terça-feira, 15 de outubro de 2024
Cabrito Montês
“O
senhor mesmo sabe. E, se sabe, me entende...” Tudo indica
que o Riobaldo, numa outra encarnação, estudou filosofia com
Platão. Os dois, Lobato e Nietzsche, tinham a mesma coisa na alma.
Eles, ambos, amavam as crianças. Não esse amor bobo, as crianças
umas gracinhas, tolinhas, com quem se fala só por meio de
diminutivos idiotas: tem dois aninhos, vai tomar sopinha, vai pôr
roupinha. Levavam as crianças a sério. Concordavam com a opinião
de Bernardo Soares, que notava a “diferença hedionda entre a
inteligência das crianças e a estupidez dos adultos”. Num
momento de desânimo ante a incompreensão dos adultos, Nietzsche
escreveu: “Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam,
ao lado da parede em ruínas, entre os espinhos e as papoulas
vermelhas. Para as crianças eu sou ainda um sábio, e também para
os espinhos e as papoulas vermelhas”.
Nietzsche
escrevia para educar. Mas tinha horror às escolas. Nas escolas se
formam os rebanhos de ovelhas, todas balindo igual, todas pensando
igual. Ovelha que balisse diferente, que pensasse diferente, ia para
o manicômio ou era reprovada. Morreria de rir se tivesse tido a
felicidade de ler a Adélia Prado: “Escola é uma coisa sarnenta.
Fosse terrorista, raptava era diretor de escola e dentro de três
dias amarrava no formigueiro, se não aceitasse minhas condições.
Quando acabarem as escolas quero nascer outra vez”.
Escola
é máquina de destruir crianças. Nas escolas, as crianças são
transformadas em adultos. É isso que todos os pais querem: que seus
filhos sejam adultos produtivos. O destino de uma criança é
conseguir entrar no mercado de trabalho.
Nietzsche
andava na direção contrária... Não era ovelha de rebanho. Era
cabrito montês que andava sozinho nas rochas. Criança não é meio
para se chegar ao adulto. Criança é fim, o lugar onde todo adulto
deve chegar. Zaratustra tinha 30 anos de idade quando deixou sua casa
e o lago de sua casa e subiu para a solidão das montanhas. Chegou um
dia, entretanto, em que ele se sentiu como fonte transbordante. E
então teve saudades dos homens. Desejou que eles bebessem da sua
água. E assim começou a descer. Sua descida passava por uma
floresta, a mesma por que passara dez anos antes. Dez anos antes ele
se encontrara com um eremita. E agora se encontrava com o mesmo
eremita, que se espantou ao vê-lo: “Esse caminhante não me é
estranho; muitos anos atrás ele passou por esse caminho. Ele se
chamava Zaratustra. Mas ele mudou. Naquele tempo tu levavas tuas
cinzas para as montanhas; e agora tu levas teu fogo para os vales?
Não tens medo de ser punido como incendiário?... Zaratustra mudou,
Zaratustra se transformou numa criança, Zaratustra é um iluminado”.
De
fato, o jequitibá é maravilhoso, muito alto, muito velho. No galho
de um jequitibá se pode pendurar um balanço. Mas a criança de
Nietzsche é mais maravilhosa que o jequitibá. Que são a altura e a
idade de uma árvore comparados ao momento efêmero de uma criança
que balança no balanço? Bolha de sabão...
Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
Royal flush
Reverências
à Dama de Copas,
que ousa andar de coração a mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas,
em vez de paus e pedras enfeitadas,
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelho;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, tomba a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta das cartas da canastra.
que ousa andar de coração a mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas,
em vez de paus e pedras enfeitadas,
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelho;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, tomba a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta das cartas da canastra.
Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto
Os Nascimentos | 1547 – Valparaíso
A
despedida
Zunem
as moscas entre os restos do banquete. Nem o muito vinho nem o bom
sol adormecem os comilões. Esta manhã, os corações batem
apressados. Debaixo da folhagem, frente ao mar, Pedro de Valdívia
diz adeus aos que vão partir. No fim de tanta guerra e fome nas
terras bravias do Chile, quinze de seus homens se dispõem a
regressar à Espanha. Alguma lágrima roda quando Valdívia recorda
os anos passados juntos, as cidades nascidas do nada, os índios
domados pelo ferro das lanças:
– Não
me sobra outro consolo – se inflama no discurso – além de
entender que vais descansar e gozar o que bem merecido tem, e isso
alivia, em parte pelo menos, o meu penar.
Não
longe da praia, as ondas acalantam o navio que os levam ao Peru. De
lá, viajarão ao Panamá; através do Panamá, ao outro mar, e
depois... Será longo, mas o que estica as pernas sente que já está
pisando as pedras do cais de Sevilha. A bagagem, roupa e ouro, está
na coberta desde a noite anterior. Três mil pesos de ouro levará do
Chile o escrivão Juan Pinel. Com seu maço de papéis, uma pluma de
ave e um tinteiro, seguiu Valdívia como uma sombra, dando fé de
cada um de seus passos e força de lei a cada um de seus atos. Várias
vezes roçou a morte. Esta fortuninha sobrará para remediar a sorte
das filhas donzelas que esperam pelo escrivão Pinel na distante
Espanha.
