Nem
todo cotidiano é assombroso, mas todo assombro é cotidiano para
quem vive em estado de poesia. E viver em estado de poesia não é
passar a vida flutuando, sem gravidade, catando palavras para tirar
peso da rotina. Pelo contrário, viver nesse estado é ver gravidade
em tudo, dar peso ao ínfimo, olhar o dia a dia com olho de susto e
despedida.
Dessa
forma, por escolha, por vocação, por dom, por irresistível
danação, Mario Quintana atravessou a vida em estado de poesia, como
se cada segundo fosse o primeiro e o derradeiro, com a perplexidade
da criança pequena, para quem tudo é surpresa, tormento e
deslumbre, e com a irreversível clareza de um condenado que caminha
pelo corredor da morte, rendido à vitalidade de cada um dos seus
passos mundanos, obcecado por gerúndios de adiar finitude, parando
para olhar, olhando sem parar, escrevendo.
O
olhar
O
último olhar do condenado não é nublado sentimentalmente por
lágrimas
nem
iludido por visões quiméricas,
O
último olhar do condenado é nítido como uma fotografia:
vê
até a pequenina formiga que sobe acaso pelo rude braço do verdugo,
vê
o frêmito da última folha no alto daquela árvore, além…
Ao
olhar do condenado nada escapa, como ao olhar de Deus
— um
porque é eterno,
o
outro porque vai morrer.
O
olhar do poeta é como o olhar de um condenado…
como
o olhar de Deus…
Sem
que nada escapasse do seu olhar, assombrado por tudo o que é
aparentemente mais banal e sem importância no mundo, Mario Quintana
fez dos seus dias uma permanente entrega amorosa ao que há de mais
atazanante, belo, doído, hipnótico, melancólico, poético em todos
os sentidos.
Quintana
dizia que a poesia não se entrega a quem a define. Será que definir
o poeta seria bater a porta na cara da poesia? Não sei, escrevo para
descobrir. E, sem barulho de porta batida, paro numa das frases mais
reveladoras do autor: “Não é o leitor que descobre o poeta, mas o
poeta que descobre o leitor e o revela a si mesmo”.
Revelações
à parte, ou incluídas, Mario também dizia que ser poeta não é
uma maneira de escrever, é uma maneira de ser. Dessa forma, no seu
permanente exercício de ser poeta, Mario Quintana escreveu que o
fato é um aspecto secundário da realidade, mas, de fato, Mario via
poesia em tudo e transfigurava o que olhava em palavras. “Toda
confissão não transfigurada pela arte é indecente”, constatou o
escritor, que passou a vida confessando seu amor por cachorros
vira-luas, jardins ignorados, monstros órfãos, barulhos
extraviados, verdades esquecidas e horas descascadas nos seus textos
povoados por naufrágios sem gritos, desejos indisfarçáveis, sedes
que não passam, desesperos engarrafados, vozes roubadas, fidelidades
sem compromisso, ruas descalças, ventos escondidos, fantasmas
despidos na bruma, céus quebrados no chão, oferendas de mãos
vazias, alegrias sem guizos.
Apesar
da sua paixão por exclamações, Mario Quintana atravessa sem
guizos, na ponta dos pés, as geografias mais íntimas e atordoantes
do dia a dia. Sim, Mario atravessa na ponta dos pés os seus
assombros cotidianos e nos sussurra o que não conseguimos ver nem
escutar por conta dos nossos embrutecimentos mais invisíveis, das
nossas pressas mais paralisantes, dos nossos sobressaltos mais
insondáveis, das nossas urgências mais obstrutoras.
Do
mesmo modo, apaixonado por reticências, tão frequentes nos seus
textos, Quintana entra nas vielas da transitoriedade, devassa os
sótãos do efêmero e lê a decadência dos nossos desconcertos, a
palidez das nossas taquicardias, o velório dos nossos juízos,
diante da inevitável vontade de retardar pontos finais.
Alfabetizado
em absurdos, Quintana também lê o que nos perpassa por dentro, no
rastro de embaraços encobertos, exames de inconsciência,
entrelinhas amarelecidas, frestas soterradas, carcaças de sonhos,
febres perdidas, impressões de soslaio no espelho. “Um bom poema é
aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente… E não
a gente a ele!”, afirmou o poeta.
Como
então organizar e selecionar uma antologia de quem sabe nos ler no
escuro em tantos textos profundamente luminosos? De luz acesa na
madrugada ou em breus amanhecidos, ao longo de intermináveis
releituras, mais difícil do que escolher o que incluir nessa
antologia, claro, foi decidir o que deixar de fora. Para tudo na
vida, abrir mão do que não gostamos nem sempre é difícil, mas
renunciar ao que amamos, por um nobre motivo como o de organizar este
livro, é recortar paisagens para expandir cenas, fechar portas para
achar contornos, esquecer pertencimentos para ser fiel à própria
essência.
“Pertencer
a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão
perpétua”, disse Mario, que passou a existência gazeteando
escolas de enquadrar poetas, rotular formas, comportar belezas. “A
beleza não comporta adjetivos”, escreveu.
Além
de traduzir alguns dos mais descomportados escritores de todos os
tempos, entre eles Virginia Woolf, Marcel Proust, Honoré de Balzac,
Graham Greene, Saint-Exupéry, Voltaire e Guy de Maupassant, Mario
Quintana transpõe a alma das coisas e as coisas da alma. “Desde
pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que
achava que mormaço fazia mal, sempre gritava: ‘Vem pra dentro,
menino, olha o mormaço!’. Mas eu via o mormaço com M maiúsculo.
Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças!”
Mais
do que tudo, os textos de Mario Quintana são mormaços de pegar
leitor. Agora esqueça protetores, desproteja-se, exponha-se aos
desconcertos do poeta. Desajuste-se para respirar, respire para se
desajustar.
Emergência
Quem
faz um poema abre uma janela.
Respira,
tu que estás numa cela
abafada,
esse
ar que entra por ela.
Por
isso é que os poemas têm ritmo
— para
que possas profundamente respirar.
Quem
faz um poema salva um afogado.
Para
não nos afogarmos na ausência de janelas, nem nos sufocarmos no
excesso de paredes, mais do que nunca ler Mario Quintana é uma
emergência.
Márcio Vassallo, em Assombros cotidianos – Antologia
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