sábado, 19 de abril de 2025

Capítulo três – Minha mãe vai educar este dinheiro


A casa da Baronesa do Capitão era-nos imaginária. Passava-se na rua sem se poder ver nada de nada para o que iria lá dentro. Era de paredes opacas, de janelas apenas viradas para o mar. Ficava cega para quem chegava. Só quem lá entrasse haveria de se deparar com os luxos que se inventavam para lá existirem. Havia quem dissesse que, dentro da casa, tinha um lago com peixes vermelhos, móveis trazidos da China e do Japão todos esculpidos de dragões e árvores, penduravam-se quadros enormes pintados por pessoas antigas a mostrarem nobres de toda a Europa com seus penteados e joias, louças de cristal que produziam cintilâncias a competir com o mar inteiro, coisas de ouro, até nas toalhas, que punham ouro nos tecidos e nem se podiam lavar na água e sabão. A casa da Baronesa do Capitão era tão grande que poderiam caber ali cem pessoas sem sequer serem magras, e havia bancos para cada uma. Contudo, vivia ela com duas criadas de bico calado. Umas depenadas que só comiam ervas e cresciam nos olhos, sem casarem nem terem família. Pareciam duas estacas. Uns paus que acompanhassem, de lado e de outro, a mulher aperaltada. Contava-se muito que suas criadas serviam para sustentar bandeiras. Sacudiam as toalhas dos almoços ao sol e haveriam de parecer postes a fazer sinais de independência aos navios cruzando o horizonte.
Muitos homens tinham intenções de desonrar as criadas, que viviam com o destino de encalhadas. Mas não lhes encontravam tempos livres nem respostas. Ainda que não fossem de grande beleza, também não eram mortas. Valeriam para as piores intenções dos pervertidos. Isso piorava os humores da Baronesa, que tinha a impressão de que se alguém lhe tocasse nas criadas lhe diminuía o património e o poder. As criadas, mais do que domésticas, eram domesticadas. Por obedecerem, pareciam tão distantes da comunidade quanto a patroa. Sabíamos nada delas. Podiam ter sido apanhadas de um lixo qualquer. De um naufrágio. Podiam ter sido trazidas numa arca desde países vencidos. Poderiam ter sido achadas congeladas da pré-história. Eram iguais, verdadeiramente repetidas. Assemelhavam, mais e mais, com o tempo. Até nem terem nome. Ninguém lhes dava nome. Eram em dupla e equivaliam. Como se, de igual modo, também não fossem ninguém.
Dizia-se que a Baronesa era antipática e achacada a fúrias. Declarava sua frustração pelo mundo indelicado, corrupto, preguiçoso, feio, malcheiroso, ímpio, pecador, ganante, falso, que era o nosso. A mulher era tão crítica da humanidade que se precavia de maiores desgostos rejeitando à partida o convívio com os demais. Usava impropérios em alto som e um sem-fim de resmungos surdos. Se reparássemos bem, passava os dias a trilhar palavras silentes na boca. Caminhava e restava uma impressão de se ouvir algo, como alguém que deixasse uma certa poeira no ar. Era algo tão impreciso, tão sem corpo, que uma insinuação de vento dissipava logo a seguir. O Capitão, sempre embarcado a mandar nos militares, aparecia tão quase nunca que era mais raro que os avistamentos santeiros. A Baronesa existia toda à espera e talvez fosse isso mesmo que lhe dava amores pelos cachorros e um amuo constante pelas pessoas.
