quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Lee Ritenour & João Bosco | Latin Lover \ Incompatibilidade de Gênios

Condição humana

Como diz o cara absolutamente íntegro apanhado roubando: “Bem, eu também sou humano”.

Millôr Fernandes, em A bíblia do caos

Arte anti-hipnótica

Espia a flor da aurora que já vem raiando!
Mal a barra do dia rompia
saía pra rua
a caçar trabalho.
Lavrador desempregado
Morador de casebre de pau a pique
3 cômodos
em Araçatuba
cumpre pena de prisão domiciliar
por furtos de luz
do programa de energia rural
para a população de baixa renda.
4 lâmpadas
sendo que duas queimadas
e uma geladeira imprestável.
Sem dinheiro para pagar a conta
teve o marcador de quilowatts arrancado.
Um compadre compadecido armou o “gato”.
70 anos incompletos.
Não compareceu ao fórum
pois só possuía chinelo
despossuía sapato e roupa decente.

Aqui firma e dá fé um Bertold Brecht de arrabalde:
o sumo do real extraído da notícia de jornal:
a arte ilusória
idílica
hipnótica
do fait divers.

Waly Salomão, em Antologia Poética

RSVP

Ideia para uma peça.

No palco uma mesa posta para 13 pessoas. Copos, pratos e talheres rústicos, grossas velas toscas e na frente de cada lugar um cartãozinho com o nome de quem deve sentar ali. Ninguém no palco.
Da esquerda aparece um mordomo seguido de um casal elegantemente vestido. O casal entra em cena visivelmente inseguro, olhando para todos os lados. O mordomo anuncia que os outros não demorarão a chegar e diz para o casal ficar à vontade. Se quiserem, podem beber água da moringa. O mordomo sai de cena. O casal se entreolha.
Ela diz, num cochicho:
Onde nós estamos?
Ele, cochichando também:
E eu sei?
Olhe o convite de novo.
O homem tira o convite do bolso do smoking e o examina pela décima vez. O convite ainda diz a mesma coisa.
Só a data, a hora, o endereço e, embaixo, “RSVP”.
Esse “RSVP” é que é a chave de tudo. Deve ser as iniciais de alguma coisa.
Mas do quê?
— “Reunião dos...” Sei lá.
Podemos estar no jantar errado.
Mas o mordomo viu o convite e nos deixou entrar.
Olhe os cartõezinhos para ver se os nossos nomes estão aí.
Ela (lendo):
— “João”, “Tiago”, “Pedro”...
Ele (lendo):
— “Mateus”, “Simão”, “Judas”...
Viu? Nossos nomes não estão aqui. Estamos no lugar errado.
— “Jesus”!
Que foi?
Neste cartãozinho. Está escrito “Jesus”!
Lentamente, eles se dão conta do que isto significa. Fazem a volta na mesa, um para cada lado, lendo os cartõezinhos outra vez. Se reencontram no meio da mesa.
Aí está — diz ele. — Jesus ao lado de Pedro.
Os dois se encaram, de olhos arregalados e boca aberta. Finalmente ele consegue falar.
As letras...
Que letras?
Na cruz. Em cima da cabeça de Jesus Cristo. Não eram...
RSVP!
Ele toma uma decisão:
Vamos embora.
Espera. E se a gente ficasse para...
Está maluca? Isto aqui acaba mal. Não vamos nos meter nesta confusão.
Mas...
Olhe, o jantar vai ser horrível, acredite. Só pão ázimo, vinho barato e conversa de homem. Você seria a única mulher. Iria se sentir deslocada.
Sim, mas...
E eles obviamente não estão nos esperando. Pense no vexame.
A mulher se convence. Tudo, menos uma gafe social. Os dois saem furtivamente do palco.

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis

Serotonina

Bicudinho, de Caco Galherdo

Relendo Rilke (e com direito a Jorge Amado)