Estão
os soldados sonhando em voz alta, quando de repente alguém dá um
pulo e pergunta:
– E
Valdívia? Onde está Valdívia?
Todos
se precipitam para a beira do mar. Saltam, gritam, erguem os punhos.
Valdívia
aparece, cada vez menor. Lá vai, remando o único bote, rumo ao
navio carregado do ouro de todos.
Na
praia de Valparaíso, as maldições e as ameaças soam mais forte
que o barulho das ondas.
As
velas se inflam e se afastam rumo ao Peru. Vai-se Valdívia em busca
de seu título de governador do Chile. Com o ouro que leva e o brio
de seus braços, espera convencer os que mandam em Lima.
No
alto de um rochedo, o escrivão Juan Pinel aperta a cabeça e ri sem
parar. Morrerão virgens as suas filhas na Espanha. Alguns choram,
vermelhos de raiva; e o corneteiro Alonso de Torres desafina uma
velha melodia e depois arrebenta seu clarim, que é o que lhe restou.
Eduardo Galeano, em Os Nascimentos
Prefácio Interessantíssimo
Dans
mon pays de fiel et d’or
j’en
suis la loi.
E.
Verhaeren
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
•
Este
prefácio, apesar de interessante, inútil.
•
Alguns
dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis
ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões,
confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido
explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
•
Quando
sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu
inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como
para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio
interessantíssimo.
•
Aliás
muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde
principia a seriedade. Nem eu sei.
•
E
desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos
atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só
vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria
hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda
não compreende bem.
•
Livro
evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o
Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova,
filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes
elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como
Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres,
do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são
bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia
catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia...
“tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e
efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista,
confesso.
•
“Este
Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e
incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo
autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se
apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos
profetas”. Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá.
Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta;
julguei mais conveniente apresentar-me como louco.
•
Você
já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?
•
Perto
de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?
Artista
O
meu desejo é ser pintor – Lionardo,
cujo
ideal em piedades se acrisola;
fazendo
abrir-se ao mundo a ampla corola
do
sonho ilustre que em meu peito guardo...
Meu
anseio é, trazendo ao fundo pardo
da
vida, a cor da veneziana escola,
dar
tons de rosa e de ouro, por esmola,
a
quanto houver de penedia ou cardo.
Quando
encontrar o manancial das tintas
e
os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese!
teus quadros e teus frisos,
irei
morar onde as Desgraças moram;
e
viverei de colorir sorrisos
nos
lábios dos que imprecam ou que choram!
•
Os
srs. Laurindo de Brito, Martins Fontes, Paulo Setúbal, embora não
tenham evidentemente a envergadura de Vicente de Carvalho ou de
Francisca Júlia, publicam seus versos. E fazem muito bem. Podia,
como eles, publicar meus versos metrificados.
•
Não
sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de
contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista,
errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que
saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era
vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me
pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiriam minhas
ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já
agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta
grita. Andarei a vida de braços no ar, como o Indiferente de
Watteau.
•
“Alguns
leitores ao lerem estas frases (poesia citada) não compreenderam
logo. Creio mesmo que é impossível compreender inteiramente à
primeira leitura pensamentos assim esquematizados sem uma certa
prática. Nem é nisso que um poeta pode queixar-se dos seus
leitores. No que estes se tornam condenáveis é em não pensar que
um autor que assina não escreve asnidades pelo simples prazer de
experimentar tinta; e que, sob essa extravagância aparente havia um
sentido porventura interessantíssimo, que havia qualquer coisa por
compreender”. João Epstein.
•
Há
neste mundo um senhor chamado Zdislas Milner. Entretanto escreveu
isto: “O fato duma obra se afastar de preceitos e regras
aprendidas, não dá a medida do seu valor”. Perdoe-me dar algum
valor a meu livro. Não há pai que, sendo pai, abandone o filho
corcunda que se afoga, para salvar o lindo herdeiro do vizinho. A
ama-de-leite do conto foi uma grandíssima cabotina desnaturada.
•
Todo
escritor acredita na valia do que escreve. Se mostra é por vaidade.
Se não mostra é por vaidade também.
•
Não
fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.
•
O
ridículo é muitas vezes subjetivo. Independe do maior ou menor alvo
de quem o sofre. Criamo-lo para vestir com ele quem fere nosso
orgulho, ignorância, esterilidade.
•
Um
pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente,
acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são
versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com
acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados
da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro. Uso
de cachimbo...
•
A
inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e
mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não
consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para
avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece,
caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições
fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis
ou inexpressivos.
•
Que
Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero:
símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se
irmanam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de
expressão.
•
“O
vento senta no ombro das tuas velas!” Shakespeare. Homero já
escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas
você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.
