quarta-feira, 20 de novembro de 2024
Sinhazinha
Antes
de o sol nascer, a Esméria me acordou e fomos até a praia, para que
eu me lavasse. Ela disse que um bom banho devia ser tomado em água
doce, mas no momento o mar mesmo servia. Àquela hora da madrugada,
já eram muitos os pretos que estavam acordados, alguns também
tomando banho de mar, outros já trabalhando, circulando entre a
praia, a casa-grande, as plantações e as senzalas, homens e
mulheres carregando imensos balaios equilibrados sobre as cabeças ou
amarrados às costas. Muito mais homens que mulheres, e até aquele
momento eu não tinha visto nenhuma criança. Depois do banho, a
Esméria me deu roupas melhores do que o pano que eu usava amarrado
ao pescoço desde o desembarque, mas ainda longe de serem iguais às
das mulheres que eu tinha visto no atracadouro. Eram roupas simples,
uma bata e uma saia comprida até o tornozelo, brancas. Os pretos da
senzala grande usavam roupas quase iguais, mas feitas de outro tipo
de tecido, mais grosso e com listras brancas e azuis. A Esméria
disse que as minhas não eram roupas novas e nem para crianças do
meu tamanho, mas estavam bem conservadas e que depois perguntaria à
sinhá se precisava providenciar outras, já que eu ia ficar dentro
da casa, onde os pretos não deviam fazer má figura. Ela também
disse que eu estava bonita e que não falaria mais comigo em iorubá,
pois eu precisava aprender logo o português. Alertou novamente que
nunca, nunca mesmo, eu poderia falar iorubá ou eve-fon perto do
sinhô, da sinhá, da sinhazinha ou do Eufrásio, pois seria
castigada. Não me pareceu difícil, pois eu achava a língua bonita
e já entendia muitas palavras, faltando apenas aprender a
pronunciá-las direito.
Na
cozinha a movimentação já era grande, e a Esméria mal teve tempo
de comer o mingau que a Antônia tinha preparado para todos nós. O
dia na casa começava cedo, pois quando o sinhô José Carlos
acordava, com os galos, a mesa do desjejum já devia estar posta. A
Esméria parecia nervosa com o meu primeiro dia na casa, e eu também,
desejando nunca ter deixado Savalu, que não era tão bonita quanto a
Ilha dos Frades ou a Ilha de Itaparica, mas era onde eu tinha nascido
e conhecia muita gente, onde tinha a minha mãe, a minha avó, a
Taiwo e o Kokumo, e não ficava preocupada em saber se as pessoas iam
gostar de mim ou não, porque já gostavam. A manhã já ia pelo meio
quando a Antônia apareceu para me chamar; demos a volta por fora da
casa e fomos até a varanda para encontrar a sinhá e a sinhazinha.
A
sinhá estava sentada em uma cadeira de balanço e nem levantou os
olhos do bordado que tinha no colo. A sinhazinha Maria Clara, em meio
a almofadas e bonecas, brincava sobre uma esteira feita de panos
coloridos. As bonecas dela tinham rostos com olhos, boca e nariz, e
cabelos e roupas de verdade, parecendo gente, muito diferentes das
que a minha avó fazia para mim e para a Taiwo. Quando chegamos perto
e a Antônia disse o meu nome, ela levantou o rosto e era a pessoa
mais bonita que eu já tinha visto, e ao mesmo tempo não parecia ser
real. Era como uma de suas bonecas, uma boneca viva. Na verdade, eu
não só a achei bonita, mas também senti medo ou um certo
estranhamento quando percebi os olhos, que me pareceram de vidro ou
de água do mar, pois nunca tinha visto gente com olhos daquela cor.
Os do sinhô também eram azuis, como notei mais tarde, mas de um
azul mais escuro, que não chamava atenção. Além dos olhos azuis,
ela tinha o rosto muito branco, a boca pequena e cor-de-rosa e os
cabelos da cor de cabelo de milho. Estava usando um vestido também
azul, do mesmo tom dos olhos ou do mar, e que se espalhava feito água
ao redor dela. A sinhazinha me olhou com certo interesse, mas não
retribuiu meu sorriso, provavelmente tinha me achado menos
interessante e muito mais feia que os outros brinquedos, porque foi
isso que a Esméria disse que eu seria para ela, um brinquedo, e era
como tal que eu deveria agir, ficar quieta e esperar que ela quisesse
brincar comigo, do que ela quisesse. E apenas esperar, foi o que fiz
durante todo o resto da manhã. Esperar que alguma coisa acontecesse
que não fosse a sinhá Ana Felipa gritando de tempos em tempos para
dentro de casa e logo sendo atendida pelo Sebastião ou pela Antônia,
ou pelos dois juntos.
Fazendo
de conta que eu não estava ali, a sinhazinha ficou trocando as
roupas e penteando os cabelos das bonecas. Mas eu até gostei que ela
me ignorasse, porque assim pudecontinuar maravilhada, sem tirar os
olhos dela e, principalmente, das bonecas. Muito de vez em quando ela
me olhava com o canto do olho, para logo depois se esquecer de mim
novamente, em um alheamento que me fazia compará-la ainda mais às
bonecas. Quando o sinhô apareceu na varanda e se sentou ao lado da
sinhá por alguns instantes, os dois também permanecendo em
silêncio, e o Sebastião chamou para o almoço, eu fiquei lá, como
a Esméria tinha dito, como brinquedo obediente, parada, morrendo de
vontade de ver de perto as bonecas da sinhazinha. Foi difícil me
conter, mas fiquei com medo de que tivessem colocado alguém para me
vigiar, até que a Esméria me chamou para comer também. Com os
pratos nas mãos, nos sentamos à porta da cozinha, onde ela me
mostrava alguns objetos, dizia os nomes deles em português e pedia
que eu repetisse. Entre outras coisas, naquele dia aprendi que
existem talheres, e que eu deveria usá-los para comer, que não
podia mais comer com as mãos, o que era proibido pela sinhá aos
escravos que trabalhavam na casa-grande.
