terça-feira, 15 de outubro de 2024

Tia Edith (Cinematográfica) | Renato Teixeira e Natan Marques

Cabrito Montês

O senhor mesmo sabe. E, se sabe, me entende...” Tudo indica que o Riobaldo, numa outra encarnação, estudou filosofia com Platão. Os dois, Lobato e Nietzsche, tinham a mesma coisa na alma. Eles, ambos, amavam as crianças. Não esse amor bobo, as crianças umas gracinhas, tolinhas, com quem se fala só por meio de diminutivos idiotas: tem dois aninhos, vai tomar sopinha, vai pôr roupinha. Levavam as crianças a sério. Concordavam com a opinião de Bernardo Soares, que notava a “diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos”. Num momento de desânimo ante a incompreensão dos adultos, Nietzsche escreveu: “Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam, ao lado da parede em ruínas, entre os espinhos e as papoulas vermelhas. Para as crianças eu sou ainda um sábio, e também para os espinhos e as papoulas vermelhas”.
Nietzsche escrevia para educar. Mas tinha horror às escolas. Nas escolas se formam os rebanhos de ovelhas, todas balindo igual, todas pensando igual. Ovelha que balisse diferente, que pensasse diferente, ia para o manicômio ou era reprovada. Morreria de rir se tivesse tido a felicidade de ler a Adélia Prado: “Escola é uma coisa sarnenta. Fosse terrorista, raptava era diretor de escola e dentro de três dias amarrava no formigueiro, se não aceitasse minhas condições. Quando acabarem as escolas quero nascer outra vez”.
Escola é máquina de destruir crianças. Nas escolas, as crianças são transformadas em adultos. É isso que todos os pais querem: que seus filhos sejam adultos produtivos. O destino de uma criança é conseguir entrar no mercado de trabalho.
Nietzsche andava na direção contrária... Não era ovelha de rebanho. Era cabrito montês que andava sozinho nas rochas. Criança não é meio para se chegar ao adulto. Criança é fim, o lugar onde todo adulto deve chegar. Zaratustra tinha 30 anos de idade quando deixou sua casa e o lago de sua casa e subiu para a solidão das montanhas. Chegou um dia, entretanto, em que ele se sentiu como fonte transbordante. E então teve saudades dos homens. Desejou que eles bebessem da sua água. E assim começou a descer. Sua descida passava por uma floresta, a mesma por que passara dez anos antes. Dez anos antes ele se encontrara com um eremita. E agora se encontrava com o mesmo eremita, que se espantou ao vê-lo: “Esse caminhante não me é estranho; muitos anos atrás ele passou por esse caminho. Ele se chamava Zaratustra. Mas ele mudou. Naquele tempo tu levavas tuas cinzas para as montanhas; e agora tu levas teu fogo para os vales? Não tens medo de ser punido como incendiário?... Zaratustra mudou, Zaratustra se transformou numa criança, Zaratustra é um iluminado”.
De fato, o jequitibá é maravilhoso, muito alto, muito velho. No galho de um jequitibá se pode pendurar um balanço. Mas a criança de Nietzsche é mais maravilhosa que o jequitibá. Que são a altura e a idade de uma árvore comparados ao momento efêmero de uma criança que balança no balanço? Bolha de sabão...

Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Royal flush

Reverências à Dama de Copas,
que ousa andar de coração a mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas,
em vez de paus e pedras enfeitadas,
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelho;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, tomba a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta das cartas da canastra.

Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto

O pós-impressionismo de Henri Martin

O Vestido Azul (1917), de Henri Martin

Os Nascimentos | 1547 – Valparaíso

A despedida

Zunem as moscas entre os restos do banquete. Nem o muito vinho nem o bom sol adormecem os comilões. Esta manhã, os corações batem apressados. Debaixo da folhagem, frente ao mar, Pedro de Valdívia diz adeus aos que vão partir. No fim de tanta guerra e fome nas terras bravias do Chile, quinze de seus homens se dispõem a regressar à Espanha. Alguma lágrima roda quando Valdívia recorda os anos passados juntos, as cidades nascidas do nada, os índios domados pelo ferro das lanças:
Não me sobra outro consolo – se inflama no discurso – além de entender que vais descansar e gozar o que bem merecido tem, e isso alivia, em parte pelo menos, o meu penar.
Não longe da praia, as ondas acalantam o navio que os levam ao Peru. De lá, viajarão ao Panamá; através do Panamá, ao outro mar, e depois... Será longo, mas o que estica as pernas sente que já está pisando as pedras do cais de Sevilha. A bagagem, roupa e ouro, está na coberta desde a noite anterior. Três mil pesos de ouro levará do Chile o escrivão Juan Pinel. Com seu maço de papéis, uma pluma de ave e um tinteiro, seguiu Valdívia como uma sombra, dando fé de cada um de seus passos e força de lei a cada um de seus atos. Várias vezes roçou a morte. Esta fortuninha sobrará para remediar a sorte das filhas donzelas que esperam pelo escrivão Pinel na distante Espanha.
Estão os soldados sonhando em voz alta, quando de repente alguém dá um pulo e pergunta:
E Valdívia? Onde está Valdívia?
Todos se precipitam para a beira do mar. Saltam, gritam, erguem os punhos.
Valdívia aparece, cada vez menor. Lá vai, remando o único bote, rumo ao navio carregado do ouro de todos.
Na praia de Valparaíso, as maldições e as ameaças soam mais forte que o barulho das ondas.
As velas se inflam e se afastam rumo ao Peru. Vai-se Valdívia em busca de seu título de governador do Chile. Com o ouro que leva e o brio de seus braços, espera convencer os que mandam em Lima.
No alto de um rochedo, o escrivão Juan Pinel aperta a cabeça e ri sem parar. Morrerão virgens as suas filhas na Espanha. Alguns choram, vermelhos de raiva; e o corneteiro Alonso de Torres desafina uma velha melodia e depois arrebenta seu clarim, que é o que lhe restou.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Prefácio Interessantíssimo


Dans mon pays de fiel et d’or
j’en suis la loi.
E. Verhaeren

Leitor: Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.
E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.
Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia... “tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista, confesso.
Este Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos profetas”. Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá. Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco.
Você já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?
Perto de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?

Artista

O meu desejo é ser pintor – Lionardo,
cujo ideal em piedades se acrisola;
fazendo abrir-se ao mundo a ampla corola
do sonho ilustre que em meu peito guardo...

Meu anseio é, trazendo ao fundo pardo
da vida, a cor da veneziana escola,
dar tons de rosa e de ouro, por esmola,
a quanto houver de penedia ou cardo.

Quando encontrar o manancial das tintas
e os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese! teus quadros e teus frisos,

irei morar onde as Desgraças moram;
e viverei de colorir sorrisos
nos lábios dos que imprecam ou que choram!

