quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Michael Pipoquinha | Auge do Amor

nada, esta espuma

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril

Negacionista ao avesso

Bicudinho, de Caco Galhardo

O consciente e o inconsciente

Em sua autobiografia, Jung conta um sonho impressionante (mas qual deles não o é?). Achava-se em frente a uma casa de oração, sentado no chão e na posição do lótus, quando notou a presença de um iogue mergulhado em profunda meditação. Aproximou-se e viu que o rosto do iogue era o seu. Aterrorizado, afastou-se, acordou e se pôs a conjeturar: é ele aquele que medita; sonhou e eu sou o seu sonho.
Quando ele despertar, eu já não existirei.

Rodericus Bartius, Los que son números y los que no lo son, em Livro de Sonhos, de Jorge Luis Borges

Banqueiro

Os que dizem que os banqueiros não perdem por esperar nunca ouviram falar em juros antecipados.

Millôr Fernandes, em A bíblia do caos

Cartas na Rua | SEIS


3

Mas havia um pouco de ação. Um cara foi flagrado na mesma escadaria em que eu tinha me trancado. Foi pego lá com a cabeça debaixo da saia de uma garota. Então uma das garotas que trabalhava no refeitório reclamou que não tinha sido paga conforme prometido, por um pouco de sexo oral que ela tinha praticado com um gerente de seção e três carteiros. Demitiram a garota e os três carteiros e rebaixaram o gerente a supervisor.
Foi quando botei fogo nos Correios.
Eu havia sido mandado para as correspondências de quarta categoria e estava fumando um charuto, tirando um maço de correspondências de um carrinho quando um cara se aproximou e disse:
EI, SUAS CARTAS ESTÃO PEGANDO FOGO!
Olhei em volta. Ali estava. Uma pequena chama começava a se erguer como uma cobra bailarina. Evidentemente, um pouco de cinza em brasa do charuto tinha caído ali antes.
Puta merda!
A chama se alastrou depressa. Peguei um catálogo e, mantendo-o esticado, bati sobre o foco. Faíscas voaram. Estava quente. Tão logo apaguei uma parte, outra pegou fogo.
Escutei uma voz:
Ei! Sinto cheiro de fogo!
NÃO SE SENTE CHEIRO DE FOGO — gritei —, SENTE-SE CHEIRO DE FUMAÇA!
Acho que vou dar o fora daqui!
Foda-se, então — gritei —, DÊ O FORA!
As chamas queimavam minhas mãos. Eu tinha que salvar os Correios dos Estados Unidos, todo aquele lixo de correspondências de quarta classe.
Finalmente, consegui controlar o incêndio. Usando o pé, empurrei a pilha inteira de papéis para o chão e pisei no último foco de cinza vermelha.
O supervisor se aproximou para me dizer alguma coisa. Fiquei ali parado, o catálogo queimado na mão, a esperá-lo. Ele me olhou e se afastou.
Depois disso, retomei a organização daquele lixo de correspondência de quarta classe. Separava tudo que estivesse queimado.
Meu charuto tinha morrido. Não voltei a acendê-lo.
Minhas mãos começaram a doer e fui até o bebedor, coloquei-as debaixo d’água. Não ajudou.
Encontrei o supervisor e pedi-lhe uma dispensa para ir até a sala da enfermeira.
Era a mesma que costumava ir à minha porta perguntar:
Qual é o problema agora, sr. Chinaski?
Quando entrei, ela disse a mesma coisa de novo.
Lembra-se de mim, não é? — perguntei.
Ah, sim, sei que o senhor teve umas noites realmente doentes.
Ô — eu disse.
Ainda há mulheres lá no seu apartamento? — perguntou.
Sim. Há homens no seu?
Tudo bem, sr. Chinaski, o que o traz aqui?
Queimei minhas mãos.
Deixe eu ver. Como queimou as mãos?
Isso importa? Elas estão queimadas.
Ela começou a passar alguma coisa nas minhas mãos. Um de seus peitos roçou em mim.
Como aconteceu, Henry?
Charuto. Eu estava parado perto de um carrinho da quarta classe. Deve ter caído brasa ali dentro. As chamas subiram.
O peito voltou a roçar em mim.
Mantenha suas mãos paradas, por favor!
Então ela apoiou todo o flanco contra mim enquanto espalhava uma pomada em minhas mãos. Eu estava sentado num banco.
Qual é o problema, Henry? Você parece nervoso.
Bem... você sabe como é, Martha.
Meu nome não é Martha. É Helen.
Vamos nos casar, Helen?
O quê?
Quero dizer, quando vou poder voltar a usar minhas mãos?
Pode usá-las agora mesmo se tiver vontade.
O quê?
Quero dizer, no trabalho.
Ela as enrolou com umas gazes.
Sinto-me melhor — eu disse.
Você não devia queimar as cartas assim.
Era só lixo.
Toda correspondência é importante.
Tudo bem, Helen.
Ela voltou à sua mesa e eu a segui. Preencheu a folha de dispensa. Estava muito bonita em seu pequeno chapéu branco. Eu teria de encontrar um jeito de voltar aqui.
Ela me viu olhando para seu corpo.
Muito bem, sr. Chinaski, acho que é melhor o senhor ir agora.
Ah, sim... Bem, obrigado por tudo.
Faz parte do serviço.
Claro.