Depois
do almoço, os senhores foram se deitar um pouco e eu fui para o
lugar onde estivera durante a manhã, como se não tivesse saído de
lá. A sinhá e a sinhazinha voltaram para a varanda com a fresca da
tarde e, de novo, agiram como se eu não existisse. A sinhá
entretida com um livro e a sinhazinha, com as bonecas. E foi assim
durante quatro ou cinco dias, enquanto à noite, e até que fosse
necessário, as pretas da casa me ensinavam português, como também
o Tico e o Hilário, com quem eu brincava de vez em quando. Eu já
entendia quase tudo o que falavam e não foi muito difícil começar
a falar também. Não tive a menor dificuldade em me comunicar com a
sinhazinha quando ela finalmente conversou comigo, mostrando uma
boneca e dois vestidos, um amarelo e outro branco, e perguntando qual
deles eu preferia. Eu apontei o amarelo, mas foi o branco que ela
colocou. Na mesma tarde, ela estava sentada no degrau mais baixo da
escada que levava da varanda ao jardim, com a Antônia no degrau de
cima, às suas costas, penteando os cabelos cor de milho. Eu apenas
olhava quando ela me chamou, tirou o pente das mãos da Antônia e
colocou nas minhas, pedindo que eu continuasse o trabalho da outra.
Primeiro, tive medo de tocar os cabelos dela, de machucá-la com o
pente, mas logo gostei da suavidade que tinha entre as mãos.
Primeiro passei os dedos, sentindo os fios deslizarem entre eles como
as franjas de um lenço que a Sanja, a filha da Titilayo, tinha
ganhado de um marinheiro com quem se deitara. Acho que ficamos ali
durante horas, eu mexendo no cabelo dela e nós duas olhando o mar
além do jardim, além da areia branca. A partir daquele dia, só eu
escovava os cabelos da sinhazinha, sempre inventando um jeito
diferente de prendê-los, com fitas, grampos ou em tranças, que ela
tentava repetir nas bonecas. Foi por isso que tive permissão para
pegar nelas, porque a sinhazinha Maria Clara não conseguiu copiar um
penteado com tranças e pediu que eu o fizesse. Os cabelos das
bonecas eram quase tão macios quanto os dela, e ficávamos o dia
inteiro naquilo, fazendo penteados e trocando as roupas para
combinar, a sinhazinha sempre pedindo a minha opinião. Opinião que
ela não aceitava, logo percebi, e passei a dizer o contrário do que
realmente achava para que, ao me contrariar, ela fizesse o meu
verdadeiro gosto.
A
sinhá parou de aparecer na varanda e a Esméria disse que ela estava
pejada, de resguardo. Contou que ela já tinha ficado assim várias
vezes, mas nunca segurava criança. Quase todas morreram antes mesmo
de se notar a barriga, mas duas chegaram a nascer antes do tempo e
morreram logo em seguida. Em uma dessas vezes a sinhá quase morreu
também, sendo salva por milagre. Foi um rebuliço na fazenda toda,
com o sinhô descontando em maldade nos pretos o medo que ele tinha
de perder a segunda mulher, como tinha acontecido com a primeira.
Comentei que deviam dizer a ela que essas crianças podiam ser
abikus, mas fui repreendida pela Esméria e avisada de que
nunca deveria tocar nesse assunto. Ela disse também que, mesmo não
sendo de verdade, todos nós tínhamos que adotar a religião e as
crenças dos brancos, e que era falha dela ainda não ter me ensinado
a rezar. Naquele dia mesmo, fez com que eu repetisse até decorar
duas rezas importantes, a ave-maria e o pai-nosso, pois a qualquer
momento a sinhá Ana Felipa poderia mandar me chamar para ver se eu
já sabia rezar como gente de bem. Eu não conseguia entender que mal
havia em falar de abiku, de Ibêjis, de voduns, mas a Esméria
retrucou com tanta braveza que não me atrevi a contar sobre as
promessas que tinha feito à minha avó, como providenciar o pingente
da Taiwo, que eu tinha que trazer sempre comigo e que ainda estava
representado pela concha amarrada no pescoço. Naquela noite sonhei
com a Taiwo, que não disse nada, mas parecia brava comigo.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
Sísifo
Arte: Marc Perez
Toda
a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe
pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda
todos os ídolos se calarem quando contempla o seu tormento. No
universo que repentinamente recuperou o silêncio, erguem-se milhares
de vozes maravilhadas da terra.
[...]
Deixo
Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo.
Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue
as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo,
doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão
dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite
forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta
para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo
feliz.
Albert Camus, em O Mito de Sísifo
Ah, já está tudo lido
Ah,
já está tudo lido.
Mesmo
o que falta ler!
Sonho,
e ao meu ouvido
Que
música vem ter?
Se
escuto, nenhuma.
Se
não ouço ao luar
Uma
voz que é bruma
Entra
em meu sonhar.