Os srs. Laurindo de Brito, Martins Fontes, Paulo Setúbal, embora não tenham evidentemente a envergadura de Vicente de Carvalho ou de Francisca Júlia, publicam seus versos. E fazem muito bem. Podia, como eles, publicar meus versos metrificados.
Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiriam minhas ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta grita. Andarei a vida de braços no ar, como o Indiferente de Watteau.
Alguns leitores ao lerem estas frases (poesia citada) não compreenderam logo. Creio mesmo que é impossível compreender inteiramente à primeira leitura pensamentos assim esquematizados sem uma certa prática. Nem é nisso que um poeta pode queixar-se dos seus leitores. No que estes se tornam condenáveis é em não pensar que um autor que assina não escreve asnidades pelo simples prazer de experimentar tinta; e que, sob essa extravagância aparente havia um sentido porventura interessantíssimo, que havia qualquer coisa por compreender”. João Epstein.
Há neste mundo um senhor chamado Zdislas Milner. Entretanto escreveu isto: “O fato duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas, não dá a medida do seu valor”. Perdoe-me dar algum valor a meu livro. Não há pai que, sendo pai, abandone o filho corcunda que se afoga, para salvar o lindo herdeiro do vizinho. A ama-de-leite do conto foi uma grandíssima cabotina desnaturada.
Todo escritor acredita na valia do que escreve. Se mostra é por vaidade. Se não mostra é por vaidade também.
Não fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.
O ridículo é muitas vezes subjetivo. Independe do maior ou menor alvo de quem o sofre. Criamo-lo para vestir com ele quem fere nosso orgulho, ignorância, esterilidade.
Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro. Uso de cachimbo...
A inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos.
Que Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero: símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se irmanam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de expressão.
O vento senta no ombro das tuas velas!” Shakespeare. Homero já escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.
Taine disse que o ideal dum artista consiste em “apresentar, mais que os próprios objetos, completa e claramente qualquer característica essencial e saliente deles, por meio de alterações sistemáticas das relações naturais entre as suas partes, de modo a tornar essa característica mais visível e dominadora”. O sr. Luís Carlos, porém, reconheço que tem o direito de citar o mesmo em defesa das suas “Colunas”.
Já raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu Emílio Bayard: “O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da feiura. O artista sublima tudo”.
Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa.
Nossos sentidos são frágeis. A percepção das coisas exteriores é fraca, prejudicada por mil véus, provenientes das nossas taras físicas e morais: doenças, preconceitos, indisposições, antipatias, ignorâncias, hereditariedade, circunstâncias de tempo, de lugar, etc... Só idealmente podemos conceber os objetos como os atos na sua inteireza bela ou feia. A arte que, mesmo tirando os seus temas do mundo objetivo, desenvolve-se em comparações afastadas, exageradas, sem exatidão aparente, ou indica os objetos, como um universal, sem delimitação qualificativa nenhuma, tem o poder de nos conduzir a essa idealização livre, musical. Esta idealização livre, subjetiva, permite criar todo um ambiente de realidades ideais onde sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se apresentam na sua plenitude heroica, que ultrapassa a defeituosa percepção dos sentidos. Não sei que futurismo pode existir em quem quase perfilha a concepção estética de Fichte. Fujamos da natureza! Só assim a arte não se ressentirá da ridícula fraqueza da fotografia... colorida.
Não acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número convencional de sílabas. Já, primeiro livro, usei indiferentemente, sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares. Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão para que me insultem?
Mas não desdenho balouços dançarinos de redondilhas e decassílabos. Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado; sou como a Argentina: enriqueço-me.
Sobre a ordem? Repugna-me, com efeito, o que Musset chamou: “L’art de servir à point un dénouement bien cuit”.
Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas, dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos.
Quem leciona História do Brasil obedecerá a uma ordem que, certo, não consiste em estudar a guerra do Paraguai antes do ilustre acaso de Pedro Álvares. Quem canta seu subconsciente seguirá a ordem imprevista das comoções, das associações de imagens, dos contatos exteriores. Acontece que o tema às vezes descaminha. • O impulso lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria engraçadíssimo que a esta se dissesse: “Alto lá! Cada qual berre por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o fim!” A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma coletiva, falando a retórica exata das reivindicações.
Minhas reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a seguir-me. Costumo andar sozinho.
Virgílio, Homero, não usaram rima. Virgílio, Homero, têm assonâncias admiráveis. • A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão”.
Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros.
Sei construir teorias engenhosas. Quer ver?
A poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou, talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas, contendo pensamento inteligível.
Ora, se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:
Mnezarete, a divina, a pálida Frineia,
Comparece ante a austera e rígida assembleia
Do Areópago supremo...”
fizermos que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.
Explico melhor:
Harmonia: combinação de sons simultâneos. Exemplo:
Arroubos... Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”
Estas palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase, período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Se pronuncio “Arroubos”, como não faz parte de frase (melodia), a palavra chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM. “Lutas” não dá conclusão alguma a “Arroubos”; e, nas mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, – o verso harmônico. Mas, se em vez de usar só palavras soltas, uso frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia poética. Assim, em Pauliceia desvairada usam-se o verso melódico:
São Paulo é um palco de bailados russos”;
o verso harmônico:
A cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...”;
e a polifonia poética (um e às vezes dois e mesmo mais versos consecutivos):
