sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O inferno capitalista

Há uma razão ainda mais fundamental pela qual é perigoso dar rédea solta aos mercados. Adam Smith ensinou que o sapateiro usaria seu excedente para empregar mais assistentes. Isso implica que a ganância egoísta é benéfica para todos, já que os lucros são usados para expandir a produção e contratar mais empregados.
Mas o que acontece se o sapateiro ganancioso aumenta os lucros pagando menos aos empregados e aumentando a jornada de trabalho deles? A resposta padrão é que o livre mercado protegeria os empregados. Se nosso sapateiro paga pouco e exige muito, os melhores empregados naturalmente o abandonariam e iriam trabalhar para a concorrência. Ao sapateiro tirano restariam os piores trabalhadores, ou nenhum. Ele teria de se remediar ou sair do negócio. Sua própria ganância o impeliria a tratar bem seus empregados.
Isso, na teoria, parece à prova de balas, mas na prática as balas passam com demasiada facilidade. Em um mercado completamente livre, não supervisionado por reis e padres, capitalistas avarentos podem criar monopólios ou entrar em conluio contra sua mão de obra. Se houver uma única corporação controlando todas as fábricas de sapatos em um país, ou se todos os proprietários de fábricas conspirarem para reduzir os salários simultaneamente, os trabalhadores já não serão capazes de se proteger mudando de emprego.
O que é ainda pior, chefes gananciosos podem restringir a liberdade de ir e vir dos trabalhadores por meio da servidão por dívida ou da escravidão. No fim da Idade Média, a escravidão era quase desconhecida na Europa cristã. Durante o início da era moderna, a ascensão do capitalismo europeu andou de mãos dadas com a ascensão do comércio de escravos no Atlântico. Forças mercantis irrestritas, e não reis tirânicos ou ideólogos racistas, foram responsáveis por essa calamidade.
Quando os europeus conquistaram a América, eles abriram minas de ouro e de prata e fundaram plantações de açúcar, tabaco e algodão. Essas minas e plantações se tornaram o sustentáculo da produção e da exportação americanas. As plantações de açúcar foram de especial importância. Na Idade Média, o açúcar era um luxo raro na Europa. Era importado do Oriente Médio a preços proibitivos e usado com parcimônia como um ingrediente secreto em iguarias e medicamentos à base de óleo de cobra. Depois que grandes plantações de açúcar foram estabelecidas na América, quantidades cada vez maiores de açúcar começaram a chegar à Europa. O preço do açúcar caiu, e a Europa desenvolveu um paladar insaciável por doce. Os empreendedores satisfizeram essa necessidade produzindo enormes quantidades de bolos, biscoitos, chocolates, doces e bebidas adocicadas feitas com cacau, café e chá. A ingestão anual de açúcar de um inglês cresceu de quase zero no início do século XVII para aproximadamente oito quilos, em média, no início do século XIX.
No entanto, cultivar cana e extrair seu açúcar era uma atividade que demandava trabalho intensivo. Poucas pessoas queriam trabalhar longas jornadas em campos de açúcar infestados de malária sob um sol tropical. Trabalhadores contratados teriam resultado em um produto caro demais para o consumo em massa. Cientes das forças do mercado, e ávidos por lucro e crescimento econômico, os europeus donos das plantações se voltaram para os escravos.
Do século XVI ao século XIX, por volta de 10 milhões de escravos africanos foram importados para a América. Cerca de 70% deles trabalharam nas plantações de açúcar. As condições de trabalho eram abomináveis. A maioria dos escravos viviam uma existência curta e miserável, e outros milhões morriam durante guerras travadas para capturar escravos ou durante a longa viagem do interior da África à costa da América. Tudo isso para que os europeus pudessem saborear seus doces e chás adocicados – e para que os barões do açúcar pudessem desfrutar de lucros enormes.
O comércio de escravos não era controlado por nenhum Estado ou governo. Foi uma iniciativa puramente econômica, organizada e financiada pelo livre mercado de acordo com as leis da oferta e da demanda. As empresas privadas de comércio de escravos vendiam ações nas bolsas de valores de Amsterdã, Londres e Paris. Europeus de classe média à procura de um bom investimento compravam essas ações. Contando com esse dinheiro, as empresas compravam navios, contratavam marinheiros e soldados, compravam escravos na África e os transportavam para a América, onde vendiam escravos aos donos das plantações, usando a receita para comprar produtos como açúcar, cacau, tabaco, algodão e rum. Eles regressavam à Europa, vendiam o açúcar e o algodão por um bom preço e então navegavam para a África para começar outra rodada. Os acionistas ficavam muito satisfeitos com esse arranjo. Ao longo do século XVIII, o rendimento sobre os investimentos no comércio de escravos foi de cerca de 6% ao ano – eram extremamente lucrativos, como qualquer consultor de hoje admitiria sem demora.
Essa é a pedra no sapato do capitalismo de livre mercado. Não há como garantir que os lucros sejam ganhos de forma justa, ou distribuídos de maneira justa. Ao contrário, a ânsia por aumentar os lucros e a produção cega as pessoas para qualquer coisa que possa estar no caminho. Quando o crescimento se torna um bem supremo, irrestrito por qualquer outra consideração ética, pode facilmente levar à catástrofe. Algumas religiões, como o cristianismo e o nazismo, mataram milhões por ódio fervoroso. O capitalismo matou milhões por pura indiferença unida à ganância. O comércio de escravos no Atlântico não derivou do ódio racista para com os africanos. Os indivíduos que compraram as ações, os corretores que as venderam e os administradores das empresas de comércio de escravos raramente pensavam nos africanos. O mesmo pode ser dito dos proprietários das plantações de açúcar: muitos deles viviam longe das plantações e a única informação que exigiam eram livros contábeis com registros precisos de lucros e perdas.