Costumávamos vê-la nas missas de domingo, mas jamais nos respondera aos bons-dias. Era demasiado importante e seguia ao centro das passadeiras e das alcatifas. Nós caminhávamos sempre pelas beiras. Encolhidos e sem feder. Tínhamos gratidão. A mulher nem era bonita e tanto poderia ter quarenta como setenta anos. Não havia maneira de avaliar. Era muito pintada e muito vestida. Mesmo em dias de calor, metia-se em casacos e lenços, espaventava toda e reluzia dos dedos e das orelhas. Até nos dentes havia qualquer coisa ao dependuro. Era muito estranha, um trogalho. Parecia menos uma pessoa e mais uma coisa de guardar em casa. Como se fosse uma complicação inútil, sem préstimo nem harmonia, sem galanteio, apaziguamento nem princípio, meio e fim. Algo a que se tivesse dado um nó que não se desfazia de jeito nenhum. Um sarilho que ninguém desensarilhava mais. Minha mãe confessava que lhe parecia as linhas de costuras quando os novelos se enroscavam e, depois de tanto se tentar, a solução estava apenas em tesourar por ali e deitar fora. A Baronesa só se comporia com uma tesourada, porque não se destrinçava vista de qualquer ângulo. Nós, confrontados com ela no percurso pedonal da igreja do Campanário, úteis, sempre úteis, desviávamos os rabos e os olhares e sempre dizíamos bom-dia. Ela passava muda, toda cheia de pudores entre suas criadas de guarda, e ia para o primeiro banco da igreja, como se fosse tratar de assuntos mais de perto com Deus. As pessoas do Campanário aquietavam-se, e a missa começava sempre com um cumprimento do padre ao auditório e, depois, outro à Baronesa do Capitão, que, por vezes, fungava para dar resposta.
Um dia, estávamos todos a mijar os maracujás que corriam o muro nascente da sua casa. Cheio de vergonha, eu também mijei porque sofri pela humilhação de minha mãe que fechou os olhos à passagem da Baronesa. As próprias criadas tremelicaram as pálpebras numa espécie de sobressalto que lhes provocou indignação, mas jamais se atreveriam a interferir, jamais intercederiam. Poderiam ser até mortas, assassinadas por desobediência. Se não eram dali, não tinham família, se houvessem de desaparecer por um buraco, ou na boca de algum bicho, ninguém andaria muito a perguntar por elas, sobre quando voltariam, sobre o que disseram à despedida. Ficariam no esquecimento em dois dias. E podiam ser substituídas por outras de mesmo efeito. Fardadas do mesmo modo, o bico calado, hasteando bandeiras disciplinadas na melhor tradição de nossos militares da marinha, quaisquer mulheres magrinhas e assustadas haveriam de poder desempenhar aquelas funções. Meu pai dizia que eram mais funções de temor do que de trabalho. Algumas pessoas eram empregues pelo medo que sentiam. E não exactamente pelo serviço que tinham de prestar.
Meu pai, incauto, absurdo e ingénuo, tinha idealizado pedir um emprego ao Capitão. Deixar de fabricar o campo e talvez emigrar, como emigravam os pais todos. Mas a Baronesa nem lhe permitiu concluir duas frases. Era avessa a súplicas e cheia de carentes em redor. Fazia sua caridade em silêncio. Que não seria mais do que deitar uma moedinha no ofertório dos domingos. Certamente uma moedinha tão pequena quanto a nossa. Minha mãe, de vexame, fechou os olhos. Ela fora sempre da opinião que a Baronesa não teria compaixão. Era descoroçoada. Sofria da cabeça. Era doente. Talvez nem devêssemos querer-lhe vingança alguma, que isso era tão feio. Deveríamos sentir tristeza por ela. Mais nada.
Eu e Nhanho e outros dois buzicos mijámos os maracujás porque nos havia constado que as criadas os vinham colher, e a Baronesa os comia consolada. Eu mijava quanto pudesse e pensava: Ave Maria, cheia de graça. Tinha vergonha. Mas também tinha honra e precisava de alguma fúria.