Ao som das canções de Sarah Vaughan, dei ultimamente – embora já dele tão distanciado por tantas e tão grandes causas – de reler o poeta Rainer Maria Rilke. Andei folheando as Cartas a um jovem poeta, os Sonetos a Orfeu e algumas Elegias de Duíno. E o que tenho a dizer é o seguinte: poucos seres tão poéticos nasceram nunca de uma mulher. Pouquíssimos, como esse Grande Enfermo, viveram tanto em poesia e se abandonaram mais fundamente, náufrago irremediável, à avidez de suas águas onde o esperava o indizível abandono.
Nunca vida humana fechou-se mais completamente dentro de uma mística. Chega a ser impressionante. Rilke passou, como aquele “afogado pensativo”, a descer os “azuis verdes” dos céus e dos rios que a visão de Jean-Arthur Rimbaud confundiu no seu poema “Le Bateau ivre”. O poeta viveu em transe poético constante, amargurando seu espírito contra todos os temas da Vida, do Amor e da Morte, a que piedosamente amou como uma única entidade.
Sua simplicidade como poeta nasce dessa longa tortura lírica de ver a morte como um amadurecimento da vida, numa total compensação. Rilke acreditava que a morte nasce com o homem, que este a traz em si tal uma semente que brota, faz-se árvore, floresce e frutifica ao se despojar do seu alburno humano. Seus poemas menores vencem lentamente todos esses “graus do terrível”, num crescimento espontâneo para a grande enflorescência, de onde penderão os melhores frutos, desejosos de renovação na terra.
Em 1910 Rilke terminava os seus famosos Cadernos de Malte Laurids Brigge, onde contou, com uma beleza raras vezes alcançada em prosa, a história elegíaca da destruição de um ser votado à fatalidade irremediável da mágoa. Porque é mágoa, mais que angústia, o que colhemos dessa narrativa: a mágoa do mal-entendido humano, o solilóquio desolador do homem desajustado à vida. A qualidade do sofrimento que lhe vem dessa torturante criação, como que lhe afina ainda mais a sensibilidade, já de si tão aguçada para todos os sussurros da poesia. O poeta pena, como penou por um momento o Cristo, da coexistência íntima da dúvida e da certeza, enquanto vagueia, morbidamente enfraquecido pela doença, pelos lugares que mais ama na Europa: Paris, a Rússia e os países escandinavos, intermitentemente.
Em fins de 1911, instado pelos príncipes de Tour e Taxis, Rilke vai passar sozinho o inverno no Castelo de Duino. Um belo dia de janeiro, passeando às bordas de um penhasco sobre o Adriático, diz ter ouvido no vento o mistério de uma voz que lhe dizia: “Quem, se eu gritasse, me ouviria em meio à hierarquia dos anjos?” Eriçado, e ao mesmo tempo atônito com o milagre dessas palavras que lhe surgiam com a própria poesia desejada, o poeta as anotou e, nesse mesmo dia, escrevia o primeiro movimento desse bloco sinfônico a que chamou Elegias de Duíno. Tão temperados se achavam nele os motivos da obra em perspectiva que, em poucos dias, escrevia a segunda da série e o começo de quase todas as outras.
Mas o impulso cessou. Por dez anos Rilke calou-se, à espera de que nele as palavras encontrassem seu lugar exato no grande puzzle poético que se desencadeara. Em Paris, na Espanha e em Munique acrescentou fragmentos a algumas das elegias, sofrendo terrivelmente da descontinuidade com que a poesia se revelava. E não seria senão depois da Primeira Grande Guerra, no seu refúgio da Suíça, em Muzot, que num sopro de criação poucas vezes igualado, só comparável talvez a certos instantes de música e de pintura em Miguelangelo e Beethoven, escreveria em três semanas as oito elegias restantes, Os 55 Sonetos a Orfeu e vários outros poemas a que chamou Fragmentarishes. Fora o último espasmo de vida nesse eterno, sereno moribundo. A Morte, sua amiga, desobjetivava-o poucos anos depois, como “um rio que leva”. Rilke recusou o médico: queria morrer a sua morte.
Mas, depois, o mal-estar em que me deixou essa combinação de Rilke e Sarah Vaughan... Foi quando tive a boa ideia de ler tua novela A morte e a morte de Quincas Berro D'água, Jorge. Que mortes tão diferentes... Que beleza, Jorge, que beleza!

