Tornou-se um homem à espera do que não chegaria.
Éramos sem muitos abraços ou toques.
Não se tocavam os corpos por uma limpeza de almas, porque os corpos
sentiam vontades sujas e viravam impossíveis de confiança. Os meus
pais, correctos, demitiam-se de muito mexer em mim ou em quem viesse
de visita. Os cumprimentos faziam-se com o corpo todo à distância,
a mão estendida para diante como se a mão fosse até embora. Sem
perturas algumas. Sem aperto. Sem equívoco. Naquele instante,
contudo, eu passei e pousei por menos do tempo de um segundo minha
mão no seu ombro. Meu pai era tão parado para dentro do espelho que
eu quis tocá-lo como batendo a uma porta que precisava de garantir
que continuaria a abrir-se.
Fabricámos com alguma pressa porque
eu atirava o pensamento aos cinco mil escudos, e meu pai anuía que
haveria de ser um salário importante para nós. Rasgámos a terra
sem grande brio, e era ele quem me ia empurrando dali para baixo a
ver se dava sorte de caçar os dois bichos pequenos que valiam as
notas tão grandes. Deixei-o na sementeira e, quando desci, passando
pela venda da senhora Luisinha, fucei pelo Nhanho e mais perguntei se
sabia de notícias dos canitos. Estavam todos pelas encostas a chamar
os bichos. A senhora Luisinha dizia que se passava ali uma tarde sem
ninguém, porque se atazanavam uns e outros para ganhar o mesmo
dinheiro que só uma pessoa podia ganhar. E eu fui ganhá-lo.
Saltei abaixo da estrada e fui para
onde havia escorrimentos da levada. Na minha ideia, os cachorros
estariam onde pingasse para poderem beber. Na minha ideia, os
cachorros estariam no baixo da nossa encosta, vindos no sentido do
sol, a viajarem aquele bocado de quedas como se procurassem anoitecer
também. Fariam como o sol, cumpririam o sentido do planeta. Parariam
por onde caísse água e cheirasse a banana. As bananeiras muito
carregadas e o odor intenso a exalar, era quase um odor luminoso.
Parecia luz ou o próprio sol que brotava da fruta. E eu mal vi onde
a levada rompia um pouco, onde tantas vezes eu próprio me pus de
boca a beber, e escutei logo uns gemidos que podiam ser protestos ou
pedidos de ajuda. Os cachorros da Baronesa eram refilões. Achavam
que mandavam. Tinham umas boquitas delicadas, estepilhas, umas vozes
medriquinhas, e eram lindos como os medriquinhas todos. Tomei-os no
colo e beijaram-me as orelhas muito oferecidos ou gratos. Subi a ver
meu pai. Ganharia os cinco mil escudos como se tivesse um trabalho de
doutor. O meu orgulho não cabia no peito. Era a minha oferta ao
nascimento de Pouquinho. Pensava eu. Pouquinho trazia sorte, trazia
fortuna. Eu ria subindo pelos carreiros. Pararia por nada. Ia mostrar
aos meus pais os bichos de enfeite. O Artur e a Josefina, dois
peneirentos que não paravam de me lamber as orelhas, até por
pequenas mordidas, como se quisessem que eu mudasse de direcção ou
parasse de os apertar. Mas eu apertava. Não me cairiam. Valiam tanto
dinheiro que eu não podia acreditar na sorte, na grata sorte de os
encontrar.
Estavam nas goteiras abaixo da
estrada. Um pouco depois, onde a levada se rompe e um fio de água
sai dali para se beber. Estavam a beber, e eu julgo que esperavam que
as bananas se descascassem sozinhas. Eu disse.
Minha mãe levantou as mãos e
esperançou-se de uma qualquer réstia de sorte, o que também lhe
aumentava o aspecto de sofrer. Ter sorte, naquele instante, ainda
assim lhe aumentou o rosto de aflita. Tudo servia para revelar maior
submissão à desgraça que nos competia.