No dia em que Pouquinho nasceu, no entanto, o Capitão estava na ilha, e a Baronesa teve uma festa. Vieram do Funchal uns senhores para queimarem no jardim um fogo preso. Era um fogo de artifício que, ao cair da noite, ardeu em flor por uns breves minutos. Esqueceram, contudo, do medo dos cachorros. Os cachorros escapuliram-se estonteados e nunca mais foram vistos. Eram dois pequenatos, uns canitos felpudos que a mulher tratava como filhos de quatro patas. Um branco e outro loiro. Os dois importados de algum país com bichos de montra. Bichos de pousar de enfeite. Um chamava-se Artur e outro chamava-se Josefina. Um menino e uma menina. Meu pai assim contou à mesa e padre Estêvão sorria, minha mãe aconchegava Pouquinho ao peito, que adormecera novamente. Eu pensei que os cachorros haveriam de fugir para um canto lá em baixo. Não se levantariam na encosta. Mais depressa desceriam até ao calhau da praia, diante do Ilhéu. A Baronesa prometeu que daria cinco mil escudos a quem encontrasse seus queridos canitos. Cinco mil escudos. Era um dinheiro que valeria aos meus pais por meses. Eu disse: vou encontrar os bichos. Meu pai, desço para fabricar o campo como me pediu e, se me der licença, vou numa corrida ver se encontro os bichos da senhora do Capitão. Minha mãe estava à mesa. A única coisa que agora se dizia era que ela não se devia ter levantado. Era melhor que ficasse em sossego. Não valia a pena que se ocupasse de etiquetas. Os padres, dizia padre Estêvão, são de todas as casas sem sobressalto. Devem ser contados entre as coisas de serviço, como talheres e vassouras, mantas e cortinas, sifões e lâmpadas. São uma laranja sempre fresca. Minha mãe foi deitar-se. O padre saiu, e meu pai acabou por sentar-se ao espelho. Ali se calou por uns instantes. Esperava de seu próprio rosto um sinal. Que sinal seria, eu ainda não imaginaria. E talvez ele mesmo também não o pudesse imaginar. O seu pressentimento não era atendido. Eu fiquei convencido de que meu precioso pai ficara irremediavelmente sem qualquer atendimento. Padeceu disso. Haveria de padecer disso para sempre. Tornou-se um homem à espera do que não chegaria.
Éramos sem muitos abraços ou toques. Não se tocavam os corpos por uma limpeza de almas, porque os corpos sentiam vontades sujas e viravam impossíveis de confiança. Os meus pais, correctos, demitiam-se de muito mexer em mim ou em quem viesse de visita. Os cumprimentos faziam-se com o corpo todo à distância, a mão estendida para diante como se a mão fosse até embora. Sem perturas algumas. Sem aperto. Sem equívoco. Naquele instante, contudo, eu passei e pousei por menos do tempo de um segundo minha mão no seu ombro. Meu pai era tão parado para dentro do espelho que eu quis tocá-lo como batendo a uma porta que precisava de garantir que continuaria a abrir-se.
Fabricámos com alguma pressa porque eu atirava o pensamento aos cinco mil escudos, e meu pai anuía que haveria de ser um salário importante para nós. Rasgámos a terra sem grande brio, e era ele quem me ia empurrando dali para baixo a ver se dava sorte de caçar os dois bichos pequenos que valiam as notas tão grandes. Deixei-o na sementeira e, quando desci, passando pela venda da senhora Luisinha, fucei pelo Nhanho e mais perguntei se sabia de notícias dos canitos. Estavam todos pelas encostas a chamar os bichos. A senhora Luisinha dizia que se passava ali uma tarde sem ninguém, porque se atazanavam uns e outros para ganhar o mesmo dinheiro que só uma pessoa podia ganhar. E eu fui ganhá-lo.
Saltei abaixo da estrada e fui para onde havia escorrimentos da levada. Na minha ideia, os cachorros estariam onde pingasse para poderem beber. Na minha ideia, os cachorros estariam no baixo da nossa encosta, vindos no sentido do sol, a viajarem aquele bocado de quedas como se procurassem anoitecer também. Fariam como o sol, cumpririam o sentido do planeta. Parariam por onde caísse água e cheirasse a banana. As bananeiras muito carregadas e o odor intenso a exalar, era quase um odor luminoso. Parecia luz ou o próprio sol que brotava da fruta. E eu mal vi onde a levada rompia um pouco, onde tantas vezes eu próprio me pus de boca a beber, e escutei logo uns gemidos que podiam ser protestos ou pedidos de ajuda. Os cachorros da Baronesa eram refilões. Achavam que mandavam. Tinham umas boquitas delicadas, estepilhas, umas vozes medriquinhas, e eram lindos como os medriquinhas todos. Tomei-os no colo e beijaram-me as orelhas muito oferecidos ou gratos. Subi a ver meu pai. Ganharia os cinco mil escudos como se tivesse um trabalho de doutor. O meu orgulho não cabia no peito. Era a minha oferta ao nascimento de Pouquinho. Pensava eu. Pouquinho trazia sorte, trazia fortuna. Eu ria subindo pelos carreiros. Pararia por nada. Ia mostrar aos meus pais os bichos de enfeite. O Artur e a Josefina, dois peneirentos que não paravam de me lamber as orelhas, até por pequenas mordidas, como se quisessem que eu mudasse de direcção ou parasse de os apertar. Mas eu apertava. Não me cairiam. Valiam tanto dinheiro que eu não podia acreditar na sorte, na grata sorte de os encontrar.