A engrenagem trepida... A bruma neva...”
Que tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que construí.
Para ajuntar à teoria:
Os gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado, mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes, esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico, exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoletto: “Façam que possa combinar simultaneamente várias frases e verão de que sou capaz”. Encontro anedota em Galli, Estética musical. Se non é vero...
Há certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia oral, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe da harmonia musical. Antítese – genuína dissonância. E se tão apreciada é justo porque poetas como músicos, sempre sentiram o grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.
Comentário à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes baralham-se, tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada. Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza subjetivamente, dentro de nós.
Os psicólogos não admitirão a teoria... É responder-lhes com o Só-quem-ama de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac tirou o Só-quem-ama. Entretanto: se você já teve por acaso na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente) recorde-se do tumulto desordenado das muitas ideias que nesse momento lhe tumultuaram no cérebro. Essas ideias, reduzidas ao mínimo telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade. Vibravam, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação, sem concordância aparente – embora nascidas do mesmo acontecimento – formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade, verdadeiras harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do acontecimento.
Bilac, Tarde, é muitas vezes tentativa de harmonia poética. Daí, em parte ao menos, o estilo novo do livro. Descobriu, para a língua brasileira, a harmonia poética, antes dele empregada raramente (Gonçalves Dias, genialmente, na cena da luta, I-Juca-Pirama). O defeito de Bilac foi não metodizar o invento; tirar dele todas as consequências. Explica-se historicamente seu defeito: Tarde é um apogeu. As decadências não vêm depois dos apogeus. O apogeu já é decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto. Não tenho tempo para explicar: estude, se quiser. O nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar, metodizar as lições do passado. Volto ao poeta. Ele fez como os criadores do organum medieval: aceitou harmonias de quartas e de quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais intervalos. O número das suas harmonias é muito restrito. Assim, “[...] o ar e o chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e a fera” dá impressão duma longa, monótona série de quintas medievais, fastidiosa, excessiva, inútil, incapaz de sugestionar o ouvinte e dar-lhe a sensação do crepúsculo na mata.[48]
Lirismo: estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura. Preocupação de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus melhores versos. Rostand por exemplo; e, entre nós, mais ou menos, o sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus melhores versos. Melhor do que isso não posso fazer.
Ribot disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim aquele não escorcha e esmiúça friamente o momento lírico; e bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.
A linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite”. Renan.
Entre o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente”. De Wagner.
Você está reparando de que maneira costumo andar sozinho...
Dom Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra do Consciente, é inspecionado pela visita médica, a Inteligência, que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina obrigatória
Parece que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista. Que quer você? Consigo passar minhas sedas sem pagar direitos. Mas é psicologicamente impossível livrar-me das injeções e dos tônicos.
A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...
Você perceberá com facilidade que se na minha poesia a gramática às vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos: paisagem do meu eu profundo.
Pronomes? Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas palavras frequentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser.
Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun’Álvares. Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-infelizes.
Não quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre de arte.
O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. “E tu che se’ costì, anima viva, Pàrtiti da cotesti che son morti”.
Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha.
Quando uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: “Não entendi”. Pessoas houve porém que confessaram: “Entendi, mas não senti”. Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.
Escritor de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meus amigos, o anseio do farol. Se fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola coletiva, esta seria por certo o “Farolismo”. Nosso desejo: alumiar. A extrema-esquerda em que nos colocamos não permite meio-termo. Se gênios: indicaremos o caminho a seguir; bestas: naufrágios por evitar.
Canto da minha maneira. Que me importa se me não entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade. Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei-de achar também algum, alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos. Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d’óculos, farei que as próprias pedras se reúnam em muralhas à magia do meu cantar. E dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.
Minha mão escreveu a respeito deste livro que “não tinha e não tem nenhuma intenção de o publicar”. Jornal do Comércio, 6 de junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1° volume das Promenades littéraires. Rui Barbosa tem sobre ela página lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João Cocteau, La noce massacrée.
Mas todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Pauliceia desvairada não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei... Eu vivo!
Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia Paisagem n° 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao burguês. Quem não souber rezar, não leia religião. Desprezar: A escalada. Sofrer: Colloque sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave.
E está acabada a escola poética “Desvairismo”.
Próximo livro fundarei outra.
E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.
Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem do cárcere”.