Batemos ao portão da Baronesa do
Capitão, e as criadas vieram abrir em gritinhos imediatos. As
bilhardeiras todas já sabiam. Quando caminhámos de casa,
satisfeitos e ligeirinhos, umas e outras vinham às janelas e bem que
se informavam que os do cimo da Caldeira tinham conseguido o que
todos queriam conseguir. Os dos Pardieiros. Pela rua, escutava-se com
facilidade como os toques de telefone soavam. Porque as bilhardeiras
se avisavam umas às outras, tão cheias de assunto quanto invejosas
de não serem os seus maridos ou os seus filhos a carregarem os
bichos. Os canitos nas mãos eram troféus peludos, irrequietos à
aproximação da casa grande, excitados por estarem de regresso.
Puseram-se aos saltos. Davam pinotes pelo ar, acrobáticos, até
disparatados. As criadas congratulavam-se tanto que se fazia ali um
barulho mal-educado. Quando a Baronesa assomou ao pátio, pararam.
Sempre como um baldão, um bandalho de roupas e panos, um trogalho, a
mulher fanicou em gemidos e guinchos de uma alegria esquisita. Era
mais um ataque à sua saúde do que uma alegria normal. Pensava eu
que por ser rica não tinha sentido algum. Era como ninguém que eu
conhecesse ou de que tivesse ouvido falar. A mulher, certamente
habituada a ser austera, nem sabia que aspecto haveria de ter uma
alegria sincera.
Estava a descer o sol, já pelo fim da
tarde se punha tudo mais escuro, mas a mulher rebrilhava e, por um
instante algo longo, ficou ocupada apenas dos canitos. As
bilhardeiras diziam que eram como os seus buzicos. Tinha os cachorros
em mordomias que a maioria das pessoas não arranjavam na vida
inteira. Então, erecta novamente, recuperando um pouco o fôlego,
caiu sobre nós em abraços, e meu pai dizia: foi o Paulinho quem os
encontrou. Paulinho nosso. Na sua voz, ia o amuo de ela lhe haver
negado palavra e socorro. O imenso homem que era meu pai era um
tamanho imenso da pobreza e da humilhação.
E eu mais cresci uns centímetros de
orgulho, e ela mais caiu aos abraços sobre mim e começou a dizer:
entrem. Entrem, por favor. A voz dava-lhe um desafino. Mudava de tom.
Tinha um estrago qualquer que podia ser que cantasse ópera ao invés
de falar. Indicava a porta de casa. A porta da grande casa imaginária
onde ninguém a quem pudéssemos perguntar algum dia havia entrado.
Entrámos.
Era logo ali uma sala imensa de onde
pendia um lustre gigante, e eu não conseguia andar nem pensar em
mais nada. Era um animal de cem lâmpadas acesas que pendia de um
tecto altíssimo. Tinha de ser um bicho de luz, uma luz agarrada pela
garganta, aberta ali sobre nossas cabeças como se esganassem o
próprio sol para trabalhar à noite. E eu pensei que talvez fossem
mais de cem lâmpadas e pensei que, como naquela manhã, os
flamingos, eu não estaria a ver nada daquilo. E a mulher, deitando
os cachorros aos cadeirões vermelhos, numa alegria sempre intensa,
movediça, sem parar, mandava que trouxessem de beber. Algo que
pudéssemos beber, e que chamassem o Capitão. Estava o Capitão
algures. Era trazê-lo para pagar ao buzico. Dizia a Baronesa.
Abençoado buzico que trouxera saudáveis seus companheiros gentis e
raros. Eram franceses. Ela explicava. Francesíssimos. Genuínos e
muito inteligentes. Tinham vindo no navio da marinha, e tinham sido
adopções muito desejadas.
As criadas, repetidas como as
figurinhas do futebol que se compravam por cinquenta centavos,
descontrolavam-se na alegria. A senhora tinha ficado deitada em
prantos e enxaquecas, queria morrer se lhe morressem os animais. Era
trágica e sem limites. Aquela casa esteve num abismo de dor,
absolutamente como se gente fosse levada pelas enxurradas ou
estivesse ligada a máquinas de respirar nos hospitais. As duas
Repetidas, sem poderem mais aproximar nem mexer, imitavam os gestos
da patroa. Se a patroa se inclinava para outra vez pegar ao colo o
Artur, as criadas faziam metade do gesto de se inclinarem. Se a
patroa beijasse o bicho nas barbas, as criadas faziam metade do gesto
de o beijarem nas barbas. Até o que a Baronesa dizia, uma das
criadas dizia pela metade. Ela agradecia: que bênção me trazes,
rapaz. E a criada dizia: bênção, rapaz. Eram miméticas.