Estavam nas goteiras abaixo da estrada. Um pouco depois, onde a levada se rompe e um fio de água sai dali para se beber. Estavam a beber, e eu julgo que esperavam que as bananas se descascassem sozinhas. Eu disse.
Minha mãe levantou as mãos e esperançou-se de uma qualquer réstia de sorte, o que também lhe aumentava o aspecto de sofrer. Ter sorte, naquele instante, ainda assim lhe aumentou o rosto de aflita. Tudo servia para revelar maior submissão à desgraça que nos competia.
Batemos ao portão da Baronesa do Capitão, e as criadas vieram abrir em gritinhos imediatos. As bilhardeiras todas já sabiam. Quando caminhámos de casa, satisfeitos e ligeirinhos, umas e outras vinham às janelas e bem que se informavam que os do cimo da Caldeira tinham conseguido o que todos queriam conseguir. Os dos Pardieiros. Pela rua, escutava-se com facilidade como os toques de telefone soavam. Porque as bilhardeiras se avisavam umas às outras, tão cheias de assunto quanto invejosas de não serem os seus maridos ou os seus filhos a carregarem os bichos. Os canitos nas mãos eram troféus peludos, irrequietos à aproximação da casa grande, excitados por estarem de regresso. Puseram-se aos saltos. Davam pinotes pelo ar, acrobáticos, até disparatados. As criadas congratulavam-se tanto que se fazia ali um barulho mal-educado. Quando a Baronesa assomou ao pátio, pararam. Sempre como um baldão, um bandalho de roupas e panos, um trogalho, a mulher fanicou em gemidos e guinchos de uma alegria esquisita. Era mais um ataque à sua saúde do que uma alegria normal. Pensava eu que por ser rica não tinha sentido algum. Era como ninguém que eu conhecesse ou de que tivesse ouvido falar. A mulher, certamente habituada a ser austera, nem sabia que aspecto haveria de ter uma alegria sincera.
Estava a descer o sol, já pelo fim da tarde se punha tudo mais escuro, mas a mulher rebrilhava e, por um instante algo longo, ficou ocupada apenas dos canitos. As bilhardeiras diziam que eram como os seus buzicos. Tinha os cachorros em mordomias que a maioria das pessoas não arranjavam na vida inteira. Então, erecta novamente, recuperando um pouco o fôlego, caiu sobre nós em abraços, e meu pai dizia: foi o Paulinho quem os encontrou. Paulinho nosso. Na sua voz, ia o amuo de ela lhe haver negado palavra e socorro. O imenso homem que era meu pai era um tamanho imenso da pobreza e da humilhação.
E eu mais cresci uns centímetros de orgulho, e ela mais caiu aos abraços sobre mim e começou a dizer: entrem. Entrem, por favor. A voz dava-lhe um desafino. Mudava de tom. Tinha um estrago qualquer que podia ser que cantasse ópera ao invés de falar. Indicava a porta de casa. A porta da grande casa imaginária onde ninguém a quem pudéssemos perguntar algum dia havia entrado. Entrámos.
Era logo ali uma sala imensa de onde pendia um lustre gigante, e eu não conseguia andar nem pensar em mais nada. Era um animal de cem lâmpadas acesas que pendia de um tecto altíssimo. Tinha de ser um bicho de luz, uma luz agarrada pela garganta, aberta ali sobre nossas cabeças como se esganassem o próprio sol para trabalhar à noite. E eu pensei que talvez fossem mais de cem lâmpadas e pensei que, como naquela manhã, os flamingos, eu não estaria a ver nada daquilo. E a mulher, deitando os cachorros aos cadeirões vermelhos, numa alegria sempre intensa, movediça, sem parar, mandava que trouxessem de beber. Algo que pudéssemos beber, e que chamassem o Capitão. Estava o Capitão algures. Era trazê-lo para pagar ao buzico. Dizia a Baronesa. Abençoado buzico que trouxera saudáveis seus companheiros gentis e raros. Eram franceses. Ela explicava. Francesíssimos. Genuínos e muito inteligentes. Tinham vindo no navio da marinha, e tinham sido adopções muito desejadas.