Mário de Andrade, em Poesias completas

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Janaína / Cotidiano | Biquini Cavadão e Péricles

O vento noroeste

Ou muito me engano (e nesse caso corrija-me o Gabinete de Meteorologia) ou foi mesmo o Vento Noroeste que se pôs desde dez horas de anteontem a soprar sobre a cidade, secando o coração das gentes. O vento desceu subitamente do céu da madrugada, onde brilhava, numa lucidez de entreloucura, grande como uma lágrima da noite, a desvairada estrela da manhã. Primeiro numa rajada fria, que trazia na epiderme farfalhante um pouco do éter das altas regiões de onde chegava. E logo tornou-se morno, depois aqueceu. E partiu à solta, crestando a face lisa da aurora, fazendo crepitar as folhas das árvores, evaporando o mar que inaugurou de verde o dia nascente. A mim secou-me os olhos, a boca e a alma perseguida de insônia, e me tornou áspero o lençol, e me trouxe lembranças secas de vida. Assisti ao dia nascer como se visse um diamante cortar vidro e ficasse inelutavelmente a respirar a poeira implacável do carvão remanescente.
Depois dormi e sonhei. Mas meus sonhos tinham também uma secura de cal. Vi se estorcer em chamas o antigo cadáver de uma moça que morreu tísica e se chamava Alice. Vi homens se arrastando atrás de mulheres sobre um chão de giletes. Vi troncos musculares de fícus arfando em dispnéias vegetais. Vi se queimarem atmosferas enormes em clarões de cloretila. Depois acordei com a boca seca e uma sede de chupar limão verde.
De saída para o Centro, pude sentir o mal que o Noroeste, esse Leviatã dos ventos, estava fazendo à cidade. Na esquina de minha casa tinha desaparecido uma criança, que a mãe buscava em gestos de Guernica. No ônibus (pegara um marcado "expresso") várias pessoas tinham-se esquecido que esses carros são diretos e quiseram saltar em Copacabana, mas o chofer não deixou porque é proibido. A palavra "proibido" ganhou uma tal secura, ao Vento Noroeste, que por um instante eu tive a visão do homem carioca afogado em cinzas. Não podia saltar onde queria, mesmo pagando. A companhia de ônibus não deixava. Precisaria pegar outro ônibus, ou então um lotação, para voltar. Nesse meio tempo já tinham saído várias discussões e na avenida Atlântica houvera um desastre com dois ônibus vermelhos da linha Ipanema: um deles chegara até a beira do passeio, quase a cair na areia, e tinha uma cara sedenta, como se tivesse querido se afogar. Na Glória, a carcaça de outro ônibus que ardera amontoava-se no asfalto. Aquilo lembrou-me, em grande, um esqueleto incinerado que vi no cinema, saindo de um forno, num dos campos de concentração nazista. De vinda para a redação, vi dois homens brigando corpo a corpo. Agrediam-se como cães danados e depois um pegou uma pedra para arrebentar a cabeça do outro, e só por um acaso não acertou.
E agora, escrevendo esta crônica que é a seca expressão da verdade, eu vejo que o Noroeste está querendo secar até a tempestade que se anuncia na tarde erma. Não, que o Vento Noroeste não seque a tormenta que há de desafogar a cidade. Vinde, trovões mensageiros; rasgai o céu, relâmpagos! Que as águas de um novo dilúvio desabem sobre a cidade angustiada e encharquem a terra de lama e as árvores de seiva. Que desçam os raios e sangrem o flanco flácido dos morros e que se rejuvenesça o coração dos homens. Que o ar se rompa em rajadas frescas e se repousem os cabelos das mulheres, frementes de eletricidade.
Que deixem de ranger os papéis da burocracia, sacados pelo Vento Noroeste. Que pare, que pare imediatamente o sopro desta bisnaga de ar quente a soprar sobre a dentina dolorida da cidade. Que venha o Azul, o Azul, o Azul, o Azul!