E
esta é a voz que canta
Se
não sei ouvir…
Tudo
em mim se encanta
E
esquece sentir.
O
que a voz canta
Para
sempre agora
Na
alma me fica
Se
a alma me ignora.
Sinto,
quero, sei-me
Só
há ter perdido –
E
o eco onde sonhei-me
Esquece
do meu ouvido.
Fernando Pessoa, em Poesias inéditas e poemas dramáticos
Capítulo XIII | Capitu
De
repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
– Capitu!
E
no quintal:
– Mamãe!
E
outra vez na casa:
– Vem
cá!
Não
me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a
chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às
tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas,
apenas inferiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça
não as rege por meio de ideias. As minhas chegaram ao pé do muro.
Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe,
quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem
taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e
fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que
exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um
lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as
bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela
com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do doutor João
da Costa; tomava o pulso à doente, e pedia-lhe que mostrasse a
língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu. Então eu coçava
o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas
sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do
médico.
– Capitu!
– Mamãe!
– Deixa
de estar esburacando o muro; vem cá.
A
voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos
fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão
andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço,
empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro,
voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la
olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se
quisesse esconder alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente
levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me
inquieta:
– Que
é que você tem?
– Eu?
Nada.
– Nada,
não; você tem alguma coisa.
Quis
insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e
coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca
fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos,
alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado.
Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma
à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos
claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo
largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas
com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas
com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava
sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns
pontos.
– Que
é que você tem? Repetiu.
– Não
é nada, balbuciei finalmente.
E
emendei logo:
– É
uma notícia.
– Notícia
de quê?
Pensei
em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão
que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se
não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e
rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista
não sei como…
– Então?
– Você
sabe…
Nisto
olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo
ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e
lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los
de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu
acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e
apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o
que era.
Machado de Assis, em Dom Casmurro
O meu avô
O
meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um
mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é
procurar, explicava.
Quase
usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a
um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador
de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza
profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do
abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia.
Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim
um mistério tremendo.
Valter Hugo Mãe, em As mais belas coisas do mundo
No meu tempo era diferente! | (Prólogo)
quando
eu tinha a tua idade no meu tempo era diferente enquanto você viver
debaixo do meu teto você não sabe o que é cansaço não me faça
parar o carro de castigo agora mesmo pois saiba que dinheiro não dá
em árvore tenha juízo coloca um casaco quando você for mais velho
você vai entender não coloca a mão na boca não esquece de escovar
os dentes você já está muito crescidinho pra isso já comeu alguma
coisa isso é hora de estar acordado dê um beijo na titia dê um
abraço no seu irmão diz tchau para o amiguinho já passou da hora
você precisa comer direito parece comigo quando eu era jovem só não
esquece a cabeça porque tá grudada no pescoço me dê a mão para
atravessar a rua será sempre o meu bebê não chegue tarde em casa
querer não é poder tira isso da boca menina avise quando chegar não
levante a voz comigo não foi isso que te ensinei tenha modos você
não para quieta qual é a palavrinha mágica não é pra correr
dentro de casa não vá dormir muito tarde chega de videogame por
hoje se você não estudar não vai chegar em lugar nenhum você não
é os outros eu te amo porque sim tira o dedo do nariz tanta gente
com fome e você desperdiçando comida onde você estava com quem
você vai sair que horas vai chegar em casa se colocar no prato vai
ter que comer deus te abençoe e te guarde meu filho minha filha
aconteceu alguma coisa você passa muito tempo no celular nem vai
doer é só uma picadinha o gato comeu a sua língua como foi na
escola estudou para a prova senta direito na volta a gente compra o
que você quer ser quando você crescer pare de bancar o palhaço
você ainda vai me matar de desgosto se apanhar na rua vai apanhar em
dobro quando chegar em casa espera só sua mãe chegar o que você
tem na cabeça não fale com estranhos deixe de ser bicho do mato já
está pronta pra casar vou contar até três o que eu acabei de dizer
não me faça voltar eu não quero ouvir um pio passa pra dentro você
nem experimentou é como falar com a parede esse quarto parece um
chiqueiro se eu for aí você vai ver quantas vezes eu tenho que
perguntar não importa quem começou já mandei parar eu disse talvez
se você perguntar de novo a resposta é não vai ser assim e pronto
se comporte como uma mocinha rapazinho engole esse choro agora você
vai aprender a me tratar que nem gente se eu for até aí e achar
você me paga olha pra mim quando eu estiver falando com você você
não é todo mundo espera só a gente chegar em casa quer me matar do
coração você me respeite quebra mesmo não foi você que pagou não
fez mais do que a sua obrigação eu não durmo à noite por sua
causa quando eu morrer você vai me dar valor estou falando para o
seu bem um dia você vai me agradecer um dia você vai ter filhos e
vai entender
Bethânia Pires Amaro, em O ninho
terça-feira, 19 de novembro de 2024
O vento
O
vento é um inveterado ledor de tabuletas. E, com toda aquela sua
pressa, é exatamente o contrário do leitor apressado: não salta
uma só que seja, não perde nenhuma delas, lê e passa — que o seu
destino é passar —, mas guarda uma lembrança vertiginosa de
todas, principalmente das verdes, das vermelhas, das de azul mais
forte, sem esquecer, ó Van Gogh, as tabuletas amarelas...
Sabes?
Passa no vento a alma dos pintores mortos, procurando captar, levar
(para onde?) as cores deste mundo.