Charles Bukowski, em Cartas na Rua

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Michael Pipoquinha | Maurício

luto por mim mesmo

a luz se põe
em cada átomo do universo
noite absoluta
desse mal a gente adoece
como se cada átomo doesse
como se fosse esta a última luta
o estilo desta dor
é clássico
dói nos lugares certos
sem deixar rastos
dói longe dói perto
sem deixar restos
dói nos himalaias, nos interstícios
e nos países baixos
uma dor que goza
como se doer fosse poesia
já que tudo mais é prosa
Faça os gestos certos,
o destino vai ser teu aliado,
ouço uma voz dizendo
do fundo mais fundo do passado.
Hoje, não faço nada direito,
que é preciso muito mais peito
pra fazer tudo de qualquer jeito.
Ai do acaso,
se não ficar do meu lado.

Paulo Leminski, em Toda Poesia

O genial Quino

 

Dom Casmurro | Capítulo III

A DENÚNCIA

Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam histórias velhas; o ano era de 1857.
D. Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma dificuldade.
Que dificuldade?
Uma grande dificuldade.
Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.– A gente do Pádua?
Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
Não acho. Metidos nos cantos?
É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê; tomara ele que as coisas corressem de maneira que... Compreendo o seu gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos têm a alma cândida…
Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos. Capitu fez quatorze à semana passada; são dois criançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, você que acha?
Tio Cosme respondeu com um “Ora!” que, traduzido em vulgar, queria dizer: “São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?”
Sim, creio que o senhor está enganado.
Pode ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar…
Em todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de metê-lo no seminário quanto antes.
Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o Império…
Governo como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores políticos.
Perdão, doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?
É promessa, há de cumprir-se.
Sei que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei... Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?
Eu?
Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de lágrimas?
Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exortava: “Prima Glória! Prima Glória!” José Dias desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo, um dever amaríssimo...”

Machado de Assis, em Dom Casmurro

Canibalismo

Maneira exagerada de apreciar o seu semelhante.

Mário Quintana, em Caderno H

A leste do Éden | 2




[ 1 ]