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

O impagável Laerte

Mal-estar de um anjo

Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana com água entrando pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de lama até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas invisíveis. Até o movimento de maré já tinha, onde se juntasse o bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já selecionaram o melhor casal da minha espécie.
Pelas esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava quem só queria casa própria. Andei sem rumo pela ruas e ruas, mais me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.
E eis que nas águas vejo um táxi. Avançava cuidadosamente, quase centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas. Como é que eu me apoderaria daquele táxi? Aproximei-me. Não podia me dar ao luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir, não me deram. Contendo o desespero, o que sempre dá uma aparência de força, disse ao chofer: “o senhor vai me levar para casa! é de noite! tenho filhos pequenos que devem estar assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!” Para minha grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas movia-se – e chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a pouco já estava pensando: e eu que não sabia que valia tanto. E daí a pouco era a dona de casa de meu táxi, já tomara posse do direito do que gratuitamente me fora dado, e energicamente tomava medidas úteis: torcia cabelos e roupas, tirava os sapatos amolecidos, enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A verdade, sem pudor, é que eu tinha chorado. Muito pouco, e misturando motivos, mas chorado. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem confortável no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se.
Uma senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este avançava, ela pôde acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde demais para mim, e seu itinerário me desviaria do meu caminho. Lembrei-me, porém, de meu desespero de havia cinco minutos, e resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu lhe disse que sim, seu tom de imploração imediatamente cessou, substituído por uma voz extremamente prática: “É, mas espere um pouco, vou até aquela transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que deixei lá para não molhar.” “Estará ela se aproveitando de mim?”, indaguei-me na velha dúvida se devo ou não deixar que se aproveitem de mim. Terminei cedendo. Ela demorou à vontade. E voltou com um enorme embrulho pousado nas mãos estendidas, como se até seu próprio corpo pudesse macular o vestido. Instalou-se totalmente, o que me deixou tímida na minha própria casa.
E começou o meu calvário de anjo – pois a mulher, com sua voz autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela se atrasaria e perderia a première. Eu já tivera as minhas premières, e nem as minhas tinham me comovido. “A senhora não sabe o milagre que me aconteceu”, contou-me com firmeza. “Comecei a rezar na rua, a rezar para que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a senhora.” Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo destinado a proteger premières? a ironia divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em mim, o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com a maior discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: “Não me supervalorize, sou apenas um meio de transporte.” Enquanto que a ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito impressionada com quem grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente mandava em mim. Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce cinismo: aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase, devia ser mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa terminaria por agradecer ao anjo com um cheque, também levando em conta que a chuva já devia ter lavado toda a minha distinção. Com um pouco mais de confortável cinismo, em silêncio, declarei-lhe que dinheiro seria um meio tão legítimo quanto outro de agradecer, já que a moeda dela era mesmo moeda. Ou então – diverti-me eu – bem poderia dar-me em agradecimento o vestido da première, pois o que ela realmente deveria agradecer não era ter um vestido seco, e sim ter sido atingida pela graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo cada vez melhor, pensei: “Cada um tem o anjo que merece, veja que anjo lhe coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar com a ideia de um anjo interessado em roupas.” Parece-me que, no meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à tolice ardente de uma senhora.
A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a compreender como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca me ocorrera. A menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos anjos. Quem sabe, até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria satisfeitona daquela senhora começava a me deixar sombria: ela fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa uma profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever, acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura já não podia mais negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só fora mandada ao mundo para aquele instante de utilidade. Era isso, pois, o que eu valia. No táxi, eu não era um anjo decaído: era um anjo que caía em si. Caí em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito àquela de quem eu era com tanta revolta anjo da guarda: faça o obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei calada, aguentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo seu enorme embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar de mim, ou melhor, de minha função. Emburrei. A senhora sentiu e calou-se um pouco desarvorada. Já na altura da Viveiros de Castro a hostilidade se declarara muda entre nós.
Escute, disse-lhe eu de repente, pois minha espontaneidade é faca de dois gumes também para os outros, o táxi vai antes me deixar em casa e depois é que segue com a senhora.
Mas, disse ela surpreendida e em começo de indignação, depois eu vou ter que dar uma volta enorme e vou me atrasar! É só um pequeno desvio para me deixar em casa!
Pois é, respondi seca. Mas eu não posso entrar pelo desvio.
Eu pago tudo! Insultou-me ela com a mesma moeda com que teria se lembrado de me agradecer.
Eu é que pago tudo, insultei-a.
Ao saltar do táxi assim como quem não quer nada, tive o cuidado de esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda falta de educação que me tem salvo dos abismos angelicais. Livre de asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando para de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do edifício Visconde de Pelotas.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

instruções de bordo

(para você, A. C., temerosa, rosa, azul-celeste)

Pirataria em pleno ar.
A faca nas costelas da aeromoça.
Flocos despencando pelos cantos dos
lábios e casquinhas que suguei atrás
da porta.
Ser a greta,
o garbo,
a eterna liu-chiang dos postais vermelhos.
Latejar os túneis lua azul celestial azul.
Degolar, atemorizar, apertar
o cinto o senso a mancha
roxa na coxa: calores lunares,
copas de champã, charutos úmidos de
licores chineses nas alturas.
Metálico torpor na barrigada baleia.
Da cabine o profeta feio,
de bandeja.
Três misses sapatinho fino alto esmalte nau
dos insensatos supervoos
rasantes ao luar
despetaladamente
pelada
pedalar sem cócegas sem súcubos
incomparável poltrona reclinável.

Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril

AS RÃS | Drama em nove atos


Ato V

É noite, raios de luz incidem oblíquos, um brilho dourado toma o palco.

