segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Os intérpretes da lei

A Torá, onde se encontram os dez mandamentos que Deus escreveu em duas pedras no monte Sinai, diz que o sábado é dia sagrado e que nesse dia todo tipo de trabalho está proibido. Os intérpretes da lei, no seu zelo para garantir o cumprimento rigoroso da lei, fizeram um levantamento de todas as formas possíveis de se transgredir esse mandamento. Fizeram aquilo a que hoje os juristas chamam de “regulamentar” uma lei. Dirigindo-se aos alfaiates, os intérpretes os advertiram de que, ao pôr do sol da sexta-feira, quando o sábado se inicia, é importante que tirem das suas roupas quaisquer agulhas que ali tivessem sido colocadas durante o dia. E isso porque as agulhas, sendo seu instrumento de trabalho, se ficarem espetadas na sua roupa, é como se eles, alfaiates, estivessem levando suas ferramentas por onde vão. E quem caminha carregando o seu instrumento de trabalho está trabalhando. O alfaiate distraído que se esquecesse de pôr a agulha sobre a mesa estaria, sem saber, quebrando o quarto mandamento e incorrendo na ira de Yaweh. Aí fiquei pensando: Deus é realmente um credor terrível! Vê tudo, contabiliza tudo. Contabiliza até a agulha de um alfaiate distraído... O dr. John Mackay, um dos mais extraordinários líderes do movimento ecumênico, contou que na Escócia, sua terra natal, aos domingos não era permitido tomar o bonde para ir à igreja porque isso implicava uma transação comercial: a passagem de bonde tinha de ser paga. Os pobres, assim, iam a pé para a igreja, enquanto os ricos iam nos seus carros... Escreveu um jovem poeta protestante de há uns quarenta anos: “Domingo Deus descansa e os homens sofrem mais...”.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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