sábado, 27 de fevereiro de 2021

Dois runs para regar o acordo

          Olhei o estranho personagem diante de mim. Tinha os olhos fixos em mim, os pequenos olhos redondos negros, com veiazinhas na parte branca. Eu os sentia me trespassar e revistar, insaciáveis.
Então? — disse — e depois?
Zorba ergueu de novo seus ombros ossudos.
Deixe de lado — disse. — me dá um cigarro?
Dei. Tirou de seu colete uma pedra-de-fogo, uma mecha e acendeu. Seus olhos se entrefecharam, satisfeitos.
Você já foi casado?
Sou homem — respondeu agastado. — sou homem, quero dizer, sou um cego. Eu também caí nesse poço, de cabeça para baixo como todo mundo. Casei-me. Mas não tive sorte. Virei chefe de família. Construí uma casa. Tive filhos. Amolações. Mas, bendito seja o santuri!
Você tocava em casa para espantar as amolações? Não é isso?
Ah! Meu amigo, vê-se bem que você nunca tocou um instrumento! Que ideia é essa? Em casa você tem amolações, a mulher, as crianças. Que é que vai se comer? Com quer roupa a gente vai se vestir? Que é que vai ser de nós? O inferno, em suma! Nada disso; para o santuri, é preciso estar embalado, é preciso estar puro. Se minha mulher diz uma palavra a mais, como quer você que eu toque o santuri? Se as crianças querem comer e começam a chorar, lá se vai toda a vontade. Para se tocar santuri, a gente tem que se voltar todo para ele, e para nada mais, compreende?
Eu compreendia é que Zorba era o homem que eu buscava sem encontrar. Um coração vivo, uma boca voraz, uma grande alma bruta. O sentido das palavras amor, arte, beleza, pureza e paixão — esse trabalhador rude esclarecia para mim com as palavras mais singelas do homem.
Olhava para essas mãos que sabiam manejar a picareta e o santuri — calejadas e esburacadas, deformadas e nervosas. Com precaução e ternura, como se estivessem despindo uma mulher, elas abriram a sacola e de lá tiraram um velho santuri polido pelos anos, com muitas cordas, guarnecido de cobre e marfim, com uma borla de seda vermelha. Os dedos grossos o acariciavam por inteiro, apaixonadamente, como se fosse uma mulher. Depois, guardaram de novo o instrumento como se cobrissem o corpo amado para que não sentisse frio.
E aí está o meu santuri! — murmurou ele, fazendo-o repousar com precaução sobre a cadeira.
Os marinheiros agora faziam tilintar os seus copos, rindo às gargalhadas. O velho bateu com amizade nas costas do Capitão Lemoni.
Teve muita sorte, não foi Capitão Lemoni? Diga lá se não é verdade! Você fez uma promessa a São Nicolau? Só Deus sabe quantas velas você prometeu a São Nicolau!
O Capitão franziu suas sobrancelhas espessas.
Eu juro pelo mar, rapazes, que quando a vi a morte tão perto não pensei na Virgem Santa nem em São Nicolau! Voltei-me na direção de Salamina, pensei em minha mulher e gritei: “Ah! Catarina, quem me dera estar na tua cama!”
Uma vez mais os marinheiros riram, e com eles o Capitão Lemoni.
Vejam só, que animal estranho é o homem! — disse ele. — O Arcanjo da Morte com a espada sobre sua cabeça e ele só pensa nisso, exatamente nisso, em nada mais! Que o Diabo o carregue, porco!
Bateu palmas.
Garçom, traga bebida para o pessoal!
Zorba escutava, suas grandes orelhas atentas. Virou-se olhou os marinheiros e depois a mim.
Nisso o que? — perguntou. — que diz ele?
Subitamente compreendeu, e teve um sobressalto.
Bravos, velho! — disse em tom respeitoso. — esses marinheiros sabem o segredo. Talvez por que lutam dia e noite contra a morte.
Agitou no ar sua manopla.
Bom — disse, — isso é outra história. Voltemos à nossa: eu fico ou vou-me embora? Decida.
Zorba — disse eu, esforçando-me para não me atirar em seus braços. — Zorba, de acordo! Você vem comigo. Tenho linhita em Creta, você vigiará os operários. De noite, iremos nos deitar na praia... Não tenho no mundo nem mulher, nem crianças, nem cachorro... Comeremos e beberemos juntos. Depois, você tocará santuri...
... Se eu tiver vontade, você sabe, só se eu tiver vontade. Trabalhar para você está certo, quando quiser. Sou homem seu. Mas o santuri é diferente. É um animal selvagem, e precisa de liberdade. Se eu tiver vontade, eu toco e chegarei mesmo a dançar. E dançarei o zeimbekiko (dança dos Seimbeks, tribo litorânea da Ásia Menor), o hassapiko (dança dos açougueiros), o pendozali (dança cretense dos guerreiros) — mas digo desde logo, só se eu tiver vontade. Bons entendimentos fazem bons amigos. Se você me forçar, acabou-se. Para essas coisas, é preciso que você saiba, sou um homem.
Um homem? O que quer dizer com isso?
Pois bem, livre!
Garçom — chamei! — Mais um rum!
Dois runs! — gritou Zorba. — Você vai beber um também porque vamos brindar. Infusão e rum não dá bom brinde. Você vai tomar rum também, para regar nosso acordo.
Fizemos chocar os cálices. Agora já era dia. O navio apitava. O carregador que havia embarcado minhas malas me fez sinal.
Que Deus nos acompanhe — disse ao me levantar. — vamos indo!
... E o Diabo — completou tranquilamente Zorba.
Abaixou-se, pôs o santuri sob o braço, abriu a porta e passou na frente.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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