Que
este mundo pode ser que não preste, mas é tão bom de ver!
Mário Quintana, em Caderno H
Termópilas
Honra
àqueles que Termópilas fixaram
em
suas vidas para as defender.
Que,
jamais se furtando à obrigação,
foram
justos e retos nos seus atos,
mas
condoídos, também, e compassivos;
generosos,
quando ricos; quando pobres,
generosos
ainda com seu pouco,
socorrendo
a quem pudessem; proclamando
sempre
a verdade, embora sem nutrir
ódio
algum por aqueles que mentissem.
E
de mais honra serão merecedores
se
previram (como tantos o fizeram)
que
Efialte finalmente há de surgir,
e
que os medas finalmente passarão.
Konstantinos Kaváfis (tradução de José Paulo Paes)
Manhã
Não
tive uma vez uma juventude amável, heroica, fabulosa, a ser
narrada sobre folhas de ouro – muita sorte! Por que crime, por que
erro, mereci minha fraqueza atual? Os que creem que os animais têm
soluços de pena, que os doentes desesperam, que os mortos tenham
maus sonhos, tratem de contar a minha queda e o meu sono. Eu não
posso me explicar mais que o mendigo com seus contínuos Pater
e Ave Maria. Não sei mais falar!
Porém
hoje creio ter terminado o relato do meu inferno. Era o inferno; o
velho, de que o filho do homem abriu as portas.
Do
mesmo deserto, à mesma noite, sempre meus olhos cansados se abrem
para a estrela de prata, sempre, sem que se comovam os reis da vida,
os três magos, o coração, a alma, o espírito. Quando iremos, além
das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da
sabedoria nova, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição,
adorar – os primeiros! – O Natal na terra!
O
cântico dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos
a vida.
Arthur Rimbaud, em Uma temporada no inferno seguido de Correspondência
Minhas páginas femininas
Há
já bastante tempo, precisando de dinheiro, combinei com um jornal
carioca que eu faria a página feminina: só que ela não seria
assinada por mim, e sim por Ilka Soares. Além da vantagem para o
jornal, convinha a ambas. Encarregaram-me pois da seção culinária,
de beleza, de modas, e de conselhos destinados exclusivamente para a
mulher, mulher de classe média.
Um
dia destes, mexendo em papéis, encontrei algumas dessas páginas, e
reli, por curiosidade, a parte de conselhos. E eis que de repente
perguntei-me: por que não dar pelo menos em uma de minhas colunas
aqui o endereço da mulher de classe média? Ela, suponho, também me
lê às vezes.
Vejamos:
O
título deste conselho era: “Você é mais bonita do que pensa”.
E seguia-se assim: “Uma amiga disse brincando que é rara a mulher
para quem esse título se adapta – na sua opinião a maioria das
mulheres se acha linda, e que eu lhes faria um benefício se lhes
dissesse: você é menos bonita do que pensa. Mas tenho
certeza do contrário. Tenho visto que mesmo a mulher que tem, em
matéria de beleza, o que se chama de sucesso, é uma mulher
insegura. As outras, então, disfarçam como podem um sentimento que
vai desde um mal-estar declarado e que as leva a um recolhimento de
timidez e falta de alegria natural – até formas menos óbvias de
insegurança. Não, não é fácil ser mulher.” E assim continuava
eu, a grande conselheira.
Outro
conselho tinha o título de “Acordar-se”:
“Sonhar
é bom, é como voar suspensa por balões. O problema é que um
simples bodoque de criança, e os balões estouram. Se é verdade que
do chão não se passa, também é verdade que quanto mais alto se
está maior é a queda.
“Não
é por ser grande a queda que se evitará o grande gosto de subir.
Mas subir em balões? Voar assim em autoenganos é muitas vezes
melancólico.
“Há
vários modos de alçar-se em balões. Um destes consiste em cair em
devaneios que levam longe e levam mal. E para voltar? A aterrissagem
é difícil. Quando se dorme fora de hora, o despertar é meio ruim.
“Outra
variedade de subir em balões é a de não enfrentar os fatos e
mentir-se sem cessar e já sem mesmo sentir. É bom mentir? Não
encarar os fatos? Talvez, mas você nunca poderá enganar totalmente
a si mesma. E em geral a mentira só fará evadir-se alguns
centímetros.
“Por
que não tentar subir pelas escadas? É menos bonito, menos rápido.
(Não falo da escada da Penha, que é caso raro.) Mas cada degrau
alcançado ainda é a boa terra da realidade. Às vezes não ‘boa’,
bem sei, mas é chão, é realidade. Em cada degrau alcançado se
pode, inclusive, parar um pouco para descansar, sem por isso perder
terreno ou bater com a cabeça no chão. ‘Também da escada se pode
cair’, dirá você que não gosta de ser acordada. Bom, cair
pode-se cair, todos sabem disso, sobretudo as crianças que nem por
isso deixam de andar. Mas levante-se, então; as crianças também
sabem disso.”
A
um conselho dei o título de “Conselho bom, mas preguiçoso”:
“Manter uma conversação? Não é tão difícil quanto parece. Se
você souber ouvir, metade da tarefa estará feita. Não é somente
esta a vantagem de saber ouvir. Tem-se além disso a oportunidade de
aprender alguma coisa interessante.“
E
se o interlocutor for desinteressante? Bem, nesse caso, desligue.
Sempre há um modo de ouvir sem escutar, e enquanto isso pensar em
algo melhor. Este conselho, na verdade pouco educado, só pode ser
aplicado por pessoas espertíssimas na arte de dissimular.