Tenho que depender de rumores, de velhas fotografias, de histórias contadas e de lembranças nebulosas misturadas com fábula para tentar contar-lhes sobre os Hamilton. Não eram pessoas importantes e existem poucos registros a seu respeito, exceto as costumeiras certidões de nascimento, casamento, posse de terra e óbito.
O jovem Samuel Hamilton veio do norte da Irlanda e sua mulher também. Era filho de pequenos fazendeiros, nem ricos nem pobres, que viveram numa terra arrendada e numa casa de pedra durante muitas centenas de anos. Os Hamilton conseguiam ser notavelmente instruídos e versados; e, como ocorre geralmente naquele país verde, eram ligados e aparentados a pessoas muito importantes e a pessoas humildes, de modo que um primo podia ser um baronete e outro primo, um mendigo. E naturalmente descendiam dos antigos reis da Irlanda, como todo irlandês descende.
Por que Samuel deixou a casa de pedra e os verdes hectares dos seus ancestrais, eu não sei. Nunca foi um homem político, então é pouco provável que uma acusação de rebelião o tenha banido, e era escrupulosamente honesto, o que elimina a polícia como o principal agente da sua saída. Havia um murmúrio — não chegava a ser um rumor, era mais um sentimento não declarado — na minha família de que foi o amor que o fez partir, e não o amor da mulher que tinha desposado. Mas se foi um amor bem-sucedido demais, ou se ele partiu espicaçado por um amor não correspondido, eu não sei. Sempre preferíamos pensar que foi a primeira hipótese. Samuel tinha uma bela aparência, era encantador e alegre. É difícil imaginar que qualquer jovem irlandesa do campo o recusasse.
Chegou ao vale do Salinas exuberante e animado, cheio de invenções e energia. Seus olhos eram muito azuis e quando estava cansado um deles escapava um pouco para fora. Era um homem grandalhão, mas de certa forma delicado. Na atividade empoeirada da fazenda, parecia sempre imaculado. Suas mãos eram hábeis. Era um bom ferreiro, carpinteiro e entalhador, e capaz de improvisar qualquer coisa com pedaços de madeira e metal. Estava sempre inventando novas formas de se fazer uma coisa velha e o fazia cada vez melhor e mais rápido, mas nunca em toda a sua vida teve qualquer talento para ganhar dinheiro. Outros homens que tinham talento para isso pegavam as ideias de Samuel, as vendiam e ficavam ricos, mas Samuel mal chegou a ganhar salário na vida inteira.
Não sei o que orientou seus passos para o vale do Salinas. Era um lugar pouco promissor para um homem de um país verde, mas ele chegou cerca de trinta anos antes da virada do século e trouxe consigo sua pequenina esposa irlandesa, uma mulherzinha tensa e dura como o humor de uma galinha. Tinha uma mentalidade presbiteriana austera e um código moral que proibia e tirava a graça de tudo o que era prazeroso.
Não sei onde Samuel a conheceu, como a cortejou e desposou. Acho que devia ter outra jovem gravada em algum lugar do seu coração, pois era um homem de amor e sua esposa não era uma mulher de demonstrar sentimentos. E, apesar disso, em todos os anos da sua juventude até a sua morte no vale do Salinas, nunca houve nenhum sinal de que Samuel tivesse procurado outra mulher.
Quando Samuel e Liza chegaram ao vale do Salinas toda a terra plana estava tomada, o solo rico, as pequenas pregas férteis nos morros, as florestas, mas ainda havia terra marginal a ser cultivada e, nas colinas nuas a leste do que é hoje King City, Samuel Hamilton cultivou.
Seguiu a prática habitual. Tomou um lote que o governo concedia para si mesmo e outro para sua mulher e, como ela estava grávida, tomou outro lote para a criança. Ao longo dos anos, nove crianças nasceram, quatro meninos e cinco meninas, e a cada nascimento outro lote era acrescido ao rancho, que assim chegou a onze lotes, ou setecentos e doze hectares.
Se a terra fosse boa, os Hamilton teriam ficado ricos. Mas os hectares eram ásperos e secos. Não havia fontes de água e a crosta do solo era tão fina que pedaços de pedra apareciam à superfície. Até a artemísia lutava para existir e os carvalhos ficavam nanicos por falta de umidade. Mesmo nos anos relativamente bons havia tão pouco pasto que o gado ficava magro de tanto rodar em busca de algo para comer. Das suas colinas áridas, os Hamilton podiam avistar no oeste a riqueza das terras planas e as áreas verdejantes ao redor do rio Salinas.