Num canto do templo de Niangniang, Chen Nariz e seu cachorro estão enrodilhados ao pé de uma grossa coluna. O cachorro pode ser representado por um homem. Diante de Chen está uma tigela de ferro muito surrada, dentro dela algumas notas e moedas. Duas muletas de madeira descansam ao lado.

Entra Chen Sobrancelha como um espectro, vestindo túnica preta, o rosto coberto por um véu negro.

Dois homens entram no palco logo atrás dela, vestidos da mesma forma.

CHEN S. (em prantos) Bebê… Meu bebê… Onde está… Meu bebê… Onde está…

Os dois homens de preto se aproximam de Sobrancelha.

CHEN S. Quem são vocês? Por que estão vestidos de preto e com o rosto coberto? Ah, entendi, também são vítimas daquele incêndio…
HOMEM DE PRETO A Sim, também somos vítimas.
CHEN S. (lúcida) Não, as vítimas do incêndio são todas mulheres, e vocês nitidamente são homens.
HOMEM DE PRETO B Somos vítimas de outro incêndio.
CHEN S. Coitados de vocês…
HOMEM DE PRETO A Pois é, somos uns coitados.
CHEN S. Devem estar muito angustiados…
HOMEM DE PRETO B Sim, muito angustiados…
CHEN S. Já fizeram o transplante de pele?
HOMEM DE PRETO A (sem entender) Que transplante de pele?
CHEN S. É tirar a pele boa do bumbum ou da coxa, de onde não foi queimado, e colocar na parte queimada. Não fizeram isso?
HOMEM DE PRETO B Sim, claro que fizemos. A pele do nosso bumbum foi totalmente retirada pelo médico para colocar no nosso rosto…
CHEN S. Fizeram o transplante de sobrancelha também?
HOMEM DE PRETO A Sim, sim.
CHEN S. Usaram os cabelos ou os pelos pubianos?
HOMEM DE PRETO B O que é isso? Pelo pubiano pode virar sobrancelha?
CHEN S. Se o couro cabeludo estiver todo queimado, só se podem aproveitar os pelos pubianos, melhor que nada, não acham? Se nem houver os pelos pubianos, vai ficar pelado mesmo, parecendo uma rã.
HOMEM DE PRETO A Sim, sim, sim. Não temos nenhum pelo, estamos lisos como rãs.
CHEN S. Já se olharam no espelho?
HOMEM DE PRETO B Nunca nos olhamos no espelho.
CHEN S. Nós, pacientes queimados, temos medo do espelho e também temos ódio dele.
HOMEM DE PRETO A Sim, quebramos qualquer espelho que encontrarmos pela frente.
CHEN S. Isso não adianta nada. Podem quebrar o espelho, mas vão quebrar também a vitrine de uma loja ou um chão de mármore? E a água que reflete a imagem e os olhos que nos olham? Quando nos veem, eles vão fugir gritando, as crianças podem até chorar de medo. Chamam a gente de fantasma, de demônio. Seus olhos são nossos espelhos, por isso não há como quebrar todos os espelhos. A melhor maneira é esconder nosso rosto.
HOMEM DE PRETO B Sim, sim, sim. Por isso cobrimos nosso rosto com um véu negro.
CHEN S. Já pensaram em se matar?
HOMEM DE PRETO B Nós…
CHEN S. Até onde sei, das irmãs que ficaram feridas, cinco já cometeram suicídio. Elas se mataram depois de se olhar no espelho…
HOMEM DE PRETO A Maldito espelho!
HOMEM DE PRETO B Por isso quebramos todos os espelhos que encontramos pela frente.
CHEN S. Eu queria me matar, mas depois desisti da ideia…
HOMEM DE PRETO A Viver é bom. Antes viver mal que morrer bem!
CHEN S. Desde que engravidei, desde que senti essa pequena vida pulsando na minha barriga, não queria mais morrer. Sentia que eu era um casulo feio, e que uma vida linda estava sendo gestada, e quando ela rompesse o casulo e saísse, eu me tornaria uma casca vazia.
HOMEM DE PRETO B Lindas palavras.
CHEN S. Depois que meu filho nasceu, não virei casca vazia nem morri. Eu me descobri ainda mais viva. Não sequei nem murchei, pelo contrário, ganhei mais viço. A pele seca no meu rosto parece mais fresca, meus seios estão cheios de leite… a reprodução me deu uma nova vida… Mas eles levaram meu filho…
HOMEM DE PRETO A Venha conosco, nós sabemos onde está seu filho.
CHEN S. Sabem onde meu filho está?
HOMEM DE PRETO B Estávamos à sua procura para ajudá-la a encontrar seu filho.
CHEN S. (animada) Graças a Deus, me levem logo, me levem para onde está meu filho…

Os dois homens de preto, segurando Sobrancelha, estão prestes a sair de cena.