Exige grande prática, certa arte de manter um sorriso leve de quem
ouve com prazer, mas ao mesmo tempo a capacidade de captar no ar,
pela entonação de quem fala, a hora de parar de sorrir e tomar um
ar compungido. Pensando melhor, este conselho é contraindicado para
a maioria das pessoas.”
Bem,
vou terminar aqui senão termino invadindo as seções das colegas.
Para o que não fui contratada.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
Genealogia da moral
PRÓLOGO
1.
Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos
somos desconhecidos — e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como
poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão alguém
disse: “onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”.
Nosso tesouro está onde estão as colmeias do nosso
conhecimento. Estamos sempre a caminho delas, sendo por natureza
criaturas aladas e coletoras do mel do espírito, tendo no coração
apenas um propósito — levar algo “para casa”. Quanto ao mais
da vida, as chamadas “vivências”, qual de nós pode levá-las a
sério? Ou ter tempo para elas? Nas experiências presentes, receio,
estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso coração —
para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente
disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no
ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o
que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os
ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que
foi que vivemos?”, e também “quem somos realmente?”, e em
seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da
nossa vivência, da nossa vida, nosso ser — ah! e contamos
errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos,
não nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se
aplicará para sempre a frase: “Cada qual é o mais distante de si
mesmo” — para nós mesmos somos “homens do desconhecimento”…
2.
Meus pensamentos sobre a origem de nossos preconceitos morais — tal
é o tema deste escrito polêmico — tiveram sua expressão
primeira, modesta e provisória na coletânea de aforismos que leva o
título Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos
livres, cuja redação foi iniciada em Sorrento, durante um
inverno que me permitiu fazer uma parada, como faz um andarilho, e
deitar os olhos sobre a terra vasta e perigosa que meu espírito
percorrera até então. Isto aconteceu no inverno de 1876-7; os
pensamentos mesmos são mais antigos. Já eram, no essencial, os
mesmos que retomo nas dissertações seguintes — esperemos que o
longo intervalo lhes tenha feito bem, que tenham ficado mais maduros,
mais claros, fortes, perfeitos! O fato de que me atenho a eles ainda
hoje, de que eles mesmos se mantenham juntos de modo sempre firme,
crescendo e entrelaçando-se, isto fortalece em mim a feliz confiança
em que não me tenham brotado de maneira isolada, fortuita,
esporádica, mas a partir de uma raiz comum, de algo que comanda na
profundeza, uma vontade fundamental de conhecimento que fala
com determinação sempre maior, exigindo sempre maior precisão.
Pois somente assim convém a um filósofo. Não temos o direito de
atuar isoladamente em nada: não podemos errar isolados, nem
isolados encontrar a verdade. Mas sim, com a necessidade com que uma
árvore tem seus frutos, nascem em nós nossas ideias, nossos
valores, nossos sins e nãos e ses e quês — todos relacionados e
relativos uns aos outros, e testemunhas de uma vontade, uma
saúde, um terreno, um sol. — Se vocês
gostarão desses nossos frutos? — Mas que importa isso às árvores!
Que importa isso a nós, filósofos!…
3.
Por um escrúpulo que me é peculiar, e que confesso a contragosto —
diz respeito à moral, a tudo o que até agora foi celebrado na terra
como moral —, escrúpulo que surgiu tão cedo em minha vida, tão
insolicitado, tão incontido, tão em contradição com ambiente,
idade, exemplo, procedência, que eu quase poderia denominá-lo meu
“a priori” — tanto minha curiosidade quanto minha suspeita
deveriam logo deter-se na questãode onde se originam verdadeiramente
nosso bem e nosso mal. De fato, já quando era um garoto de treze
anos me perseguia o problema da origem do bem e do mal: a ele
dediquei, numa idade em que se tem “o coração dividido entre
brinquedos e Deus”, minha primeira brincadeira literária, meu
primeiro exercício filosófico — quanto à “solução” que
encontrei então, bem, rendi homenagem a Deus, como é justo,
fazendo-o Pai do mal. Era isso o que exigia meu “a priori” de
mim? Aquele novo e imoral, pelo menos imoralista “a priori”, e o
“imperativo categórico” que nele falava, tão antikantiano, tão
enigmático, ao qual desde então tenho dado atenção, e mais que
atenção?... Por fortuna logo aprendi a separar o preconceito
teológico do moral, e não mais busquei a origem do mal por trás do
mundo. Alguma educação histórica e filológica, juntamente com um
inato senso seletivo em questões psicológicas, em breve transformou
meu problema em outro: sob que condições o homem inventou para si
os juízos de valor “bom” e “mau”? e que valor têm eles?
Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São
indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao
contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida,
sua coragem, sua certeza, seu futuro? — Para isso encontrei e
arrisquei respostas diversas, diferenciei épocas, povos, hierarquias
dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas nasceram
novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades: até que
finalmente eu possuía um país meu, um chão próprio, um mundo
silente, próspero, florescente, como um jardim secreto do qual
ninguém suspeitasse... Oh, como somos felizes, nós, homens do
conhecimento, desde que saibamos manter silêncio por algum tempo!…
4.