•
Taine
disse que o ideal dum artista consiste em “apresentar, mais que os
próprios objetos, completa e claramente qualquer característica
essencial e saliente deles, por meio de alterações sistemáticas
das relações naturais entre as suas partes, de modo a tornar essa
característica mais visível e dominadora”. O sr. Luís Carlos,
porém, reconheço que tem o direito de citar o mesmo em defesa das
suas “Colunas”.
•
Já
raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo
horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de
certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os
tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o
artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de
belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com
grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da
beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro
dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu
Emílio Bayard: “O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver.
Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da
feiura. O artista sublima tudo”.
•
Belo
da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de
moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a
eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir
natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora
consciente (Rafael das Madonas, Rodin
do Balzac, Beethoven
da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora
inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza.
Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto
mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram
o que quiserem. Pouco me importa.
•
Nossos
sentidos são frágeis. A percepção das coisas exteriores é fraca,
prejudicada por mil véus, provenientes das nossas taras físicas e
morais: doenças, preconceitos, indisposições, antipatias,
ignorâncias, hereditariedade, circunstâncias de tempo, de lugar,
etc... Só idealmente podemos conceber os objetos como os atos na sua
inteireza bela ou feia. A arte que, mesmo tirando os seus temas do
mundo objetivo, desenvolve-se em comparações afastadas, exageradas,
sem exatidão aparente, ou indica os objetos, como um universal, sem
delimitação qualificativa nenhuma, tem o poder de nos conduzir a
essa idealização livre, musical. Esta idealização livre,
subjetiva, permite criar todo um ambiente de realidades ideais onde
sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se apresentam na sua
plenitude heroica, que ultrapassa a defeituosa percepção dos
sentidos. Não sei que futurismo pode existir em quem quase perfilha
a concepção estética de Fichte. Fujamos da natureza! Só assim a
arte não se ressentirá da ridícula fraqueza da fotografia...
colorida.
•
Não
acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um
leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número
convencional de sílabas. Já, primeiro livro, usei indiferentemente,
sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares.
Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão
para que me insultem?
•
Mas
não desdenho balouços dançarinos de redondilhas e decassílabos.
Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré
rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado;
sou como a Argentina: enriqueço-me.
•
Sobre
a ordem? Repugna-me, com efeito, o que Musset chamou: “L’art de
servir à point un dénouement bien cuit”.
•
Existe
a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas,
dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores
que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se
lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada
dos elementos.
•
Quem
leciona História do Brasil obedecerá a uma ordem que, certo, não
consiste em estudar a guerra do Paraguai antes do ilustre acaso de
Pedro Álvares. Quem canta seu subconsciente seguirá a ordem
imprevista das comoções, das associações de imagens, dos contatos
exteriores. Acontece que o tema às vezes descaminha. • O impulso
lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria
engraçadíssimo que a esta se dissesse: “Alto lá! Cada qual berre
por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o
fim!” A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se
idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma
coletiva, falando a retórica exata das reivindicações.
•
Minhas
reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la
nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades
filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são
verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a
seguir-me. Costumo andar sozinho.
•
Virgílio,
Homero, não usaram rima. Virgílio, Homero, têm assonâncias
admiráveis. • A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E
possui o admirabilíssimo “ão”.
•
Marinetti
foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo,
simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha
como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar
poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é
grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros.
•
Sei
construir teorias engenhosas. Quer ver?
A
poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou,
talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito
oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A
poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi
essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que
melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas,
contendo pensamento inteligível.
Ora,
se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:
“Mnezarete,
a divina, a pálida Frineia,
Comparece
ante a austera e rígida assembleia
Do
Areópago supremo...”
fizermos
que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas
palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual,
gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa
sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.
Explico
melhor:
Harmonia:
combinação de sons simultâneos. Exemplo:
“Arroubos...
Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”
Estas
palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase,
período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Se pronuncio
“Arroubos”, como não faz parte de frase (melodia), a palavra
chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera
duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM.
“Lutas” não dá conclusão alguma a “Arroubos”; e, nas
mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica
vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de
melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, – o
verso harmônico. Mas, se em vez de usar só palavras soltas, uso
frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de
palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia
poética. Assim, em Pauliceia desvairada usam-se o verso
melódico:
“São
Paulo é um palco de bailados russos”;
o
verso harmônico:
“A
cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...”;
e
a polifonia poética (um e às vezes dois e mesmo mais versos
consecutivos):
“A
engrenagem trepida... A bruma neva...”
Que
tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que
construí.
Para
ajuntar à teoria:
1º
Os
gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso
melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado,
mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar
harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes,
esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico,
exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoletto: “Façam
que possa combinar simultaneamente várias frases e verão de que sou
capaz”. Encontro anedota em Galli, Estética musical. Se non
é vero...
2º
Há
certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia
oral, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe
da harmonia musical. Antítese – genuína dissonância. E se tão
apreciada é justo porque poetas como músicos, sempre sentiram o
grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.
