Viver
é legendar o mundo, diz o narrador sem nome de Vermelho amargo,
novela feroz e sedutora de Bartolomeu Campos de Queirós (Cosac
Naify). “Viver exigia legendar o mundo. Cabia-me o trabalho
exaustivo de atribuir sentido a tudo.” A literatura é isto: uma
legenda. Sem ela, o real se torna ilegível. Leio o comovente relato
de Bartolomeu e penso em Arthur Bispo do Rosário, artista e
esquizofrênico, que carregou a missão de enquadrar os objetos
existentes para, só assim, salvá-los do grande dilúvio. Bispo os
acumulou em imensos painéis, presos em frágeis molduras de madeira.
Sua arte era reter o que, sem a moldura, se perderia.
Bartolomeu
repete, com as palavras, o esforço de Bispo. Seu anti-herói, cuja
aventura é sobreviver em um mundo que se desmancha, pensa: “Dar
sentido é tomar posse dos predicados. Trabalho incessante, este de
nomear as coisas. Chamar pelo nome o visível e o invisível é
respirar consciência”. Fala de sua luta para tomar posse da
língua, mas aponta também para a literatura, que, sem ser algema ou
estaca, ainda assim prende e sustenta, em um delicado fio de
palavras, aquilo que, de outra forma, se perderia. Mais ainda: aquilo
que, sem o contorno de um nome, não chegaria a existir.
“Dar
nome ao real que mora escondido na fantasia é clarear o obscuro”,
continua o desolado narrador. Que ele não tenha um nome já é, por
si, a marca do que lhe falta. Tudo – mesmo os sentimentos mais
remotos e obscuros – precisa de uma forma. Em seu amargo relato, a
forma que dá corpo ao sofrimento é a de um prosaico tomate. O fruto
vermelho que a madrasta, com precisão e ódio, reparte em lâminas
finas, para depois coroar os pratos de comida com que alimenta a
família, neles assinando sua presença.
Desde
a morte da mãe, o menino sofre da falta de amor. A mãe partiu de
repente, sem ser avisada. “A mão da morte soterrou até sua
sombra.” Só há uma coisa que não se deixa escrever: a morte.
Escrevemos a palavra, “morte”, mas ela não passa de uma casca.
Sem uma palavra que corresponda ao que perdeu, o menino arrasta sua
alma como carga. Ela só deixará de pesar no dia em que, enfim, for
escrita. A mãe morta ressurge, como fantasma, nas panelas, nos
armários, nas flores. Falta-lhe, porém, uma palavra, que “é
flecha para sangrar o abstrato morto”. Uma vez fisgado pela língua,
o objeto morto encontra, enfim, seu destino: um nome. Palavras só
falam de ausências. O real é aquilo que não se pega.
Entre
a ausência da mãe e o ódio sangrento da madrasta, o menino se
descobre no exílio. “A cidade partida me fazia, sempre, um morador
do outro lado. Não havia opção: em qualquer lugar eu estaria em
outra margem.” Defronta-se, assim, com a condição do humano, que
é estar deslocado de seu centro. Somos, todos, descentrados; fomos,
todos, expulsos do paraíso. O sentimento de exílio se radicaliza
quando ele se vê deslocado também de seu corpo. “Sempre sou um
outro morando em mim.” Descobre, desolado, que o sentido é mais
uma pergunta do que uma resposta. Aproxima-se, de novo, da literatura
que, sem pretender explicar o mundo, ou dele dar conta, contenta-se
em acariciá-lo.
Sempre
achei que a literatura é uma carícia. Ela nos oferece um caminho de
delicadeza – o mais próximo do humano que já conheci. Lendo a
bela narrativa de Bartolomeu, sinto isso de novo. Para fugir de um
tomate que é “só cor e cólera”, o menino se apega à fantasia.
Dizendo melhor: descobre que precisa encobrir o real com o manto das
palavras. O real, sim, é o fantasma, pois só o vemos quando aparece
envolto em um lençol branco. Ainda assim, o que vemos é o lençol,
e não ele; sua forma apenas se insinua, nada mais. Também o menino,
com a morte da mãe, aprendeu a “ler na ausência”. Lemos um
lençol que nos sobrevoa e pensamos: “fantasma”. Mas o que ele
esconde não sabemos.
Retida
nas iras terrenas, amarrada a pequenos ódios, a madrasta, mais
ácida, prefere conversar com o fogo. Apega-se a seu fogão:
“Atiçava, e as chamas ressuscitavam, estralando em suspiros”.
Enquanto ela assa seu rancor, a mãe morta dorme no Nada. No fundo,
onde está agora, “o peso da terra é definitivo véu”. Nem a luz
das palavras desfaz o breu da morte. “No bem fundo, não há
palavra capaz de soar.” A morte é a morte da palavra. O que se
enterra não é o corpo, mas a língua.
Ampara-se
o menino em seus irmãos. No mais velho, que leva pedaços de vidro
nos bolsos e, escondido, os mastiga. É o irmão que, com sua boca
sangrenta, sabe ler: “Decifrava as palavras e seus escuros”.
Observando-o, descobre que, mesmo distantes das coisas, as palavras o
ajudam a existir. “Escrevia, por isso pensava – suspeitei.”
Admira os irmãos de longe, sem ilusões, pois sabe que o coração
do outro “é uma terra que ninguém pisa”. Sente, ao contrário,
o coração pisado pelo amor. Está apaixonado. Mas um homem só pisa
em si mesmo. O outro é sombra.
Também
sem nome, a irmã mais nova, que adotou um gato mudo, passa a miar. A
mais velha, que gostava de bordar, depois de casar-se abandona sua
arte. Antes, com uma agulha muito fina, passava as tardes a desenhar
o mundo. Mesmo a fantasia, porém, precisa de um trinco, uma aldrava,
um fecho – ou tudo se perde. “Quando a linha estava por terminar,
ela dava um nó forte para não deixar fugir sua imaginação.”
Caso contrário, a fantasia se desmancha. É como a língua, que
precisa da pontuação, ou sufocamos nas palavras.
Conforme
os irmãos partem, as fatias do tomate engrossam – pois a madrasta
só corta um tomate por dia. O menino adota o fruto amargo como seu
calendário. Comer um tomate é ter um tomate a menos para comer; é
abrir espaço para a invenção. Só quando chega à escola, descobre
o poder da língua. “As palavras eram meus barcos. Com elas
atravessaria as ondas, venceria as calmarias, aportaria em outra
terras.” Não é que a palavra fixe; ao contrário, ela empurra e
descentra. Seres deslocados, precisamos de um mundo que se mova
também. O ranger do tranco entre palavra e coisa é o que chamamos
vida. Dar nomes às coisas, legendar o real, é no fim nosso pequeno
destino.
José
Castello, in Sábados inquietos
Nenhum comentário:
Postar um comentário