O
surgimento de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil
anos atrás a 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva.
O que a causou? Não sabemos ao certo. A teoria mais aceita afirma
que mutações genéticas acidentais mudaram as conexões internas do
cérebro dos sapiens, possibilitando que pensassem de uma maneira sem
precedentes e se comunicassem usando um tipo de linguagem totalmente
novo. Poderíamos chamá-las de mutações da árvore do
conhecimento. Por que ocorreram no DNA do sapiens e não no DNA dos
neandertais? Até onde pudemos verificar, foi uma questão de puro
acaso. Mas é mais importante entender as consequências das mutações
da árvore do conhecimento do que suas causas. O que havia de tão
especial na nova linguagem dos sapiens que nos permitiu conquistar o
mundo?
Essa
não foi a primeira linguagem. Todos os animais têm alguma forma de
linguagem. Até mesmo os insetos, como abelhas e formigas, sabem se
comunicar de maneiras sofisticadas, informando uns aos outros sobre o
paradeiro de alimentos. Tampouco foi a primeira linguagem vocal.
Muitos animais, incluindo todas as espécies de macaco, têm uma
linguagem vocal. Por exemplo, macacos-verdes usam gritos de vários
tipos para se comunicar. Os zoólogos identificaram um grito que
significa: “Cuidado! Uma águia!”. Um grito um pouco diferente
alerta: “Cuidado! Um leão!”. Quando os pesquisadores
reproduziram uma gravação do primeiro grito para um grupo de
macacos, estes pararam o que estavam fazendo e olharam para cima
assustados. Ao ouvir uma gravação do segundo grito, o aviso do
leão, o grupo subiu rapidamente em uma árvore. Os sapiens podem
produzir muitos mais sons do que os macacos-verdes, mas as baleias e
os elefantes têm habilidades igualmente impressionantes. Um papagaio
pode dizer qualquer coisa proferida por Albert Einstein, além de
imitar o som de telefones chamando, portas batendo e sirenes tocando.
Qualquer que fosse a vantagem de Einstein sobre um papagaio, não era
vocal. O que, então, há de tão especial em nossa linguagem?
A
resposta mais comum é que nossa linguagem é incrivelmente versátil.
Podemos conectar uma série limitada de sons e sinais para produzir
um número infinito de frases, cada uma delas com um significado
diferente. Podemos, assim, consumir, armazenar e comunicar uma
quantidade extraordinária de informação sobre o mundo à nossa
volta. Um macaco-verde pode gritar para seus camaradas: “Cuidado!
Um leão!”, mas um humano moderno pode dizer aos amigos que esta
manhã, perto da curva do rio, ele viu um leão atrás de um rebanho
de bisões. Pode então descrever a localização exata, incluindo os
diferentes caminhos que levam à área em questão. Com essas
informações, os membros do seu bando podem pensar juntos e discutir
se devem se aproximar do rio, expulsar o leão e caçar os bisões.
Uma
segunda teoria concorda que nossa linguagem singular evoluiu como um
meio de partilhar informações sobre o mundo. Mas as informações
mais importantes que precisavam ser comunicadas eram sobre humanos, e
não sobre leões e bisões. Nossa linguagem evoluiu como uma forma
de fofoca. De acordo com essa teoria, o Homo sapiens é antes
de mais nada um animal social. A cooperação social é essencial
para a sobrevivência e a reprodução. Não é suficiente que homens
e mulheres conheçam o paradeiro de leões e bisões. É muito mais
importante para eles saber quem em seu bando odeia quem, quem está
dormindo com quem, quem é honesto e quem é trapaceiro.
A
quantidade de informações que é preciso obter e armazenar a fim de
rastrear as relações sempre cambiantes até mesmo de umas poucas
dezenas de indivíduos é assombrosa. (Em um bando de cinquenta
indivíduos, há 1.225 relações de um para um, e incontáveis
combinações sociais mais complexas.) Todos os macacos mostram um
ávido interesse por tais informações sociais, mas eles têm
dificuldade para fofocar de fato. Os neandertais e os Homo sapiens
arcaicos provavelmente também tiveram dificuldade para falar pelas
costas uns dos outros – uma habilidade muito difamada que, na
verdade, é essencial para a cooperação em grande número. As novas
habilidades linguísticas que os sapiens modernos adquiriram há
cerca de 70 milênios permitiram que fofocassem por horas a fio.