Habituaram-se a existir pelas sobras da patroa. E estavam felizes
porque aquele sentimento era o alívio que lhes era permitido
claramente depois de terem passado noite, manhã e tarde inteiras
escravizadas ao desespero da patroa. Depois, foram as duas, tão
excitadas quanto escorraçadas, buscar o Capitão. A Baronesa dizia:
meu marido, imediatamente. E as magrinhas mulheres foram por um
corredor adentro para o certo infinito da casa.
Quando o Capitão chegou à sala, o
meu pai bebendo um vinho e eu a comer uma bolacha, encarou-me muito
de perto e disse: valente, rapaz. És valente. A minha esposa não
seria feliz sem estes cachorros. Vou pagar-te o prometido e mais te
prometo um trabalho quando fores maior. Que tu tens cara de decente e
tens cara de esperto. O país precisa de homens espertos como tu.
Depois, parabenizou meu pai e falou-lhe a parecerem iguais, homens
com semelhanças, entendidos no mesmo, como se fizessem as mesmas
refeições e deitassem em camas também chinesas, com almofadas
imensas que deglutiam as cabeças que lhes pousavam. Seriam dois
homens a deitarem-se com mulheres de aparato esdrúxulo, com bicos de
cabelo, arrebiques de panos pelo corpo todo, a despontarem na
almofada sem se saber onde começavam e onde acabavam. Que estranhas
as mulheres ou os homens dos quais não se sabe onde começam e onde
acabam.
Quem os visse, podia pensar tratar-se
de dois homens embarcados com poder, a chefiar navios da nação, a
combater em guerras estrangeiras, salvando certamente o mundo,
apontando canhões com pólvoras matadoras que eliminariam inimigos
horrendos dos quais a ilha da Madeira nem chegava a ouvir falar. O
Capitão inclinou-se sobre mim, regozijando, cheio de gratidão e
folia, dizendo que eu seria o orgulho de meu pai. Meu pai haveria de
ter uma fortuna num buzico quase grande como eu. E eu, sem demasiada
inteligência, atrapalhado com o entusiasmo, perplexo com o lustre, a
pensar no dinheiro e inconfessavelmente assustado com a maleita de
Pouquinho, respondi: meu pai é um homem bom, senhor Capitão. É o
homem de coração mais limpo de nossas terras, senhor Capitão.
Subitamente, sem aparente razão, defendia sua honra porque, na minha
angústia, o que nos desafiava perguntava acerca do nosso compromisso
com o bem e com o mal. Acima de tudo, julgo que queria que meu pai
escutasse. Quanto mais expressa fosse minha convicção de que ele
era um bom homem, maior era a obrigação de ele o ser. Para mim,
afigurava-se fundamental que ele tivesse a força para isso. Para não
nos falhar.
Estávamos exactamente sob o lustre
imenso, e eu tinha a impressão de que incandescia também. Sobre as
nossas cabeças, como em movimento, a luz deitava tão abundante que
eu pensava que haveria de me tocar. Teria de ganhar corpo e tocar-me.
Como se fosse efectivamente animal e se soltasse por fim. O Capitão
entregou-me as notas. Assim as entreguei também a meu pai. A senhora
Baronesa perguntou: e que farás tu com este dinheiro, meu menino. Eu
encolhi os ombros. Julguei que não seria para responder. Na nossa
pobreza, o dinheiro fazia o mesmo que a água no deserto. Sumiria
chão abaixo a sonhar mudar o mundo sem jamais mudar o mundo. Mas a
senhora insistiu. Perguntou: vais comprar uma bicicleta, uns patins,
podes comprar um comboio eléctrico. E eu disse: vou ver meu pai a
entregar à minha mãe. Minha mãe cuida de fazer contas porque senta
mais na mesa de casa, e eu ajudo a escrever o que ela pensa. A
senhora rica, talvez surpresa, ou igual, comentou que as mulheres
tinham o tino da casa e da família. Eram a matemática dos afectos.