Samuel construiu sua casa com as próprias mãos e construiu também um celeiro e uma ferraria. Descobriu em pouco tempo que mesmo que tivesse cinco mil hectares de terra de encosta não conseguiria viver do solo esquelético sem água. Suas mãos hábeis construíram uma sonda de perfuração e ele cavava poços nas terras dos homens com mais sorte. Inventou e construiu uma debulhadora e corria as fazendas da planície na época da colheita, debulhando o grão que sua própria fazenda não dava. E na sua ferraria afiava arados, consertava charruas, soldava eixos quebrados e botava ferradura em cavalos. Homens de toda a região traziam-lhe ferramentas para consertar e aperfeiçoar. Além do mais, gostavam de ouvir Samuel falar do mundo e do seu pensamento, da poesia e da filosofia que existiam fora do vale do Salinas. Ele tinha uma voz rica e grave, boa para cantar e para falar, e embora não tivesse sotaque irlandês havia uma ondulação, um canto e uma cadência na sua fala que a tornavam doce aos ouvidos dos taciturnos fazendeiros do vale. Eles também traziam uísque e, fora da visão da janela da cozinha e do olho reprovador da sra. Hamilton, tomavam goles ardentes da garrafa e mordiam nacos de anis verde selvagem para disfarçar o bafo de uísque. Era um dia ruim quando não havia três ou quatro homens de pé em torno da forja, ouvindo o malho e a conversa de Samuel. Chamavam-no de gênio cômico e levavam suas histórias cuidadosamente para casa, mas se perguntavam como as histórias podiam se perder pelo caminho, porque nunca soavam iguais se repetidas em suas próprias cozinhas.
Samuel devia ter ficado rico com o seu perfurador de poços, sua debulhadora e sua ferraria, mas ele não tinha tino para negócios. Seus fregueses, sempre com dinheiro apertado, prometiam pagar depois da colheita e então depois do Natal e então depois — até que finalmente se esqueciam. Samuel não tinha nenhum jeito para lembrá-los da dívida. E assim os Hamilton continuavam pobres.
Os filhos vieram tão regularmente como os anos. Os poucos médicos sobrecarregados do condado não iam com frequência aos ranchos para um parto, a não ser que a alegria se transformasse num pesadelo e prosseguisse por vários dias. Samuel Hamilton fez o parto de todos os seus filhos, deu um nó preciso nos cordões umbilicais, os tapinhas no bumbum e limpou a bagunça. Quando o primogênito nasceu com uma pequena obstrução respiratória e começou a ficar roxo, Samuel colou sua boca na da criança, soprou ar dentro dela e sugou o ar até que o bebê conseguisse respirar sozinho. As mãos de Samuel eram tão boas e suaves que vizinhos num raio de trinta quilômetros o chamavam para ajudar nos partos. E ele era igualmente bom com égua, vaca ou mulher.
Samuel tinha um grande livro preto numa estante à mão, com letras douradas na capa — Medicina da Família do Dr. Gunn. Algumas páginas estavam dobradas e surradas pelo uso, e outras nunca haviam sido expostas à luz. Folhear o Dr. Gunn é conhecer a história médica dos Hamilton. Estes são os capítulos mais consultados: ossos quebrados, cortes, contusões, caxumba, sarampo, dor de coluna, escarlatina, difteria, reumatismo, males femininos, hérnia e, naturalmente, tudo o que tivesse a ver com gravidez e parto. Os Hamilton deviam ser afortunados ou moralistas porque as páginas sobre gonorreia e sífilis nunca foram abertas.
Não existia ninguém como Samuel para acalmar a histeria e aquietar uma criança assustada. Era a doçura da sua língua e a ternura de sua alma. Assim como havia limpeza em seu corpo, havia também uma limpeza no seu pensamento. Homens que vinham à sua ferraria, para falar e ouvir, deixavam de lado os palavrões por um tempo, não por se sentirem restringidos, mas automaticamente, como se não fosse um lugar para aquilo.
Samuel sempre manteve um ar distante. Talvez fosse a cadência da sua fala e isso tivesse o efeito de levar homens e mulheres também a lhe contar coisas que não contariam a parentes ou amigos íntimos. Sua ligeira estranheza o distinguia e fazia dele um repositório seguro.
Liza Hamilton era uma irlandesa de uma cepa muito diferente. Sua cabeça era pequena e redonda e guardava pequenas convicções redondas. Tinha um nariz em forma de botão e um queixo pequeno e recuado, um maxilar duro e resoluto capaz de desafiar até a vontade dos anjos de Deus.
Liza era uma boa cozinheira no trivial e sua casa — era sempre sua casa — era varrida, espanada e lavada. Parir os filhos não interferia muito na sua atividade — precisava só se cuidar durante duas semanas, no máximo. Devia ter a ossatura pélvica de uma baleia, pois deu à luz bebês grandes um após o outro.
Liza tinha uma noção muito elaborada do pecado. O ócio era um pecado, assim como jogar cartas, que era um tipo de ócio para ela. Desconfiava de qualquer tipo de diversão, fosse dançar ou cantar ou até mesmo gargalhar. Achava que as pessoas que se divertiam estavam expostas ao diabo. E isso era uma pena, pois Samuel sempre foi um homem chegado a risadas, mas acho que Samuel estava escancarado para o demônio. Sua mulher o protegia sempre que podia.
Usava os cabelos sempre puxados para trás e amarrados num coque. E, como não consigo me lembrar do seu modo de vestir, deve ser porque usava roupas que combinavam exatamente com a sua personalidade. Não tinha nenhuma centelha de humor e apenas ocasionalmente uma lâmina de ironia. Assustava os netos porque não tinha nenhuma fraqueza. Atravessou a vida sofrendo bravamente sem se queixar, convencida de que era assim que Deus queria que todos vivessem. Sentia que as recompensas viriam depois.