As criadas, repetidas como as figurinhas do futebol que se compravam por cinquenta centavos, descontrolavam-se na alegria. A senhora tinha ficado deitada em prantos e enxaquecas, queria morrer se lhe morressem os animais. Era trágica e sem limites. Aquela casa esteve num abismo de dor, absolutamente como se gente fosse levada pelas enxurradas ou estivesse ligada a máquinas de respirar nos hospitais. As duas Repetidas, sem poderem mais aproximar nem mexer, imitavam os gestos da patroa. Se a patroa se inclinava para outra vez pegar ao colo o Artur, as criadas faziam metade do gesto de se inclinarem. Se a patroa beijasse o bicho nas barbas, as criadas faziam metade do gesto de o beijarem nas barbas. Até o que a Baronesa dizia, uma das criadas dizia pela metade. Ela agradecia: que bênção me trazes, rapaz. E a criada dizia: bênção, rapaz. Eram miméticas. Habituaram-se a existir pelas sobras da patroa. E estavam felizes porque aquele sentimento era o alívio que lhes era permitido claramente depois de terem passado noite, manhã e tarde inteiras escravizadas ao desespero da patroa. Depois, foram as duas, tão excitadas quanto escorraçadas, buscar o Capitão. A Baronesa dizia: meu marido, imediatamente. E as magrinhas mulheres foram por um corredor adentro para o certo infinito da casa.
Quando o Capitão chegou à sala, o meu pai bebendo um vinho e eu a comer uma bolacha, encarou-me muito de perto e disse: valente, rapaz. És valente. A minha esposa não seria feliz sem estes cachorros. Vou pagar-te o prometido e mais te prometo um trabalho quando fores maior. Que tu tens cara de decente e tens cara de esperto. O país precisa de homens espertos como tu. Depois, parabenizou meu pai e falou-lhe a parecerem iguais, homens com semelhanças, entendidos no mesmo, como se fizessem as mesmas refeições e deitassem em camas também chinesas, com almofadas imensas que deglutiam as cabeças que lhes pousavam. Seriam dois homens a deitarem-se com mulheres de aparato esdrúxulo, com bicos de cabelo, arrebiques de panos pelo corpo todo, a despontarem na almofada sem se saber onde começavam e onde acabavam. Que estranhas as mulheres ou os homens dos quais não se sabe onde começam e onde acabam.
Quem os visse, podia pensar tratar-se de dois homens embarcados com poder, a chefiar navios da nação, a combater em guerras estrangeiras, salvando certamente o mundo, apontando canhões com pólvoras matadoras que eliminariam inimigos horrendos dos quais a ilha da Madeira nem chegava a ouvir falar. O Capitão inclinou-se sobre mim, regozijando, cheio de gratidão e folia, dizendo que eu seria o orgulho de meu pai. Meu pai haveria de ter uma fortuna num buzico quase grande como eu. E eu, sem demasiada inteligência, atrapalhado com o entusiasmo, perplexo com o lustre, a pensar no dinheiro e inconfessavelmente assustado com a maleita de Pouquinho, respondi: meu pai é um homem bom, senhor Capitão. É o homem de coração mais limpo de nossas terras, senhor Capitão. Subitamente, sem aparente razão, defendia sua honra porque, na minha angústia, o que nos desafiava perguntava acerca do nosso compromisso com o bem e com o mal. Acima de tudo, julgo que queria que meu pai escutasse. Quanto mais expressa fosse minha convicção de que ele era um bom homem, maior era a obrigação de ele o ser. Para mim, afigurava-se fundamental que ele tivesse a força para isso. Para não nos falhar.