3º
Comentário
à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos
sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes
baralham-se, tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia
poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do
tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos
atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este
todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a
compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada.
Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza
subjetivamente, dentro de nós.
4º
Os
psicólogos não admitirão a teoria... É responder-lhes com o
Só-quem-ama de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac
tirou o Só-quem-ama. Entretanto: se você já teve por acaso
na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente)
recorde-se do tumulto desordenado das muitas ideias que nesse momento
lhe tumultuaram no cérebro. Essas ideias, reduzidas ao mínimo
telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam
parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade.
Vibravam, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação,
sem concordância aparente – embora nascidas do mesmo acontecimento
– formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade,
verdadeiras harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do
acontecimento.
5º
Bilac,
Tarde, é muitas vezes tentativa de harmonia poética. Daí,
em parte ao menos, o estilo novo do livro. Descobriu, para a língua
brasileira, a harmonia poética, antes dele empregada raramente
(Gonçalves Dias, genialmente, na cena da luta, I-Juca-Pirama).
O defeito de Bilac foi não metodizar o invento; tirar dele todas as
consequências. Explica-se historicamente seu defeito: Tarde é
um apogeu. As decadências não vêm depois dos apogeus. O apogeu já
é decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um
progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase
destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa
destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto. Não tenho
tempo para explicar: estude, se quiser. O nosso primitivismo
representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar,
metodizar as lições do passado. Volto ao poeta. Ele fez como os
criadores do organum medieval: aceitou harmonias de quartas e de
quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais intervalos. O
número das suas harmonias é muito restrito. Assim, “[...] o ar e
o chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco,
os ninhos e a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e
a fera” dá impressão duma longa, monótona série de quintas
medievais, fastidiosa, excessiva, inútil, incapaz de sugestionar o
ouvinte e dar-lhe a sensação do crepúsculo na mata.[48]
•
Lirismo:
estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura. Preocupação
de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo
objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus
melhores versos. Rostand por exemplo; e, entre nós, mais ou menos, o
sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus melhores
versos. Melhor do que isso não posso fazer.
•
Ribot
disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela
atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa
atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim
aquele não escorcha e esmiúça friamente o momento lírico; e
bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.
•
“A
linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite”.
Renan.
•
“Entre
o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do
artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as
possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente”. De
Wagner.
•
Você
está reparando de que maneira costumo andar sozinho...
•
Dom
Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra
do Consciente, é inspecionado pela visita médica, a Inteligência,
que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa
espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo
sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a
denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina
obrigatória
•
Parece
que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me
desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista. Que quer
você? Consigo passar minhas sedas sem pagar direitos. Mas é
psicologicamente impossível livrar-me das injeções e dos tônicos.
•
A
gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que
meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de
línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...
•
Você
perceberá com facilidade que se na minha poesia a gramática às
vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio
interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos:
paisagem do meu eu profundo.
•
Pronomes?
Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não
alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
•
Escrever
arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual
no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas
palavras frequentam-me o livro não é porque pense com elas escrever
moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão
de ser.
•
Sei
mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu
ou na Lusitânia de Nun’Álvares. Reconheço mais a existência de
temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo,
pátria, amor e a presença-dos-ausentes,
ex-gozo-amargo-de-infelizes.
•
Não
quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na
realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar
entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos
sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre
de arte.
•
O
passado é lição para se meditar, não para reproduzir. “E tu che
se’ costì, anima viva, Pàrtiti da cotesti che son morti”.
•
Por
muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que
ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela
estava, pertence-me, é minha.
•
Quando
uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: “Não
entendi”. Pessoas houve porém que confessaram: “Entendi, mas não
senti”. Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas
não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.
•
Escritor
de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou
bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meus amigos, o
anseio do farol. Se fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola
coletiva, esta seria por certo o “Farolismo”. Nosso desejo:
alumiar. A extrema-esquerda em que nos colocamos não permite
meio-termo. Se gênios: indicaremos o caminho a seguir; bestas:
naufrágios por evitar.
•
Canto
da minha maneira. Que me importa se me não entendem? Não tenho
forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário
alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade.
Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente
simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas
sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós
por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei-de achar também algum,
alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos.
Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d’óculos, farei que as
próprias pedras se reúnam em muralhas à magia do meu cantar. E
dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.
•
Minha
mão escreveu a respeito deste livro que “não tinha e não tem
nenhuma intenção de o publicar”. Jornal do Comércio, 6 de
junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1° volume das
Promenades littéraires. Rui Barbosa tem sobre ela página
lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João
Cocteau, La noce massacrée.
Mas
todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém,
não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Pauliceia desvairada
não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que
ri, que berrei... Eu vivo!
•
Aliás
versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos
cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia
Paisagem n° 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao
burguês. Quem não souber rezar, não leia religião.
Desprezar: A escalada.
Sofrer: Colloque sentimental.
Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das
Enfibraturas do Ipiranga.
Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu
tem essa chave.
•
E
está acabada a escola poética “Desvairismo”.
•
Próximo
livro fundarei outra.
•
E
não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para
vaidade dum só.
•
Poderia
ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio
Interessantíssimo.
“Toda canção de liberdade vem do cárcere”.
Mário de Andrade, em Poesias completas
segunda-feira, 14 de outubro de 2024
O vento noroeste
Ou
muito me engano (e nesse caso corrija-me o Gabinete de Meteorologia)
ou foi mesmo o Vento Noroeste que se pôs desde dez horas de
anteontem a soprar sobre a cidade, secando o coração das gentes. O
vento desceu subitamente do céu da madrugada, onde brilhava, numa
lucidez de entreloucura, grande como uma lágrima da noite, a
desvairada estrela da manhã. Primeiro numa rajada fria, que trazia
na epiderme farfalhante um pouco do éter das altas regiões de onde
chegava. E logo tornou-se morno, depois aqueceu. E partiu à solta,
crestando a face lisa da aurora, fazendo crepitar as folhas das
árvores, evaporando o mar que inaugurou de verde o dia nascente. A
mim secou-me os olhos, a boca e a alma perseguida de insônia, e me
tornou áspero o lençol, e me trouxe lembranças secas de vida.
Assisti ao dia nascer como se visse um diamante cortar vidro e
ficasse inelutavelmente a respirar a poeira implacável do carvão
remanescente.
Depois
dormi e sonhei. Mas meus sonhos tinham também uma secura de cal. Vi
se estorcer em chamas o antigo cadáver de uma moça que morreu
tísica e se chamava Alice. Vi homens se arrastando atrás de
mulheres sobre um chão de giletes. Vi troncos musculares de fícus
arfando em dispnéias vegetais. Vi se queimarem atmosferas enormes em
clarões de cloretila. Depois acordei com a boca seca e uma sede de
chupar limão verde.
De
saída para o Centro, pude sentir o mal que o Noroeste, esse Leviatã
dos ventos, estava fazendo à cidade. Na esquina de minha casa tinha
desaparecido uma criança, que a mãe buscava em gestos de Guernica.
No ônibus (pegara um marcado "expresso") várias pessoas
tinham-se esquecido que esses carros são diretos e quiseram saltar
em Copacabana, mas o chofer não deixou porque é proibido. A palavra
"proibido" ganhou uma tal secura, ao Vento Noroeste, que
por um instante eu tive a visão do homem carioca afogado em cinzas.
Não podia saltar onde queria, mesmo pagando. A companhia de ônibus
não deixava. Precisaria pegar outro ônibus, ou então um lotação,
para voltar. Nesse meio tempo já tinham saído várias discussões e
na avenida Atlântica houvera um desastre com dois ônibus vermelhos
da linha Ipanema: um deles chegara até a beira do passeio, quase a
cair na areia, e tinha uma cara sedenta, como se tivesse querido se
afogar. Na Glória, a carcaça de outro ônibus que ardera
amontoava-se no asfalto. Aquilo lembrou-me, em grande, um esqueleto
incinerado que vi no cinema, saindo de um forno, num dos campos de
concentração nazista. De vinda para a redação, vi dois homens
brigando corpo a corpo. Agrediam-se como cães danados e depois um
pegou uma pedra para arrebentar a cabeça do outro, e só por um
acaso não acertou.
E
agora, escrevendo esta crônica que é a seca expressão da verdade,
eu vejo que o Noroeste está querendo secar até a tempestade que se
anuncia na tarde erma. Não, que o Vento Noroeste não seque a
tormenta que há de desafogar a cidade. Vinde, trovões mensageiros;
rasgai o céu, relâmpagos! Que as águas de um novo dilúvio desabem
sobre a cidade angustiada e encharquem a terra de lama e as árvores
de seiva. Que desçam os raios e sangrem o flanco flácido dos morros
e que se rejuvenesça o coração dos homens. Que o ar se rompa em
rajadas frescas e se repousem os cabelos das mulheres, frementes de
eletricidade.
Que
deixem de ranger os papéis da burocracia, sacados pelo Vento
Noroeste. Que pare, que pare imediatamente o sopro desta bisnaga de
ar quente a soprar sobre a dentina dolorida da cidade. Que venha o
Azul, o Azul, o Azul, o Azul!
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
Mal-estar de um anjo
Ao
sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas
chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a
tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo
elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana com
água entrando pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de lama
até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas
invisíveis. Até o movimento de maré já tinha, onde se juntasse o
bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já
havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral
gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o
próprio mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na
vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca
secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já
selecionaram o melhor casal da minha espécie.
Pelas
esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a
alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar
para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava
quem só queria casa própria. Andei sem rumo pela ruas e ruas, mais
me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha
desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada.
Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona!
Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava
paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que
andar.