É importante lembrar que o comércio de escravos no Atlântico não foi uma aberração em um registro imaculado. A Grande Fome de Bengala, discutida no capítulo anterior, foi causada por uma dinâmica similar: a Companhia das Índias Orientais britânica se importava mais com seus lucros do que com a vida de 10 milhões de bengaleses. As campanhas militares da VOC na Indonésia eram financiadas por burgueses holandeses honestos que amavam seus filhos, faziam doações de caridade e apreciavam boa música e boa arte, mas não tinham consideração alguma pelo sofrimento dos habitantes de Java, Sumatra e Malaca. Inúmeros outros crimes e contravenções acompanharam o crescimento da economia moderna em outras partes do planeta.
O século XIX não trouxe nenhuma melhoria na ética do capitalismo. A Revolução Industrial que varreu a Europa enriqueceu os banqueiros e os donos do capital, mas condenou milhões de trabalhadores a uma vida de pobreza abjeta. Nas colônias europeias as coisas eram ainda piores. Em 1876, o rei Leopoldo II, da Bélgica, fundou uma organização humanitária não governamental com o objetivo declarado de explorar a África Central e combater o comércio de escravos ao longo do rio Congo. Também foi encarregada de melhorar as condições para os habitantes da região, construindo rodovias, escolas e hospitais. Em 1885, as potências europeias concordaram em conceder a essa organização o controle de 2,3 milhões de quilômetros quadrados na bacia do Congo. Esse território, 75 vezes o tamanho da Bélgica, ficou conhecido a partir de então como o Estado Livre do Congo. Ninguém pediu a opinião dos 20-30 milhões de habitantes do território.
Em pouco tempo a organização humanitária se tornou um negócio cujo objetivo real era o crescimento e o lucro. As escolas e os hospitais foram esquecidos, e em vez disso a bacia do Congo se encheu de minas e plantações, controladas principalmente por oficiais belgas que exploraram a população local de maneira brutal. A indústria da borracha foi particularmente notória. A borracha estava rapidamente se tornando uma mercadoria industrial, e a sua exportação era a principal fonte de receita do Congo. Os aldeães africanos que coletavam a borracha eram obrigados a fornecer cotas cada vez maiores. Aqueles que não conseguiam fornecer sua cota eram punidos brutalmente por sua “preguiça”. Seus braços eram cortados e, em certas ocasiões, aldeias inteiras eram massacradas. De acordo com as estimativas mais precisas, entre 1885 e 1908 a busca por crescimento e lucros custou a vida de 6 milhões de indivíduos (pelo menos 20% da população do Congo). Algumas estimativas chegam a 10 milhões de mortes.
Depois de 1908, e especialmente depois de 1945, a ganância capitalista foi um pouco freada, sobretudo por temor ao comunismo. Mas as desigualdades continuam extremas. O bolo econômico de 2015 é muito maior que o de 1500, mas é distribuído de maneira tão desigual que muitos camponeses africanos e trabalhadores indonésios voltam para casa depois de um dia duro de trabalho com menos comida do que seus ancestrais há 500 anos. De modo muito similar à Revolução Agrícola, o crescimento da economia moderna talvez também se revele uma fraude colossal. A espécie humana e a economia global podem muito bem continuar crescendo, mas muito mais indivíduos passam fome e privação.
O capitalismo tem duas respostas para essa crítica. Primeiro, o capitalismo criou um mundo que ninguém além de um capitalista é capaz de governar. A única tentativa séria de governar o mundo de uma forma diferente – o comunismo – foi tão pior em praticamente todos os aspectos concebíveis que ninguém tem estômago para tentar de novo. Em 8500 a.C., alguém podia derramar lágrimas amargas por causa da Revolução Agrícola, mas era tarde demais para desistir da agricultura. Da mesma forma, podemos não gostar do capitalismo, mas não podemos viver sem ele.
A segunda resposta é que só precisamos de um pouco mais de paciência – o paraíso, prometem os capitalistas, está logo ali na esquina. É verdade, cometeram-se erros, como o comércio de escravos no Atlântico e a exploração da classe trabalhadora europeia. Mas aprendemos a lição, e, se esperarmos só mais um pouquinho e deixarmos o bolo crescer um pouco mais, todos receberão uma fatia maior. A divisão de espólios nunca será igual, mas haverá o suficiente para satisfazer cada homem, mulher e criança – até mesmo no Congo.
De fato, há alguns sinais positivos. Pelo menos quando usamos critérios puramente materiais – como expectativa de vida, mortalidade infantil e ingestão de calorias –, o padrão de vida médio dos humanos em 2015 é significativamente maior do que era em 1913, apesar do crescimento exponencial no número de humanos.
Mas o bolo econômico pode crescer indefinidamente? Todo bolo requer matérias-primas e energia. Os profetas do apocalipse alertam que, mais cedo ou mais tarde, o Homo sapiens irá exaurir as matérias-primas e a energia do planeta Terra. E o que acontecerá depois?
Yuval Noah Harari, in Sapiens: Uma Breve História da Humanidade

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