John Steinbeck, em A leste do Éden

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Tia Edith (Cinematográfica) | Renato Teixeira e Natan Marques

Cabrito Montês

O senhor mesmo sabe. E, se sabe, me entende...” Tudo indica que o Riobaldo, numa outra encarnação, estudou filosofia com Platão. Os dois, Lobato e Nietzsche, tinham a mesma coisa na alma. Eles, ambos, amavam as crianças. Não esse amor bobo, as crianças umas gracinhas, tolinhas, com quem se fala só por meio de diminutivos idiotas: tem dois aninhos, vai tomar sopinha, vai pôr roupinha. Levavam as crianças a sério. Concordavam com a opinião de Bernardo Soares, que notava a “diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos”. Num momento de desânimo ante a incompreensão dos adultos, Nietzsche escreveu: “Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam, ao lado da parede em ruínas, entre os espinhos e as papoulas vermelhas. Para as crianças eu sou ainda um sábio, e também para os espinhos e as papoulas vermelhas”.
Nietzsche escrevia para educar. Mas tinha horror às escolas. Nas escolas se formam os rebanhos de ovelhas, todas balindo igual, todas pensando igual. Ovelha que balisse diferente, que pensasse diferente, ia para o manicômio ou era reprovada. Morreria de rir se tivesse tido a felicidade de ler a Adélia Prado: “Escola é uma coisa sarnenta. Fosse terrorista, raptava era diretor de escola e dentro de três dias amarrava no formigueiro, se não aceitasse minhas condições. Quando acabarem as escolas quero nascer outra vez”.
Escola é máquina de destruir crianças. Nas escolas, as crianças são transformadas em adultos. É isso que todos os pais querem: que seus filhos sejam adultos produtivos. O destino de uma criança é conseguir entrar no mercado de trabalho.
Nietzsche andava na direção contrária... Não era ovelha de rebanho. Era cabrito montês que andava sozinho nas rochas. Criança não é meio para se chegar ao adulto. Criança é fim, o lugar onde todo adulto deve chegar. Zaratustra tinha 30 anos de idade quando deixou sua casa e o lago de sua casa e subiu para a solidão das montanhas. Chegou um dia, entretanto, em que ele se sentiu como fonte transbordante. E então teve saudades dos homens. Desejou que eles bebessem da sua água. E assim começou a descer. Sua descida passava por uma floresta, a mesma por que passara dez anos antes. Dez anos antes ele se encontrara com um eremita. E agora se encontrava com o mesmo eremita, que se espantou ao vê-lo: “Esse caminhante não me é estranho; muitos anos atrás ele passou por esse caminho. Ele se chamava Zaratustra. Mas ele mudou. Naquele tempo tu levavas tuas cinzas para as montanhas; e agora tu levas teu fogo para os vales? Não tens medo de ser punido como incendiário?... Zaratustra mudou, Zaratustra se transformou numa criança, Zaratustra é um iluminado”.
De fato, o jequitibá é maravilhoso, muito alto, muito velho. No galho de um jequitibá se pode pendurar um balanço. Mas a criança de Nietzsche é mais maravilhosa que o jequitibá. Que são a altura e a idade de uma árvore comparados ao momento efêmero de uma criança que balança no balanço? Bolha de sabão...

Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Royal flush

Reverências à Dama de Copas,
que ousa andar de coração a mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas,
em vez de paus e pedras enfeitadas,
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelho;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, tomba a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta das cartas da canastra.

Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto

O pós-impressionismo de Henri Martin

O Vestido Azul (1917), de Henri Martin

Os Nascimentos | 1547 – Valparaíso

A despedida

Zunem as moscas entre os restos do banquete. Nem o muito vinho nem o bom sol adormecem os comilões. Esta manhã, os corações batem apressados. Debaixo da folhagem, frente ao mar, Pedro de Valdívia diz adeus aos que vão partir. No fim de tanta guerra e fome nas terras bravias do Chile, quinze de seus homens se dispõem a regressar à Espanha. Alguma lágrima roda quando Valdívia recorda os anos passados juntos, as cidades nascidas do nada, os índios domados pelo ferro das lanças:
Não me sobra outro consolo – se inflama no discurso – além de entender que vais descansar e gozar o que bem merecido tem, e isso alivia, em parte pelo menos, o meu penar.
Não longe da praia, as ondas acalantam o navio que os levam ao Peru. De lá, viajarão ao Panamá; através do Panamá, ao outro mar, e depois... Será longo, mas o que estica as pernas sente que já está pisando as pedras do cais de Sevilha. A bagagem, roupa e ouro, está na coberta desde a noite anterior. Três mil pesos de ouro levará do Chile o escrivão Juan Pinel. Com seu maço de papéis, uma pluma de ave e um tinteiro, seguiu Valdívia como uma sombra, dando fé de cada um de seus passos e força de lei a cada um de seus atos. Várias vezes roçou a morte. Esta fortuninha sobrará para remediar a sorte das filhas donzelas que esperam pelo escrivão Pinel na distante Espanha.
Estão os soldados sonhando em voz alta, quando de repente alguém dá um pulo e pergunta:
E Valdívia? Onde está Valdívia?
Todos se precipitam para a beira do mar. Saltam, gritam, erguem os punhos.
Valdívia aparece, cada vez menor. Lá vai, remando o único bote, rumo ao navio carregado do ouro de todos.
Na praia de Valparaíso, as maldições e as ameaças soam mais forte que o barulho das ondas.
As velas se inflam e se afastam rumo ao Peru. Vai-se Valdívia em busca de seu título de governador do Chile. Com o ouro que leva e o brio de seus braços, espera convencer os que mandam em Lima.
No alto de um rochedo, o escrivão Juan Pinel aperta a cabeça e ri sem parar. Morrerão virgens as suas filhas na Espanha. Alguns choram, vermelhos de raiva; e o corneteiro Alonso de Torres desafina uma velha melodia e depois arrebenta seu clarim, que é o que lhe restou.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Prefácio Interessantíssimo


Dans mon pays de fiel et d’or
j’en suis la loi.
E. Verhaeren

Leitor: Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.
E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.
Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia... “tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista, confesso.
Este Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos profetas”. Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá. Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco.
Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?
Perto de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?

Artista

O meu desejo é ser pintor – Lionardo,
cujo ideal em piedades se acrisola;
fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola
do sonho ilustre que em meu peito guardo...

Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo
da vida, a cor da veneziana escola,
dar tons de rosa e de ouro, por esmola,
a quanto houver de penedia ou cardo.

Quando encontrar o manancial das tintas
e os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese! teus quadros e teus frisos,

irei morar onde as Desgraças moram;
e viverei de colorir sorrisos
nos lábios dos que imprecam ou que choram!