E
eis que nas águas vejo um táxi. Avançava cuidadosamente, quase
centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas. Como é
que eu me apoderaria daquele táxi? Aproximei-me. Não podia me dar
ao luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a
doçura de pedir, não me deram. Contendo o desespero, o que sempre
dá uma aparência de força, disse ao chofer: “o senhor vai me
levar para casa! é de noite! tenho filhos pequenos que devem estar
assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!” Para minha
grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem
entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas
movia-se – e chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a
pouco já estava pensando: e eu que não sabia que valia tanto. E daí
a pouco era a dona de casa de meu táxi, já tomara posse do direito
do que gratuitamente me fora dado, e energicamente tomava medidas
úteis: torcia cabelos e roupas, tirava os sapatos amolecidos,
enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A verdade, sem pudor,
é que eu tinha chorado. Muito pouco, e misturando motivos, mas
chorado. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem confortável
no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se.
Uma
senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este avançava,
ela pôde acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E
literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde
demais para mim, e seu itinerário me desviaria do meu caminho.
Lembrei-me, porém, de meu desespero de havia cinco minutos, e
resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu lhe disse que sim, seu
tom de imploração imediatamente cessou, substituído por uma voz
extremamente prática: “É, mas espere um pouco, vou até aquela
transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que
deixei lá para não molhar.” “Estará ela se aproveitando de
mim?”, indaguei-me na velha dúvida se devo ou não deixar que se
aproveitem de mim. Terminei cedendo. Ela demorou à vontade. E voltou
com um enorme embrulho pousado nas mãos estendidas, como se até seu
próprio corpo pudesse macular o vestido. Instalou-se totalmente, o
que me deixou tímida na minha própria casa.
E
começou o meu calvário de anjo – pois a mulher, com sua voz
autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia
ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première
e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela se
atrasaria e perderia a première. Eu já tivera as minhas premières,
e nem as minhas tinham me comovido. “A senhora não sabe o milagre
que me aconteceu”, contou-me com firmeza. “Comecei a rezar na
rua, a rezar para que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz
promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a
senhora.” Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo
destinado a proteger premières? a ironia divina me encabulava. Mas a
senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de
mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em mim,
o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com
a maior discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: “Não
me supervalorize, sou apenas um meio de transporte.” Enquanto que a
ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que
o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de
transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito impressionada com quem
grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente mandava em mim.
Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce cinismo:
aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase,
devia ser mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa
terminaria por agradecer ao anjo com um cheque, também levando em
conta que a chuva já devia ter lavado toda a minha distinção. Com
um pouco mais de confortável cinismo, em silêncio, declarei-lhe que
dinheiro seria um meio tão legítimo quanto outro de agradecer, já
que a moeda dela era mesmo moeda. Ou então – diverti-me eu – bem
poderia dar-me em agradecimento o vestido da première, pois o que
ela realmente deveria agradecer não era ter um vestido seco, e sim
ter sido atingida pela graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo
cada vez melhor, pensei: “Cada um tem o anjo que merece, veja que
anjo lhe coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que
nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar
com a ideia de um anjo interessado em roupas.” Parece-me que, no
meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à
tolice ardente de uma senhora.
A
verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem
esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante
algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a
compreender como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca
me ocorrera. A menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos
anjos. Quem sabe, até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria
satisfeitona daquela senhora começava a me deixar sombria: ela
fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa uma
profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever,
acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura já não
podia mais negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só fora
mandada ao mundo para aquele instante de utilidade. Era isso, pois, o
que eu valia. No táxi, eu não era um anjo decaído: era um anjo que
caía em si. Caí em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito
àquela de quem eu era com tanta revolta anjo da guarda: faça o
obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei
calada, aguentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo
seu enorme embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar de
mim, ou melhor, de minha função. Emburrei. A senhora sentiu e
calou-se um pouco desarvorada. Já na altura da Viveiros de Castro a
hostilidade se declarara muda entre nós.
– Escute,
disse-lhe eu de repente, pois minha espontaneidade é faca de dois
gumes também para os outros, o táxi vai antes me deixar em casa e
depois é que segue com a senhora.
– Mas,
disse ela surpreendida e em começo de indignação, depois eu vou
ter que dar uma volta enorme e vou me atrasar! É só um pequeno
desvio para me deixar em casa!
– Pois
é, respondi seca. Mas eu não posso entrar pelo desvio.
– Eu
pago tudo! Insultou-me ela com a mesma moeda com que teria se
lembrado de me agradecer.
– Eu
é que pago tudo, insultei-a.
Ao
saltar do táxi assim como quem não quer nada, tive o cuidado de
esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda
falta de educação que me tem salvo dos abismos angelicais. Livre de
asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez
que só tenho quando para de chover, atravessei como uma rainha os
largos umbrais do edifício Visconde de Pelotas.
Clarice Lispector, em Todas as crônicas
instruções de bordo
(para
você, A. C., temerosa, rosa, azul-celeste)
Pirataria
em pleno ar.
A
faca nas costelas da aeromoça.
Flocos
despencando pelos cantos dos
lábios
e casquinhas que suguei atrás
da porta.