E eu disse: as mães. Eu disse: minha mãe vai educar este dinheiro,
minha senhora.
As mães pressentem as contas
perfeitas. Mesmo que não saibam escrever. Elas pesam o mundo só com
o olhar, percebem como falta cor ao mato, como estardalham menos
pássaros. Elas sabem que desceram as águas das levadas, que os dias
encolheram nem que três minutos. As mães escutam mesmo que de
noite, durante o sono, e percebem que alguém partiu e a ilha está
mais sozinha.
Quando minha mãe puser as mãos neste
dinheiro, vai levá-lo onde adube, onde cubra, onde cure, onde faça
justiça. Este dinheiro, minha senhora, vai ser inteligente à força
da minha mãe. Vai aprender uma lição de vida. Vai ser como um
doutor. E eu ficarei feliz.
A senhora Baronesa respondeu:
Felicíssimo, o irmão. Acenei que sim. Felicíssimo. Como me sentia
desde que nosso santo nascera.
O capitão apertou-me entre as mãos
parecido a acertar-me os ossos dos ombros, e então nos libertou e
caminhámos dali para casa. Só dei conta dos olhos mareados do meu
pai muito mais tarde.
O mulherio vinha à rua para celebrar
nossa sorte, que tão pobres éramos e tão castigados pelo
nascimento de Pouquinho. Que obra bonita do Senhor ter-nos oferecido
aquela graça. E eu não me contive e festejei dizendo que o senhor
Capitão até prometera empregar-me mais tarde. Haveria de ter um
emprego, ao invés de fabricar nos poios estreitos, o bocadinho que
aquilo dava para a fome. Meu pai sorria com pena de mim. Não era
importante que esperássemos nada. A minha alegria não precisava de
ter tamanho maior do que aquele resto de noite. Estávamos mais
habituados a nem esperar alegria alguma. O mulherio era simpático.
Bilhardava, mas era o nosso povo. Compreendia a justiça de nossa
sorte naquele momento. Dava as boas-noites. Subia às casas e haveria
de especular sobre como gastaríamos tão grande dinheiro, como
talvez nem tivéssemos juízo para um dinheiro ganho assim. As
mulheres haveriam de especular se Pouquinho superaria os primeiros
dias, uns meses, um par de anos. Certamente, pensavam todas, daria
uma falha no crio sem chegar a dizer palavra. Haveria de morrer mudo
antes de acusar inteligência alguma, nenhum sinal de alma, nenhuma
identidade. O nosso povo pensava mesmo que Pouquinho não haveria de
proceder e tombaria num qualquer chelique sem resistência. Mais
valia que fosse feito um preparo para quando houvesse de acontecer.
Mais valia que se guardasse o dinheiro da Baronesa para as belezas
fúnebres do buzico. As mulheres diziam. Seria culto que os do cimo
do Buraco da Caldeira, os dos Pardieiros, guardassem aquele dinheiro
para dignificarem o buzico ao descer à terra. Nós, que de verdade
mais vivíamos nos pardieiros do que em casas, tínhamos pouco
conhecimento do que era ter dinheiro, pelo que o mais certo haveria
de ser estragá-lo sem valor algum. As pessoas bilhardavam assim.
Encantado, incrédulo e feliz, eu
queria explicar à minha mãe o que era o lustre na casa da Baronesa.
E ela perguntava: e havia algum lago. Havia peixes. E eu respondia:
só vi o lustre. Eu não sei mais nada. Esqueci-me de ver. Esqueci-me
do que vi. Só vi luz, minha mãe. Era tanta luz que eu julguei que a
compraram toda de uma vez ou raptaram. Abria do tecto para o chão e
chegava a pesar sobre as nossas cabeças. Eu acredito que vinha do
cristal. Aquilo não era vidro, o pai que o diga, tinha de ser
cristal ou água gelada. Eram as tripas todas da luz. Um animal de
tripas à mostra, porque era uma coisa cheia de aspecto de viver.