O cachorro de Chen Nariz pula como uma flecha e agarra com a boca a perna esquerda do homem de preto A.

Chen Nariz se levanta de um salto, segurando as muletas, pula para a frente. Apoia o corpo em uma muleta, enquanto ataca o homem de preto B com a outra.

Os dois homens se livram do cachorro e de Chen Nariz, recuam para um lado do palco e retiram uma arma, como um punhal. Nariz fica ao lado do cachorro, Sobrancelha está na parte anterior do palco, formando assim um triângulo.

CHEN N. (rosnando) Larguem minha filha!
HOMEM DE PRETO A Seu velho desgraçado, bêbado, malandro, indigente. Como se atreve a dizer que é sua filha?
HOMEM DE PRETO B Se é mesmo sua filha, então chame-a, quero ver se ela responde.
CHEN N. Sobrancelha… Minha pobre filha…
CHEN S. (friamente) Deve ser um engano. Deve ter se enganado.
CHEN N. (pesaroso) Sobrancelha, sei que você odeia o papai. Devo a você, devo a sua irmã e a sua mãe. Fiz mal a vocês, sou um pecador, um inútil, um morto-vivo…
HOMEM DE PRETO A Isso é uma confissão? Tem alguma igreja aqui por perto?
HOMEM DE PRETO B Vá para o leste ao longo do rio, uns dez quilômetros, há uma igreja católica recém-restaurada.
CHEN N. Sobrancelha, sei que foi enganada por eles. Quem te enganou foi um velho amigo do papai, agora vou te ajudar a fazer justiça.
HOMEM DE PRETO A Seu velho, saia da frente.
HOMEM DE PRETO B Moça, venha conosco, garantimos que vai ver seu filho.

Chen Sobrancelha vai em direção aos dois homens. Nariz e o cachorro tentam impedi-la.

CHEN S. (com raiva) Quem é você? Por que me impedir? Quero achar meu filho, sabia? Ele nunca tomou do meu leite desde que nasceu. Se não amamentá-lo, vai morrer de fome, sabia?
CHEN N. Sobrancelha, você me odeia, entendo; você não quer me reconhecer como seu pai, de acordo. Mas não pode ir com eles. Eles venderam seu filho. Se você for com eles, vão jogar você no rio para se afogar, e depois, vão forjar uma cena de suicídio. Essas coisas, já fizeram mais de uma vez…
HOMEM DE PRETO A Seu velho, acho que você já viveu o bastante. Como pode nos caluniar desse jeito?
HOMEM DE PRETO B Que besteira é essa? Numa sociedade como a nossa, como podem existir essas maldades, homicídio, assassinato?
HOMEM DE PRETO A Deve ter assistido muito daqueles filmes em salinhas de vídeo.
HOMEM DE PRETO B E agora tem dessas alucinações.
HOMEM DE PRETO A Acha que socialismo é capitalismo.
HOMEM DE PRETO B E que gente de bem é bandido.
HOMEM DE PRETO A E que boas intenções são maldade.
CHEN N. Vocês são um monte de bosta que ninguém quer, são o pior lixo da sociedade…
HOMEM DE PRETO B Como se atreve a nos chamar de pior lixo da sociedade? Você é um porco que fuça a lixeira para achar comida. Sabe com quem está falando?
CHEN N. Claro que sei com quem estou falando. Conheço vocês e sei o que fizeram.
HOMEM DE PRETO A Acho que é hora de convidá-lo para tomar um banho frio no rio.
HOMEM DE PRETO B Amanhã de manhã, as pessoas que vierem queimar incenso e amarrar boneco vão dar falta do velho mendigo na entrada do templo junto com seu cachorro coxo.
HOMEM DE PRETO A Ninguém vai se importar com isso.

Os dois homens lutam com Nariz e seu cachorro. O cachorro morre e Nariz é derrubado no chão. Os dois tentam esfaquear Nariz, então Sobrancelha tira o véu, mostra o rosto hediondo e solta um grito demoníaco. Assustados, os dois homens deixam Nariz e fogem.

Cortina.

Mo Yan, em As rãs