O primeiro impulso para divulgar algumas das minhas hipóteses sobre
a procedência da moral me foi dado por um livrinho claro, limpo e
sagaz — e maroto —, no qual uma espécie contrária e perversa de
hipótese genealógica, sua espécie propriamente inglesa, pela
primeira vez me apareceu nitidamente, e que por isso me atraiu —
com aquela força de atração que possui tudo o que é oposto e
antípoda. O título do livrinho era A origem das impressões
morais; seu autor, o dr. Paul Rée; o ano de seu aparecimento,
1877. Talvez eu jamais tenha lido algo a que dissesse “não” de
tal modo, sentença por sentença, conclusão por conclusão, como a
esse livro: sem traço de irritação ou impaciência, porém. Na
obra acima mencionada, na qual trabalhava então, eu me refiro,
oportuna e inoportunamente, às teses desse livro, não para
refutá-las — que tenho eu a ver com refutações! — mas sim,
como convém num espírito positivo, para substituir o improvável
pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro. Foi então
que, como disse, pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre
origens a que são dedicadas estas dissertações, de maneira
canhestra, como seria o último a negar, ainda sem liberdade, sem
linguagem própria para essas coisas próprias, e com recaídas e
hesitações diversas. Confira-se, em particular, o que digo em
Humano, demasiado humano (parágrafo 45) sobre a dupla
pré-história do bem e do mal (a saber, na esfera dos nobres e na
dos escravos); igualmente (§ 136) sobre valor e origem da moral
ascética; igualmente (§ 96, 99, e vol. II, 89), sobre a “moralidade
do costume”, aquela espécie de moral mais antiga e primordial, que
difere toto coelo [diametralmente] do modo de valorizar
altruísta (que o dr. Rée, como todos os genealogistas da moral
ingleses, vê como o modo de valorar em si); igualmente (§ 92), O
andarilho (§ 26), Aurora (§ 112), sobre a origem da
justiça como um acerto entre poderosos mais ou menos iguais (o
equilíbrio como pressuposto de todo contrato, portanto de todo
direito); do mesmo modo, O andarilho (§ 22, 33), sobre a
origem do castigo, ao qual a finalidade de intimidação não é
essencial nem primordial (como pensa o dr. Rée — ela lhe é, isto
sim, enxertada em determinadas circunstâncias, e sempre como algo
acessório, adicionado).
5.
No fundo interessava-me algo bem mais importante do que revolver
hipóteses, minhas ou alheias, acerca da origem da moral (mais
precisamente, isso me interessava apenas com vista a um fim para o
qual era um meio entre muitos). Para mim, tratava-se do valor
da moral — e nisso eu tinha de me defrontar sobretudo com o meu
grande mestre Schopenhauer, ao qual aquele livro, a paixão e a
secreta oposição daquele livro se dirigem, como a um contemporâneo
(— também ele era um “escrito polêmico”). Tratava-se, em
especial, do valor do “não-egoísmo”, dos instintos de
compaixão, abnegação, sacrifício, que precisamente Schopenhauer
havia dourado, divinizado, idealizado, por tão longo tempo que
afinal eles lhe ficaram como “valores em si”, com base nos quais
ele disse não à vida e a si mesmo. Mas precisamente contra esses
instintos manifestava-se em mim uma desconfiança cada vez mais
radical, um ceticismo cada vez mais profundo! Precisamente nisso
enxerguei o grande perigo para a humanidade, sua mais sublime
sedução e tentação — a quê? ao nada? —; precisamente nisso
enxerguei o começo do fim, o ponto morto, o cansaço que olha para
trás, a vontade que se volta contra a vida, a última doença
anunciando-se terna e melancólica: eu compreendi a moral da
compaixão, cada vez mais se alastrando, capturando e tornando
doentes até mesmo os filósofos, como o mais inquietante sintoma
dessa nossa inquietante cultura europeia; como o seu caminho sinuoso
em direção a um novo budismo? a um budismo europeu? a um —
niilismo?... Pois essa moderna preferência e superestimação
da compaixão por parte dos filósofos é algo novo: justamente sobre
o não-valor da compaixão os filósofos estavam até agora de
acordo. Menciono apenas Platão, Spinoza, La Rochefoucauld e Kant,
quatro espíritos tão diversos quanto possível um do outro, mas
unânimes em um ponto: na pouca estima da compaixão. —
6.
Este problema do valor da compaixão e da moral da compaixão
(— eu sou um adversário do amolecimento moderno dos sentimentos —)
à primeira vista parece ser algo isolado, uma interrogação à
parte; mas quem neste ponto se detém, quem aqui aprende a
questionar, a este sucederá o mesmo que ocorreu a mim — uma
perspectiva imensa se abre para ele, uma nova possibilidade dele se
apodera como uma vertigem, toda espécie de desconfiança, suspeita e
temor salta adiante, cambaleia a crença na moral, em toda moral —
por fim, uma nova exigência se faz ouvir. Enunciemo-la, esta nova
exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o
próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão —
para isto é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e
se modificaram (moral como consequência, como sintoma, máscara,
tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa,
medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal
como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor
desses “valores” como dado, como efetivo, como além de qualquer
questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em
atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais
elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para
o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário
fosse a verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo,
como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o
qual o presente vivesse como que às expensas do futuro?
Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num
estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria
culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência
do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre
os perigos?…
7.