Ser
a greta,
o
garbo,
a
eterna liu-chiang dos postais vermelhos.
Latejar
os túneis lua azul celestial azul.
Degolar,
atemorizar, apertar
o
cinto o senso a mancha
roxa
na coxa: calores lunares,
copas
de champã, charutos úmidos de
licores
chineses nas alturas.
Metálico
torpor na barrigada baleia.
Da
cabine o profeta feio,
de
bandeja.
Três
misses sapatinho fino alto esmalte nau
dos
insensatos supervoos
rasantes
ao luar
despetaladamente
pelada
pedalar
sem cócegas sem súcubos
incomparável
poltrona reclinável.
Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril
AS RÃS | Drama em nove atos
Ato
V
É
noite, raios de luz incidem oblíquos, um brilho dourado toma o
palco.
Num
canto do templo de Niangniang, Chen Nariz e seu cachorro estão
enrodilhados ao pé de uma grossa coluna. O cachorro pode ser
representado por um homem. Diante de Chen está uma tigela de ferro
muito surrada, dentro dela algumas notas e moedas. Duas muletas de
madeira descansam ao lado.
Entra
Chen Sobrancelha como um espectro, vestindo túnica preta, o rosto
coberto por um véu negro.
Dois
homens entram no palco logo atrás dela, vestidos da mesma forma.
CHEN
S. (em prantos) Bebê… Meu bebê… Onde está… Meu bebê…
Onde está…
Os
dois homens de preto se aproximam de Sobrancelha.
CHEN
S. Quem são vocês? Por que estão vestidos de preto e com o rosto
coberto? Ah, entendi, também são vítimas daquele incêndio…
HOMEM
DE PRETO A Sim, também somos vítimas.
CHEN
S. (lúcida) Não, as vítimas do incêndio são todas
mulheres, e vocês nitidamente são homens.
HOMEM
DE PRETO B Somos vítimas de outro incêndio.
CHEN
S. Coitados de vocês…
HOMEM
DE PRETO A Pois é, somos uns coitados.
CHEN
S. Devem estar muito angustiados…
HOMEM
DE PRETO B Sim, muito angustiados…
CHEN
S. Já fizeram o transplante de pele?
HOMEM
DE PRETO A (sem entender) Que transplante de pele?
CHEN
S. É tirar a pele boa do bumbum ou da coxa, de onde não foi
queimado, e colocar na parte queimada. Não fizeram isso?
HOMEM
DE PRETO B Sim, claro que fizemos. A pele do nosso bumbum foi
totalmente retirada pelo médico para colocar no nosso rosto…
CHEN
S. Fizeram o transplante de sobrancelha também?
HOMEM
DE PRETO A Sim, sim.
CHEN
S. Usaram os cabelos ou os pelos pubianos?
HOMEM
DE PRETO B O que é isso? Pelo pubiano pode virar sobrancelha?
CHEN
S. Se o couro cabeludo estiver todo queimado, só se podem aproveitar
os pelos pubianos, melhor que nada, não acham? Se nem houver os
pelos pubianos, vai ficar pelado mesmo, parecendo uma rã.
HOMEM
DE PRETO A Sim, sim, sim. Não temos nenhum pelo, estamos lisos como
rãs.
CHEN
S. Já se olharam no espelho?
HOMEM
DE PRETO B Nunca nos olhamos no espelho.
CHEN
S. Nós, pacientes queimados, temos medo do espelho e também temos
ódio dele.
HOMEM
DE PRETO A Sim, quebramos qualquer espelho que encontrarmos pela
frente.
CHEN
S. Isso não adianta nada. Podem quebrar o espelho, mas vão quebrar
também a vitrine de uma loja ou um chão de mármore? E a água que
reflete a imagem e os olhos que nos olham? Quando nos veem, eles vão
fugir gritando, as crianças podem até chorar de medo. Chamam a
gente de fantasma, de demônio. Seus olhos são nossos espelhos, por
isso não há como quebrar todos os espelhos. A melhor maneira é
esconder nosso rosto.
HOMEM
DE PRETO B Sim, sim, sim. Por isso cobrimos nosso rosto com um véu
negro.
CHEN
S. Já pensaram em se matar?
HOMEM
DE PRETO B Nós…
CHEN
S. Até onde sei, das irmãs que ficaram feridas, cinco já cometeram
suicídio. Elas se mataram depois de se olhar no espelho…
HOMEM
DE PRETO A Maldito espelho!
HOMEM
DE PRETO B Por isso quebramos todos os espelhos que encontramos pela
frente.
CHEN
S. Eu queria me matar, mas depois desisti da ideia…
HOMEM
DE PRETO A Viver é bom. Antes viver mal que morrer bem!
CHEN
S. Desde que engravidei, desde que senti essa pequena vida pulsando
na minha barriga, não queria mais morrer. Sentia que eu era um
casulo feio, e que uma vida linda estava sendo gestada, e quando ela
rompesse o casulo e saísse, eu me tornaria uma casca vazia.
HOMEM
DE PRETO B Lindas palavras.