Graças a informações precisas sobre quem era digno de confiança,
pequenos grupos puderam se expandir para bandos maiores, e os sapiens
puderam desenvolver tipos de cooperação mais sólidos e mais
sofisticados.
A
teoria da fofoca pode parecer uma piada, mas vários estudos a
corroboram. Ainda hoje, a maior parte da comunicação humana –
seja na forma de e-mails, telefonemas ou colunas nos jornais – é
fofoca. É tão natural para nós que é como se nossa linguagem
tivesse evoluído exatamente com esse propósito. Você acha que
quando almoçam juntos professores de história conversam sobre as
causas da Primeira Guerra Mundial, ou que físicos nucleares passam o
intervalo do café em conferências científicas falando sobre
partículas subatômicas? Às vezes. Mas com muito mais frequência
eles fofocam sobre a professora que flagrou o marido com outra, ou
sobre a briga entre o chefe do departamento e o reitor, ou sobre os
rumores de que um colega usou sua verba de pesquisa para comprar um
Lexus. A fofoca normalmente gira em torno de comportamentos
inadequados. Os que fomentam os rumores são o quarto poder original,
jornalistas que informam a sociedade sobre trapaceiros e
aproveitadores e, desse modo, a protegem.
Muito
provavelmente, tanto a teoria da fofoca quanto a teoria do leão
perto do rio são válidas. Mas a característica verdadeiramente
única da nossa linguagem não é sua capacidade de transmitir
informações sobre homens e leões. É a capacidade de transmitir
informações sobre coisas que não existem. Até onde sabemos, só
os sapiens podem falar sobre tipos e mais tipos de entidades que
nunca viram, tocaram ou cheiraram.
Lendas,
mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a
Revolução Cognitiva. Antes disso, muitas espécies animais e
humanas foram capazes de dizer: “Cuidado! Um leão!”. Graças à
Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de
dizer: “O leão é o espírito guardião da nossa tribo”. Essa
capacidade de falar sobre ficções é a característica mais
singular da linguagem dos sapiens.
É
relativamente fácil concordar que só o Homo sapiens pode
falar sobre coisas que não existem de fato e acreditar em meia dúzia
de coisas impossíveis antes do café da manhã. Você nunca
convencerá um macaco a lhe dar uma banana prometendo a ele bananas
ilimitadas após a morte no céu dos macacos. Mas isso é tão
importante? Afinal, a ficção pode ser perigosamente enganosa ou
confusa. As pessoas que vão à floresta à procura de fadas e
unicórnios parecem ter uma chance menor de sobrevivência do que as
que vão à procura de cogumelos e cervos. E, se você passa horas
rezando para espíritos guardiães inexistentes, não está perdendo
um tempo precioso, tempo que seria mais bem utilizado procurando
comida, guerreando e copulando?
Mas
a ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer
isso coletivamente. Podemos tecer mitos partilhados, tais como
a história bíblica da criação, os mitos do Tempo do Sonho dos
aborígenes australianos e os mitos nacionalistas dos Estados
modernos. Tais mitos dão aos sapiens a capacidade sem precedentes de
cooperar de modo versátil em grande número. Formigas e abelhas
também podem trabalhar juntas em grande número, mas elas o fazem de
maneira um tanto rígida, e apenas com parentes próximos. Lobos e
chimpanzés cooperam de forma muito mais versátil do que formigas,
mas só o fazem com um pequeno número de outros indivíduos que eles
conhecem intimamente. Os sapiens podem cooperar de maneiras
extremamente flexíveis com um número incontável de estranhos. É
por isso que os sapiens governam o mundo, ao passo que as formigas
comem nossos restos e os chimpanzés estão trancados em zoológicos
e laboratórios de pesquisa.
Yuval
Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade
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