sábado, 11 de janeiro de 2025

O homem que se assombrava com o cotidiano



Nem todo cotidiano é assombroso, mas todo assombro é cotidiano para quem vive em estado de poesia. E viver em estado de poesia não é passar a vida flutuando, sem gravidade, catando palavras para tirar peso da rotina. Pelo contrário, viver nesse estado é ver gravidade em tudo, dar peso ao ínfimo, olhar o dia a dia com olho de susto e despedida.
Dessa forma, por escolha, por vocação, por dom, por irresistível danação, Mario Quintana atravessou a vida em estado de poesia, como se cada segundo fosse o primeiro e o derradeiro, com a perplexidade da criança pequena, para quem tudo é surpresa, tormento e deslumbre, e com a irreversível clareza de um condenado que caminha pelo corredor da morte, rendido à vitalidade de cada um dos seus passos mundanos, obcecado por gerúndios de adiar finitude, parando para olhar, olhando sem parar, escrevendo.

O olhar
O último olhar do condenado não é nublado sentimentalmente por lágrimas
nem iludido por visões quiméricas,
O último olhar do condenado é nítido como uma fotografia:
vê até a pequenina formiga que sobe acaso pelo rude braço do verdugo,
vê o frêmito da última folha no alto daquela árvore, além…
Ao olhar do condenado nada escapa, como ao olhar de Deus
um porque é eterno,
o outro porque vai morrer.
O olhar do poeta é como o olhar de um condenado…
como o olhar de Deus…

Sem que nada escapasse do seu olhar, assombrado por tudo o que é aparentemente mais banal e sem importância no mundo, Mario Quintana fez dos seus dias uma permanente entrega amorosa ao que há de mais atazanante, belo, doído, hipnótico, melancólico, poético em todos os sentidos.
Quintana dizia que a poesia não se entrega a quem a define. Será que definir o poeta seria bater a porta na cara da poesia? Não sei, escrevo para descobrir. E, sem barulho de porta batida, paro numa das frases mais reveladoras do autor: “Não é o leitor que descobre o poeta, mas o poeta que descobre o leitor e o revela a si mesmo”.
Revelações à parte, ou incluídas, Mario também dizia que ser poeta não é uma maneira de escrever, é uma maneira de ser. Dessa forma, no seu permanente exercício de ser poeta, Mario Quintana escreveu que o fato é um aspecto secundário da realidade, mas, de fato, Mario via poesia em tudo e transfigurava o que olhava em palavras. “Toda confissão não transfigurada pela arte é indecente”, constatou o escritor, que passou a vida confessando seu amor por cachorros vira-luas, jardins ignorados, monstros órfãos, barulhos extraviados, verdades esquecidas e horas descascadas nos seus textos povoados por naufrágios sem gritos, desejos indisfarçáveis, sedes que não passam, desesperos engarrafados, vozes roubadas, fidelidades sem compromisso, ruas descalças, ventos escondidos, fantasmas despidos na bruma, céus quebrados no chão, oferendas de mãos vazias, alegrias sem guizos.
Apesar da sua paixão por exclamações, Mario Quintana atravessa sem guizos, na ponta dos pés, as geografias mais íntimas e atordoantes do dia a dia. Sim, Mario atravessa na ponta dos pés os seus assombros cotidianos e nos sussurra o que não conseguimos ver nem escutar por conta dos nossos embrutecimentos mais invisíveis, das nossas pressas mais paralisantes, dos nossos sobressaltos mais insondáveis, das nossas urgências mais obstrutoras.
Do mesmo modo, apaixonado por reticências, tão frequentes nos seus textos, Quintana entra nas vielas da transitoriedade, devassa os sótãos do efêmero e lê a decadência dos nossos desconcertos, a palidez das nossas taquicardias, o velório dos nossos juízos, diante da inevitável vontade de retardar pontos finais.
Alfabetizado em absurdos, Quintana também lê o que nos perpassa por dentro, no rastro de embaraços encobertos, exames de inconsciência, entrelinhas amarelecidas, frestas soterradas, carcaças de sonhos, febres perdidas, impressões de soslaio no espelho. “Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente… E não a gente a ele!”, afirmou o poeta.
Como então organizar e selecionar uma antologia de quem sabe nos ler no escuro em tantos textos profundamente luminosos? De luz acesa na madrugada ou em breus amanhecidos, ao longo de intermináveis releituras, mais difícil do que escolher o que incluir nessa antologia, claro, foi decidir o que deixar de fora. Para tudo na vida, abrir mão do que não gostamos nem sempre é difícil, mas renunciar ao que amamos, por um nobre motivo como o de organizar este livro, é recortar paisagens para expandir cenas, fechar portas para achar contornos, esquecer pertencimentos para ser fiel à própria essência.
Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua”, disse Mario, que passou a existência gazeteando escolas de enquadrar poetas, rotular formas, comportar belezas. “A beleza não comporta adjetivos”, escreveu.
Além de traduzir alguns dos mais descomportados escritores de todos os tempos, entre eles Virginia Woolf, Marcel Proust, Honoré de Balzac, Graham Greene, Saint-Exupéry, Voltaire e Guy de Maupassant, Mario Quintana transpõe a alma das coisas e as coisas da alma. “Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que mormaço fazia mal, sempre gritava: ‘Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!’. Mas eu via o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças!”
Mais do que tudo, os textos de Mario Quintana são mormaços de pegar leitor. Agora esqueça protetores, desproteja-se, exponha-se aos desconcertos do poeta. Desajuste-se para respirar, respire para se desajustar.

Emergência
Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.

Para não nos afogarmos na ausência de janelas, nem nos sufocarmos no excesso de paredes, mais do que nunca ler Mario Quintana é uma emergência.

Márcio Vassallo, em Assombros cotidianos – Antologia

Nenhum comentário:

Postar um comentário