Em suma, desde que para mim se abriu essa perspectiva, tive razões
para olhar em torno, em busca de camaradas doutos, ousados e
trabalhadores (ainda hoje olho). O objetivo é percorrer a imensa,
longínqua e recôndita região da moral — da moral que realmente
houve, que realmente se viveu — com novas perguntas, com novos
olhos: isto não significa praticamente descobrir essa
região?... Se para isso pensei no mencionado dr. Rée, entre outros,
isto ocorreu por não duvidar que a natureza mesma das suas questões
o levaria a métodos mais corretos para alcançar as respostas. Teria
me enganado nisso? Meu desejo, em todo o caso, era dar a um olhar tão
agudo e imparcial uma direção melhor, a direção da efetiva
história da moral, prevenindo-o a tempo contra essas
hipóteses inglesas que se perdem no azul. Pois é óbvio que
uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral:
o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente
constatável, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase
indecifrável escrita hieroglífica do passado moral humano! — O
dr. Rée não sabia de sua existência; mas ele havia lido Darwin —
e assim, em suas hipóteses, de maneira no mínimo divertida, a besta
darwiniana e o moderníssimo, modesto fracote moral dão-se
graciosamente as mãos, este com expressão de bondosa e refinada
indolência no rosto, à qual se mistura inclusive um grão de
pessimismo e de cansaço, como se não pagasse a pena levar todas
essas coisas — os problemas da moral — tão a sério. A mim me
parece, muito ao contrário, que não existem coisas que mais
compensem serem levadas a sério; sua recompensa está, por
exemplo, em que talvez se possa um dia levá-las na brincadeira,
na jovialidade. Pois a jovialidade, ou, para dizê-lo com a minha
linguagem, a gaia ciência, é uma recompensa: um pagamento
por uma longa, valente, laboriosa e subterrânea seriedade, uma tal
que, admito, não é para todos. No dia, porém, em que com todo o
coração dissermos: “avante! também a nossa velha moral é coisa
de comédia!” — teremos descoberto novas intrigas e
possibilidades para o drama dionisíaco do “Destino da Alma”; e
ele saberá utilizá-las, disso podemos ter certeza, ele, o grande,
velho, eterno poeta-comediógrafo da nossa existência!…
8.
Se este livro resultar incompreensível para alguém, ou dissonante
aos seus ouvidos, a culpa, quero crer, não será necessariamente
minha. Ele é bastante claro, supondo-se — e eu suponho — que se
tenha lido minhas obras anteriores, com alguma aplicação na
leitura: elas realmente não são fáceis. No que toca ao meu
Zaratustra, por exemplo, não pode se gabar de conhecê-lo
quem já não tenha sido profundamente ferido e profundamente
encantado por cada palavra sua: só então poderá fruir o privilégio
de participar, reverentemente, do elemento alciônico do qual se
originou aquela obra, da sua luminosa claridade, distância, amplidão
e certeza. Em outros casos, a forma aforística traz dificuldade:
isto porque atualmente não lhe é dada suficiente importância. Bem
cunhado e moldado, um aforismo não foi ainda “decifrado”, ao ser
apenas lido: deve ter início, então, a sua interpretação,
para a qual se requer uma arte da interpretação. Na terceira
dissertação deste livro, ofereço um exemplo do que aqui denomino
“interpretação”: a dissertação é precedida por um aforismo,
do qual ela constitui o comentário. É certo que, a praticar desse
modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente
em nossos dias está bem esquecido — e que exigirá tempo, até que
minhas obras sejam “legíveis” —, para o qual é imprescindível
ser quase uma vaca, e não um “homem moderno”: o ruminar…
Sils-Maria,
Alta Engadina, julho de 1887
Friedrich Nietzsche, em Genealogia da moral
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Honra
O
analista de Bagé se declara “freudiano de cola decalco” e “mais
ortodoxo que Caximir Buquê”, mas isto não o impede de
experimentar com novas formas de terapia. Como no caso da mulher do
compadre Salustiano.
Contam
que um dia o compadre Salustiano entrou no consultório, segundo o
analista de Bagé, como mata-mosquito em convento. Causando alvoroço.
Eles há tempo não se viam.
– Guasca
velho!
– Cachorrão!
– Índio
bem loco!
– Seu
bosta!
– Animal!
– Desgraçado!
E
se atiraram um nos braços do outro, com tanta força que a Lindaura
veio ver se não tinha móvel quebrado. Depois o analista de Bagé
mandou o amigo se deitar no divã e desembuchar, que era de graça. O
Salustiano reagiu.
– Epa.
Ta me estranhando, compadre? O problema é com a Rosa Flor.
–O
que tem?
– A
Rosa Flor quer ir pro Rio.
– Ir
embora do Rio Grande? Mas enloqueceu.
– Pos
é. Diz que não aguenta mais vê campo. Quer ver o mar.
– Mas
ela não sabe que mar é igual a campo, com a desvantagem que afunda?
– Sabe,
mas não adianta. Aquela, quando decide ir pra um lugar, é como
cachorro de cego. Só matando.
– Escuta
aqui, tchê. Tu deste um trancaço nela?
– Dei
trancaço, dei laço, cheguei até a pedi. Foi como mijá em
incêndio.
– Cosa,
seu. Tu sabe que mulher que vai pro Rio já desce na rodoviária
falada.
– E
não sei?
– Me
manda ela aqui.
A
Rosa Flor, a princípio, não quis dizer nada. Ia para o Rio e
pronto. O analista de Bagé abriu um volume do Freud para consulta.
Era ali que guardava, numa folha de caderno de armazém, escritas a
toco de lápis, as máximas do velho Adão, seu pai. Encontrou um
precedente: “Pra amarrar cavalo no campo e mulher em casa, só
carece de um pau firme.” Deitada no pelego, a Rosa Flor confirmou
com a cabeça quando o analista perguntou, sutilmente, se o compadre
não passava mais a linguiça na farinheira. Era verdade.