Estávamos exactamente sob o lustre imenso, e eu tinha a impressão de que incandescia também. Sobre as nossas cabeças, como em movimento, a luz deitava tão abundante que eu pensava que haveria de me tocar. Teria de ganhar corpo e tocar-me. Como se fosse efectivamente animal e se soltasse por fim. O Capitão entregou-me as notas. Assim as entreguei também a meu pai. A senhora Baronesa perguntou: e que farás tu com este dinheiro, meu menino. Eu encolhi os ombros. Julguei que não seria para responder. Na nossa pobreza, o dinheiro fazia o mesmo que a água no deserto. Sumiria chão abaixo a sonhar mudar o mundo sem jamais mudar o mundo. Mas a senhora insistiu. Perguntou: vais comprar uma bicicleta, uns patins, podes comprar um comboio eléctrico. E eu disse: vou ver meu pai a entregar à minha mãe. Minha mãe cuida de fazer contas porque senta mais na mesa de casa, e eu ajudo a escrever o que ela pensa. A senhora rica, talvez surpresa, ou igual, comentou que as mulheres tinham o tino da casa e da família. Eram a matemática dos afectos. E eu disse: as mães. Eu disse: minha mãe vai educar este dinheiro, minha senhora.
As mães pressentem as contas perfeitas. Mesmo que não saibam escrever. Elas pesam o mundo só com o olhar, percebem como falta cor ao mato, como estardalham menos pássaros. Elas sabem que desceram as águas das levadas, que os dias encolheram nem que três minutos. As mães escutam mesmo que de noite, durante o sono, e percebem que alguém partiu e a ilha está mais sozinha.
Quando minha mãe puser as mãos neste dinheiro, vai levá-lo onde adube, onde cubra, onde cure, onde faça justiça. Este dinheiro, minha senhora, vai ser inteligente à força da minha mãe. Vai aprender uma lição de vida. Vai ser como um doutor. E eu ficarei feliz.
A senhora Baronesa respondeu: Felicíssimo, o irmão. Acenei que sim. Felicíssimo. Como me sentia desde que nosso santo nascera.
O capitão apertou-me entre as mãos parecido a acertar-me os ossos dos ombros, e então nos libertou e caminhámos dali para casa. Só dei conta dos olhos mareados do meu pai muito mais tarde.
O mulherio vinha à rua para celebrar nossa sorte, que tão pobres éramos e tão castigados pelo nascimento de Pouquinho. Que obra bonita do Senhor ter-nos oferecido aquela graça. E eu não me contive e festejei dizendo que o senhor Capitão até prometera empregar-me mais tarde. Haveria de ter um emprego, ao invés de fabricar nos poios estreitos, o bocadinho que aquilo dava para a fome. Meu pai sorria com pena de mim. Não era importante que esperássemos nada. A minha alegria não precisava de ter tamanho maior do que aquele resto de noite. Estávamos mais habituados a nem esperar alegria alguma. O mulherio era simpático. Bilhardava, mas era o nosso povo. Compreendia a justiça de nossa sorte naquele momento. Dava as boas-noites. Subia às casas e haveria de especular sobre como gastaríamos tão grande dinheiro, como talvez nem tivéssemos juízo para um dinheiro ganho assim. As mulheres haveriam de especular se Pouquinho superaria os primeiros dias, uns meses, um par de anos. Certamente, pensavam todas, daria uma falha no crio sem chegar a dizer palavra. Haveria de morrer mudo antes de acusar inteligência alguma, nenhum sinal de alma, nenhuma identidade. O nosso povo pensava mesmo que Pouquinho não haveria de proceder e tombaria num qualquer chelique sem resistência. Mais valia que fosse feito um preparo para quando houvesse de acontecer. Mais valia que se guardasse o dinheiro da Baronesa para as belezas fúnebres do buzico. As mulheres diziam. Seria culto que os do cimo do Buraco da Caldeira, os dos Pardieiros, guardassem aquele dinheiro para dignificarem o buzico ao descer à terra. Nós, que de verdade mais vivíamos nos pardieiros do que em casas, tínhamos pouco conhecimento do que era ter dinheiro, pelo que o mais certo haveria de ser estragá-lo sem valor algum. As pessoas bilhardavam assim.
Encantado, incrédulo e feliz, eu queria explicar à minha mãe o que era o lustre na casa da Baronesa. E ela perguntava: e havia algum lago. Havia peixes. E eu respondia: só vi o lustre. Eu não sei mais nada. Esqueci-me de ver. Esqueci-me do que vi. Só vi luz, minha mãe. Era tanta luz que eu julguei que a compraram toda de uma vez ou raptaram. Abria do tecto para o chão e chegava a pesar sobre as nossas cabeças. Eu acredito que vinha do cristal. Aquilo não era vidro, o pai que o diga, tinha de ser cristal ou água gelada. Eram as tripas todas da luz. Um animal de tripas à mostra, porque era uma coisa cheia de aspecto de viver. Pendia do tecto cheio de vida. Eu até acredito que se mexa. Deve mexer aqueles braços que esticam suas mãos de lâmpadas. Como um aranhiço gigante agarrado lá em cima sem descer. Mãe, a sua bênção, mãe.