CHEN
S. Depois que meu filho nasceu, não virei casca vazia nem morri. Eu
me descobri ainda mais viva. Não sequei nem murchei, pelo contrário,
ganhei mais viço. A pele seca no meu rosto parece mais fresca, meus
seios estão cheios de leite… a reprodução me deu uma nova vida…
Mas eles levaram meu filho…
HOMEM
DE PRETO A Venha conosco, nós sabemos onde está seu filho.
CHEN
S. Sabem onde meu filho está?
HOMEM
DE PRETO B Estávamos à sua procura para ajudá-la a encontrar seu
filho.
CHEN
S. (animada) Graças a Deus, me levem logo, me levem para onde
está meu filho…
Os
dois homens de preto, segurando Sobrancelha, estão prestes a sair de
cena.
O
cachorro de Chen Nariz pula como uma flecha e agarra com a boca a
perna esquerda do homem de preto A.
Chen
Nariz se levanta de um salto, segurando as muletas, pula para a
frente. Apoia o corpo em uma muleta, enquanto ataca o homem de preto
B com a outra.
Os
dois homens se livram do cachorro e de Chen Nariz, recuam para um
lado do palco e retiram uma arma, como um punhal. Nariz fica ao lado
do cachorro, Sobrancelha está na parte anterior do palco, formando
assim um triângulo.
CHEN
N. (rosnando) Larguem minha filha!
HOMEM
DE PRETO A Seu velho desgraçado, bêbado, malandro, indigente. Como
se atreve a dizer que é sua filha?
HOMEM
DE PRETO B Se é mesmo sua filha, então chame-a, quero ver se ela
responde.
CHEN
N. Sobrancelha… Minha pobre filha…
CHEN
S. (friamente) Deve ser um engano. Deve ter se enganado.
CHEN
N. (pesaroso) Sobrancelha, sei que você odeia o papai. Devo a
você, devo a sua irmã e a sua mãe. Fiz mal a vocês, sou um
pecador, um inútil, um morto-vivo…
HOMEM
DE PRETO A Isso é uma confissão? Tem alguma igreja aqui por perto?
HOMEM
DE PRETO B Vá para o leste ao longo do rio, uns dez quilômetros, há
uma igreja católica recém-restaurada.
CHEN
N. Sobrancelha, sei que foi enganada por eles. Quem te enganou foi um
velho amigo do papai, agora vou te ajudar a fazer justiça.
HOMEM
DE PRETO A Seu velho, saia da frente.
HOMEM
DE PRETO B Moça, venha conosco, garantimos que vai ver seu filho.
Chen
Sobrancelha vai em direção aos dois homens. Nariz e o cachorro
tentam impedi-la.
CHEN
S. (com raiva) Quem é você? Por que me impedir? Quero achar
meu filho, sabia? Ele nunca tomou do meu leite desde que nasceu. Se
não amamentá-lo, vai morrer de fome, sabia?
CHEN
N. Sobrancelha, você me odeia, entendo; você não quer me
reconhecer como seu pai, de acordo. Mas não pode ir com eles. Eles
venderam seu filho. Se você for com eles, vão jogar você no rio
para se afogar, e depois, vão forjar uma cena de suicídio. Essas
coisas, já fizeram mais de uma vez…
HOMEM
DE PRETO A Seu velho, acho que você já viveu o bastante. Como pode
nos caluniar desse jeito?
HOMEM
DE PRETO B Que besteira é essa? Numa sociedade como a nossa, como
podem existir essas maldades, homicídio, assassinato?
HOMEM
DE PRETO A Deve ter assistido muito daqueles filmes em salinhas de
vídeo.
HOMEM
DE PRETO B E agora tem dessas alucinações.
HOMEM
DE PRETO A Acha que socialismo é capitalismo.
HOMEM
DE PRETO B E que gente de bem é bandido.
HOMEM
DE PRETO A E que boas intenções são maldade.
CHEN
N. Vocês são um monte de bosta que ninguém quer, são o pior lixo
da sociedade…
HOMEM
DE PRETO B Como se atreve a nos chamar de pior lixo da sociedade?
Você é um porco que fuça a lixeira para achar comida. Sabe com
quem está falando?
CHEN
N. Claro que sei com quem estou falando. Conheço vocês e sei o que
fizeram.
HOMEM
DE PRETO A Acho que é hora de convidá-lo para tomar um banho frio
no rio.
HOMEM
DE PRETO B Amanhã de manhã, as pessoas que vierem queimar incenso e
amarrar boneco vão dar falta do velho mendigo na entrada do templo
junto com seu cachorro coxo.
HOMEM
DE PRETO A Ninguém vai se importar com isso.
Os
dois homens lutam com Nariz e seu cachorro. O cachorro morre e Nariz
é derrubado no chão. Os dois tentam esfaquear Nariz, então
Sobrancelha tira o véu, mostra o rosto hediondo e solta um grito
demoníaco. Assustados, os dois homens deixam Nariz e fogem.
Cortina.
Mo Yan, em As rãs
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