O
analista botou uma mão na cabeça. Aquilo era a pior coisa que pode
acontecer com um gaúcho, fora cair do cavalo ou a filha casar com
nordestino.
Com
a outra mão, começou a desabotoar a braguilha. Fazia qualquer coisa
por um amigo.
Ficou
combinado que a Rosa Flor teria sessões duas vezes por semana e
desistiria daquela história de ir para o Rio, o compadre Salus tiano
podia ficar descansado. A honra da Rosa Flor estava salva.
Luís Fernando Veríssimo, em O analista de Bagé
Fábrica do poema
In
memoria de Donna Lina Bo Bardi
sonho
o poema de arquitetura ideal
cuja
própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me
perito em extrair faíscas das britas
e
leite das pedras.
acordo.
e
o poema todo se esfarrapa, fiapo a fiapo.
acordo.
o
prédio, pedra e cal, esvoaça
como
um leve papel solto à mercê do vento
e
evola-se, cinza de um corpo esvaído
de
qualquer sentido.
acordo,
e
o poema-miragem se desfaz
desconstruído
como se nunca houvera sido.
acordo!
os
olhos chumbado
pelo
mingau de almas e os ouvidos moucos,
assim
é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se
os anéis de fumo de ópio
e
ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques,
catacreses,
metonímias,
aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos
no sorvedouro.
não
deve adiantar grande coisa
permanecer
à espreita no topo fantasma
da
torre de vigia.
nem
a simulação de se afunda no sono.
nem
dormir deveras.
pois
a questão-chave é
sob
que máscara retornará o recalcado?
(mas
eu figuro meu vulto
caminhando
até a escrivaninha
e
abrindo o caderno de rascunho
onde
já se encontra escrito
que
a palavra “recalcado” é uma expressão
por
demais definia, de sintomatologia cerrada:
assim
numa operação de supressão mágica
vou
rasurá-la daqui do poema.)
pois
a questão-chave é:
sob
que máscara retornará?
Waly Salomão, em Antologia Poética
O ciúme
Ela
tinha a beleza tranquila da maturidade. Alguns fios de cabelo branco
davam ao seu rosto um encanto especial. Bastava vê-la para adivinhar
como teria sido quando jovem. Ah! Com certeza provocara muitos
suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus
prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a
leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito distante.
O
marido a observava de longe. Olhos que observam são aqueles que
olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são
olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era o de um apaixonado
que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam
gestos, movimentos, horas, sorrisos. Vigiam porque as modulações
silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter
revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita
que o ser amado lhe esconde alguma coisa. Olha na esperança de ver o
escondido, de entrar no segredo do outro. O ciumento detesta os
pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua
vigilância.
Há
aquela modinha de Carlos Gomes, “quem sabe?”. É o monólogo de
um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não
sabe o que ela está pensando.
Tão
longe de mim distante,
Onde
irá, onde irá teu pensamento?
O
seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele.
Pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará
pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me
diga “se inda é meu teu pensamento”.
Há
os ciúmes mansos, que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os
ciúmes que são um tormento e frequentemente terminam em tragédia.
Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da pessoa
amada, inclusive dos pensamentos dela. Ele quer conhecê-la por
dentro e por fora, para certificar-se da sua posse. Nos momentos de
êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas
a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina
com o orgasmo. O coito é coroação seguida de decapitação.
Passado o êxtase, a dúvida volta. E, com ela, o tormento.
Ele
a vigiava. Silenciosamente o felino a vigiava. Observava o seu rosto.
Queria adivinhar os seus pensamentos. E a sua vigilância se
exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se
ele, o marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele
para ser feliz. Mergulhada no livro, o marido não existia. E isso
não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo
que não era ele, o seu marido... O prazer acontecia na ausência
dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes
infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem
nos momentos de intimidade prazerosa.
Mas
então algo aconteceu e o tranquilizou. A esposa teve câncer. Uma
mulher cancerosa, dominada pela possibilidade da morte, é um pássaro
de asas quebradas que não sonha nem poderia jamais voar. Um pássaro
de asas quebradas não planeja voos proibidos. Pássaros de asas
quebradas são confiáveis.
Isso
o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram
leves – seu efêmero sentimento de posse se transformou num
tranquilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.
Suspeito
que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a
pessoa amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela
não seja de nenhum outro.
Mas
há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento de todos os
apaixonados.
A
cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e
desconhecida, música, risos, olhares... Marido e mulher se separam
para se socializar com outras pessoas. Numa roda o marido conversa e
ri, distraído. De repente vira o rosto e vê a mulher num outro
grupo. Ela está virada para o outro lado, vestido branco, costas
nuas. Como é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam
para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro
das atenções da roda. Todos os homens se esforçam por lançar o
seu charme. Ela ri. De costas para o marido, é como se, naquele
momento, ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o
livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido
está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua
mulher acontece sem que ele participe dela. E lhe dói saber que ela
pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.
Sofre
em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem
para casa. Afinal de contas ele é um homem educado, que compreende
os movimentos da alma.
O
ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é
livre. Ela é um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Pode voar
quando quiser.
Alguns
ciumentos, tolos, acham que casamento é gaiola, que garantirá a
posse do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. Nem mesmo a
morte. O pássaro voa, o pássaro volta... Mas pode ser que voe e não
volte…
Rubem Alves, em Cantos do Pássaro Encantado
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