Pendia do tecto cheio de vida. Eu até acredito que se mexa. Deve
mexer aqueles braços que esticam suas mãos de lâmpadas. Como um
aranhiço gigante agarrado lá em cima sem descer. Mãe, a sua
bênção, mãe.
Tomava Pouquinho no colo e pensava que
um dia, quando eu estivesse empregado, entraria com o meu irmão
santo pela casa da Baronesa e ficaríamos a ver as lâmpadas.
Ficaríamos ambos sob as lâmpadas, até que a luz de verdade nos
caísse sobre o corpo e nos mexesse.
Naquele começo da noite, meu pai
desceu à casa de senhora Agostinha do Brinco e lhe entregou mil
escudos inteiros. Senhora Agostinha, que eu bem vi e ouvi de nossa
porta, recusou muito, cheia de vergonha e honestidade. O dinheiro
andava-lhes entre mãos como subitamente um gato vivo nos beirais,
equilibrista, a decidir se caminha mais esgueirado que as cabras em
qual direcção. Parecia contorcer-se ou escoar, parecia ser algo de
amparar como água que vertesse ou areia. Mas não havia areia na
nossa ilha. Nossas praias eram de calhau. Pisávamos em pedras sem
podermos largar o calçado. E eu escutava: ai, não pode ser, ai, não
sei se sim, meu Deus, Santo Deus, Deus seja louvado. Mas meu pai
insistiu até que assim tivesse de ser. Assim se educa o dinheiro.
Que por vezes se esquiva das mãos que o merecem. Esperneia por
pudores, vergonhas e demasiadas etiquetas. Meu pai, imediatamente
concordado com minha mãe, foi cuidar de Agostinha. E aquele dinheiro
ficou culto. Mais rico do que nunca.
A sua humildade assemelhava à nossa.
Qualquer alegria que nos viesse era imperioso que se dividisse em
parte com tão delicada vizinha. Tantas vezes minha mãe lhe descia
parte do que vinha das hortas, bocados de nossas galinhas ou coelhos,
até mais vasos e mais flores. O que fosse dos Pardieiros era em
parte de Agostinha. A sua alegria e solidão impunham muito a nossa
cristandade, e nossa cristandade acontecia com orgulho e dava provas
naquela relação. Nem que fosse para vê-la a vida inteira soprando
as pedrinhas, acariciando seus vasos, deitando água fresca na sua
terra para dar de beber ao intrincado das raízes. Nós, como os da
casa de senhora Luisinha do Guerra, gostávamos de Agostinha porque
ela era um bocado de família que tínhamos fora do sangue. Na
penumbra já da noite, eu ainda assim julguei ver como estavam seus
olhos vivos de gratidão. Como se avivavam à conversa de meu pai e
como já agradeciam com meu nome e com a sorte e a caridade. O buzico
abençoado que foi dar com os cachorros. Graças a Deus pelo buzico
que deu com os cachorros. Apertava finalmente o dinheiro ao peito, e
aquele dinheiro também lhe foi ao peito um coração.
Depois que meu pai subiu, espreitando
ainda, senhora Agostinha voltou aos seus vasos e pedrinhas e pareceu
despedir-se da própria escuridão, como se houvesse ali alguém. Não
era a primeira vez que me dera a impressão de ter por presente uma
ausência qualquer. Espanava no ar a mão, por vezes até dizia uma
palavra entredentes, e então entrava para acabar o dia. Na linguagem
de nossa terra, aquele gesto de Agostinha era o juízo completo e
também o sossego. Indicava a boa hora de recolhimento, uma espécie
de conclusão de tarefa e esforço, uma harmonização. Seria como
diziam dos livros. Que contam as histórias arrumando os assuntos até
quando se deve apenas respirar, dizer mais nada.
Como eu. Entrava e estava sempre certo
de que, até no esconso onde nosso pardieiro se fincava, o mundo
inventava maravilha. Era abrir os olhos para a saber ver. Eu abri os
olhos e pensei: tarda nada se vai deitar aqui o nosso santo. E eu vou
poder dizer: boa noite, meu irmão. Deus te cuide.
Valter Hugo Mãe, em Deus na escuridão

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