Os srs. Laurindo de Brito, Martins Fontes, Paulo Setúbal, embora não tenham evidentemente a envergadura de Vicente de Carvalho ou de Francisca Júlia, publicam seus versos. E fazem muito bem. Podia, como eles, publicar meus versos metrificados.
Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiriam minhas ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de braços no ar, como o Indiferente de Watteau.
Alguns leitores ao lerem estas frases (poesia citada) não compreenderam logo. Creio mesmo que é impossível compreender inteiramente à primeira leitura pensamentos assim esquematizados sem uma certa prática. Nem é nisso que um poeta pode queixar-se dos seus leitores. No que estes se tornam condenáveis é em não pensar que um autor que assina não escreve asnidades pelo simples prazer de experimentar tinta; e que, sob essa extravagância aparente havia um sentido porventura interessantíssimo, que havia qualquer coisa por compreender”. João Epstein.
Há neste mundo um senhor chamado Zdislas Milner. Entretanto escreveu isto: “O fato duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas, não dá a medida do seu valor”. Perdoe-me dar algum valor a meu livro. Não há pai que, sendo pai, abandone o filho corcunda que se afoga, para salvar o lindo herdeiro do vizinho. A ama-de-leite do conto foi uma grandíssima cabotina desnaturada.
Todo escritor acredita na valia do que escreve. Se mostra é por vaidade. Se não mostra é por vaidade também.
Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.
O ridículo é muitas vezes subjetivo. Independe do maior ou menor alvo de quem o sofre. Criamo-lo para vestir com ele quem fere nosso orgulho, ignorância, esterilidade.
Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro. Uso de cachimbo...
A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos.
Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se irmanam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão.
O vento senta no ombro das tuas velas!” Shakespeare. Homero já escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.
Taine disse que o ideal dum artista consiste em “apresentar, mais que os próprios objetos, completa e claramente qualquer característica essencial e saliente deles, por meio de alterações sistemáticas das relações naturais entre as suas partes, de modo a tornar essa característica mais visível e dominadora”. O sr. Luís Carlos, porém, reconheço que tem o direito de citar o mesmo em defesa das suas “Colunas”.
Já raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu Emílio Bayard: “O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da feiura. O artista sublima tudo”.
Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa.
Nossos sentidos são frágeis. A percepção das coisas exteriores é fraca, prejudicada por mil véus, provenientes das nossas taras físicas e morais: doenças, preconceitos, indisposições, antipatias, ignorâncias, hereditariedade, circunstâncias de tempo, de lugar, etc... Só idealmente podemos conceber os objetos como os atos na sua inteireza bela ou feia. A arte que, mesmo tirando os seus temas do mundo objetivo, desenvolve-se em comparações afastadas, exageradas, sem exatidão aparente, ou indica os objetos, como um universal, sem delimitação qualificativa nenhuma, tem o poder de nos conduzir a essa idealização livre, musical. Esta idealização livre, subjetiva, permite criar todo um ambiente de realidades ideais onde sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se apresentam na sua plenitude heroica, que ultrapassa a defeituosa percepção dos sentidos. Não sei que futurismo pode existir em quem quase perfilha a concepção estética de Fichte. Fujamos da natureza! Só assim a arte não se ressentirá da ridícula fraqueza da fotografia... colorida.
Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de sílabas. Já, primeiro livro, usei indiferentemente, sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares. Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão para que me insultem?
Mas não desdenho balouços dançarinos de redondilhas e decassílabos. Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado; sou como a Argentina: enriqueço-me.
Sobre a ordem? Repugna-me, com efeito, o que Musset chamou: “L’art de servir à point un dénouement bien cuit”.
Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas, dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos.
Quem leciona História do Brasil obedecerá a uma ordem que, certo, não consiste em estudar a guerra do Paraguai antes do ilustre acaso de Pedro Álvares. Quem canta seu subconsciente seguirá a ordem imprevista das comoções, das associações de imagens, dos contatos exteriores. Acontece que o tema às vezes descaminha. • O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo que a esta se dissesse: “Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o fim!” A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações.
Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho.
Virgílio, Homero, não usaram rima. Virgílio, Homero, têm assonâncias admiráveis. • A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão”.
Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros.
Sei construir teorias engenhosas. Quer ver?
A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível.
Ora, se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:
Mnezarete, a divina, a pálida Frineia,
Comparece ante a austera e rígida assembleia
Do Areópago supremo...”
fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.
Explico melhor:
Harmonia: combinação de sons simultâneos. Exemplo:
Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”
Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Se pronuncio “Arroubos”, como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM. “Lutas” não dá conclusão alguma a “Arroubos”; e, nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, – o verso harmônico. Mas, se em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética. Assim, em Pauliceia desvairada usam-se o verso melódico:
São Paulo é um palco de bailados russos”;
o verso harmônico:
A cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...”;
e a polifonia poética (um e às vezes dois e mesmo mais versos consecutivos):
A engrenagem trepida... A bruma neva...”
Que tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que construí.
Para ajuntar à teoria:
Os gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado, mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes, esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico, exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoletto: “Façam que possa combinar simultaneamente várias frases e verão de que sou capaz”. Encontro anedota em Galli, Estética musical. Se non é vero...
Há certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia oral, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe da harmonia musical. Antítese – genuína dissonância. E se tão apreciada é justo porque poetas como músicos, sempre sentiram o grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.
Comentário à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes baralham-se, tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada. Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza subjetivamente, dentro de nós.
Os psicólogos não admitirão a teoria... É responder-lhes com o Só-quem-ama de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac tirou o Só-quem-ama. Entretanto: se você já teve por acaso na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente) recorde-se do tumulto desordenado das muitas ideias que nesse momento lhe tumultuaram no cérebro. Essas ideias, reduzidas ao mínimo telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade. Vibravam, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação, sem concordância aparente – embora nascidas do mesmo acontecimento – formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade, verdadeiras harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do acontecimento.
Bilac, Tarde, é muitas vezes tentativa de harmonia poética. Daí, em parte ao menos, o estilo novo do livro. Descobriu, para a língua brasileira, a harmonia poética, antes dele empregada raramente (Gonçalves Dias, genialmente, na cena da luta, I-Juca-Pirama). O defeito de Bilac foi não metodizar o invento; tirar dele todas as consequências. Explica-se historicamente seu defeito: Tarde é um apogeu. As decadências não vêm depois dos apogeus. O apogeu já é decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto. Não tenho tempo para explicar: estude, se quiser. O nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar, metodizar as lições do passado. Volto ao poeta. Ele fez como os criadores do organum medieval: aceitou harmonias de quartas e de quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais intervalos. O número das suas harmonias é muito restrito. Assim, “[...] o ar e o chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e a fera” dá impressão duma longa, monótona série de quintas medievais, fastidiosa, excessiva, inútil, incapaz de sugestionar o ouvinte e dar-lhe a sensação do crepúsculo na mata.[48]
Lirismo: estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura. Preocupação de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus melhores versos. Rostand por exemplo; e, entre nós, mais ou menos, o sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus melhores versos. Melhor do que isso não posso fazer.
Ribot disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim aquele não escorcha e esmiúça friamente o momento lírico; e bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.
A linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite”. Renan.
Entre o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente”. De Wagner.
Você está reparando de que maneira costumo andar sozinho...
Dom Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra do Consciente, é inspecionado pela visita médica, a Inteligência, que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina obrigatória
Parece que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista. Que quer você? Consigo passar minhas sedas sem pagar direitos. Mas é psicologicamente impossível livrar-me das injeções e dos tônicos.
A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...
Você perceberá com facilidade que se na minha poesia a gramática às vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos: paisagem do meu eu profundo.
Pronomes? Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas palavras frequentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser.
Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun’Álvares. Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-infelizes.
Não quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre de arte.
O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. “E tu che se’ costì, anima viva, Pàrtiti da cotesti che son morti”.
Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha.
Quando uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: “Não entendi”. Pessoas houve porém que confessaram: “Entendi, mas não senti”. Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.
Escritor de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meus amigos, o anseio do farol. Se fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola coletiva, esta seria por certo o “Farolismo”. Nosso desejo: alumiar. A extrema-esquerda em que nos colocamos não permite meio-termo. Se gênios: indicaremos o caminho a seguir; bestas: naufrágios por evitar.
Canto da minha maneira. Que me importa se me não entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade. Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei-de achar também algum, alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos. Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d’óculos, farei que as próprias pedras se reúnam em muralhas à magia do meu cantar. E dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.
Minha mão escreveu a respeito deste livro que “não tinha e não tem nenhuma intenção de o publicar”. Jornal do Comércio, 6 de junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1° volume das Promenades littéraires. Rui Barbosa tem sobre ela página lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João Cocteau, La noce massacrée.
Mas todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Pauliceia desvairada não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei... Eu vivo!
Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia Paisagem n° 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao burguês. Quem não souber rezar, não leia religião. Desprezar: A escalada. Sofrer: Colloque sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave.
E está acabada a escola poética “Desvairismo”.
Próximo livro fundarei outra.
E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.
Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem do cárcere”.

Mário de Andrade, em Poesias completas