Tomava Pouquinho no colo e pensava que um dia, quando eu estivesse empregado, entraria com o meu irmão santo pela casa da Baronesa e ficaríamos a ver as lâmpadas. Ficaríamos ambos sob as lâmpadas, até que a luz de verdade nos caísse sobre o corpo e nos mexesse.
Naquele começo da noite, meu pai desceu à casa de senhora Agostinha do Brinco e lhe entregou mil escudos inteiros. Senhora Agostinha, que eu bem vi e ouvi de nossa porta, recusou muito, cheia de vergonha e honestidade. O dinheiro andava-lhes entre mãos como subitamente um gato vivo nos beirais, equilibrista, a decidir se caminha mais esgueirado que as cabras em qual direcção. Parecia contorcer-se ou escoar, parecia ser algo de amparar como água que vertesse ou areia. Mas não havia areia na nossa ilha. Nossas praias eram de calhau. Pisávamos em pedras sem podermos largar o calçado. E eu escutava: ai, não pode ser, ai, não sei se sim, meu Deus, Santo Deus, Deus seja louvado. Mas meu pai insistiu até que assim tivesse de ser. Assim se educa o dinheiro. Que por vezes se esquiva das mãos que o merecem. Esperneia por pudores, vergonhas e demasiadas etiquetas. Meu pai, imediatamente concordado com minha mãe, foi cuidar de Agostinha. E aquele dinheiro ficou culto. Mais rico do que nunca.
A sua humildade assemelhava à nossa. Qualquer alegria que nos viesse era imperioso que se dividisse em parte com tão delicada vizinha. Tantas vezes minha mãe lhe descia parte do que vinha das hortas, bocados de nossas galinhas ou coelhos, até mais vasos e mais flores. O que fosse dos Pardieiros era em parte de Agostinha. A sua alegria e solidão impunham muito a nossa cristandade, e nossa cristandade acontecia com orgulho e dava provas naquela relação. Nem que fosse para vê-la a vida inteira soprando as pedrinhas, acariciando seus vasos, deitando água fresca na sua terra para dar de beber ao intrincado das raízes. Nós, como os da casa de senhora Luisinha do Guerra, gostávamos de Agostinha porque ela era um bocado de família que tínhamos fora do sangue. Na penumbra já da noite, eu ainda assim julguei ver como estavam seus olhos vivos de gratidão. Como se avivavam à conversa de meu pai e como já agradeciam com meu nome e com a sorte e a caridade. O buzico abençoado que foi dar com os cachorros. Graças a Deus pelo buzico que deu com os cachorros. Apertava finalmente o dinheiro ao peito, e aquele dinheiro também lhe foi ao peito um coração.
Depois que meu pai subiu, espreitando ainda, senhora Agostinha voltou aos seus vasos e pedrinhas e pareceu despedir-se da própria escuridão, como se houvesse ali alguém. Não era a primeira vez que me dera a impressão de ter por presente uma ausência qualquer. Espanava no ar a mão, por vezes até dizia uma palavra entredentes, e então entrava para acabar o dia. Na linguagem de nossa terra, aquele gesto de Agostinha era o juízo completo e também o sossego. Indicava a boa hora de recolhimento, uma espécie de conclusão de tarefa e esforço, uma harmonização. Seria como diziam dos livros. Que contam as histórias arrumando os assuntos até quando se deve apenas respirar, dizer mais nada.
Como eu. Entrava e estava sempre certo de que, até no esconso onde nosso pardieiro se fincava, o mundo inventava maravilha. Era abrir os olhos para a saber ver. Eu abri os olhos e pensei: tarda nada se vai deitar aqui o nosso santo. E eu vou poder dizer: boa noite, meu irmão. Deus te cuide.

Valter Hugo Mãe, em Deus na escuridão

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