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

O discreto charme da magistocracia


Apresentação

Recém-nomeado ao Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2023, o novo ministro abraça o governador de Alagoas na cerimônia de posse. Governadores não costumam frequentar esses eventos, mas acontece. Dias depois, o ministro decano do STF, o mais longevo na cadeira, sozinho, anula todas as provas reunidas contra esse governador em operação policial autorizada, por 10 votos a 2, pelo Superior Tribunal de Justiça em 2022.
O governador é cliente do ex-escritório de advocacia do ministro empossado. O mesmo escritório da esposa desse ministro (agora ex-sócia). Semanas antes, o governador também participou de encontro jurídico em Lisboa, organizado pela empresa do ministro decano, na presença das maiores autoridades políticas e jurídicas do país. Rodeados de advogados e empresários. Uma reunião dos Três Poderes com o poder econômico, uma congregação do público com o privado. Bem longe do país. E bem distante de qualquer valor republicano.
Episódios como esse geram a fumaça da desconfiança. Procurando mais, talvez outras conexões se iluminem nessa intrincada rede de relações. Será que a anulação das provas obedeceu à legalidade? Ou foi puro intercâmbio de interesses?
Difícil saber. Não podemos entrar na cabeça dos ministros para investigar suas reais intenções. Seus comportamentos, contudo, não ajudam. Deixam pouco nas entrelinhas e justificam a suspeita.
Atitudes assim facilitam a vida do extremismo político e convidam ao ataque de má-fé. Fragilizam o tribunal e o estado democrático de direito. Não são deslizes nem falta de noção, mas condutas antiéticas. E a antiética judicial, ao contrário de normas éticas gerais, é também ilegal.
Se você não quiser seguir princípios éticos para ser uma “boa pessoa”, qualquer que seja essa definição, tem liberdade para tanto. Já os deveres éticos do “bom juiz” estão previstos em lei. Nenhum juiz é livre para ignorá-los. A arquitetura institucional deveria fiscalizar e sancionar os desvios. Se a violação de deveres éticos é tolerada, não se torna menos ilegal por isso. Juízes devem prestar contas. Não só perante sua consciência.
Mais do que qualquer outra, instituições de justiça dependem da fumaça da confiança. A imagem de integridade é sua principal âncora de legitimidade. Para a credibilidade de um tribunal, a mensagem transmitida pela conduta de seus membros chega a ser mais decisiva do que as reais intenções eventualmente escondidas em despachos, votos e sentenças.
No mundo da justiça, parecer honesto importa tanto quanto ser honesto. Se for um lobo, que pelo menos o seja em pele de cordeiro. Não basta, mas não é pouco.
A anedota dá apenas um exemplo atual entre tantos do cotidiano político relatados pelos jornais. Não são casos isolados. Permitem visualizar padrões de comportamento das autoridades jurídicas brasileiras. Agregados, demonstram costumes arraigados. E esses costumes operam contra as instituições.
Este livro reúne uma seleção de 88 colunas sobre atores do sistema de justiça brasileiro. Sobre a magistocracia, mais especificamente. Magistocracia é um neologismo que mistura o termo “magistrado” com “aristocracia”. Evoca a ideia da aristocracia de toga. Adota o sentido mais antigo e abrangente de magistrado, que abarca qualquer agente público dotado de autoridade, como juízes, procuradores, promotores, advogados públicos. Magistocratas, aqui, não são somente os juízes.
A magistocracia corresponde a uma fatia do sistema de justiça, não à sua totalidade. Ela coloniza as cúpulas das instituições de justiça e as governa. Exerce hegemonia cultural e política e dá pouca margem para sua transformação.
O livro atribui cinco características à magistocracia. Ela é autoritária, porque adota noções iliberais e pré-constitucionais das liberdades públicas e é corresponsável por grandes violações de direitos (como o encarceramento em massa e a violência policial); autocrática, afinal reprime a independência de juízes ideologicamente destoantes; autárquica, pois recusa mecanismos de controle e transparência; rentista, porque se utiliza de estratagemas da baixa política para acumular benefícios remuneratórios que escapam da legalidade; e dinástica, pois pratica e tolera variadas formas de favoritismo familiar, o chamado parentismo.
Instituições erram e acertam. A magistocracia erra, protege o erro e resiste à autocorreção. Seus erros formam sérias comorbidades da democracia brasileira.
Juízes contrabandeiam o retrato idealizado de como pensam que o Judiciário deveria ser para dentro da descrição de como de fato é. E assim escondem o que o Judiciário é ou poderia ser. Essa dissonância acaba se normalizando na consciência de cada magistocrata orgulhoso de sua condição. Quando confrontados com retratos mais secos e realistas, alguns entram em negação. Outros partem para a perseguição.
Diante de críticas factuais, um magistocrata recita doutrinas e aforismos ululantes: “A Magistratura é, antes de tudo, serva da Constituição e da lei.” Prefere atuar no campo retórico ilusionista. Tem mania do autoelogio.
O sistema de justiça, claro, é mais diverso do que um retrato estanque e generalista da magistocracia. Não é só feito de magistocratas. Nas franjas, vê-se empenho, abnegação, coragem, cuidado, sensibilidade social, conhecimento sociológico, inteligência jurídica, sinceridade hermenêutica. São exceção nas cúpulas institucionais que governam tribunais superiores, regionais ou estaduais. Mas a diversidade, que poderia diluir a perversão magistocrática e democratizar a justiça, mal consegue subir os degraus da hierarquia.
O livro reúne escritos em ordem cronológica de publicação. Recupera alguns textos esparsos de opinião publicados a partir de 2010 em jornais, colunas semanais desde que me tornei colaborador semanal na revista Época, em março de 2018, e da Folha de S.Paulo, em novembro de 2019.
O conjunto não corresponde a uma miscelânea aleatória de temas conforme o vento da conjuntura nesses anos. Todos remetem ao lugar de cortes, de juízes e de outros profissionais jurídicos na democracia.
Além de contribuir para a memória de um período, há um fio condutor que costura argumentos comuns: de um lado, a defesa da imparcialidade, do decoro; de outro, a denúncia de conflitos de interesses, da suspeição e da corrupção institucional, da manipulação da retórica jurídica, da sedução e do disfarce.
As colunas podem ser lidas linear ou tematicamente. O índice remissivo ajuda quem quiser navegar pelos textos de acordo com os temas ou personagens tratados.
Luis Buñuel, diretor da obra surrealista O discreto charme da burguesia, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1973, não se espantaria com o discreto charme da magistocracia. No filme, em dada noite, amigos da alta sociedade buscam jantar, o que acaba nunca acontecendo em razão de seguidos incidentes inusitados. Sem perder a pose, o grupo entretém conversas presunçosas, simula normalidade e expressa desprezo moral pelo drama que os rodeia. A magistocracia não deixa nada a dever.

Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia: Vícios e disfarces do judiciário brasileiro

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Agnes Nunes | Pode se Achegar

[Para Whit Burnett] | 27 de fevereiro de 1955



Obrigado pela devolução dos velhos contos; e pelo bilhete incluso.
Eu ando um pouco melhor agora, se bem que quase morri na ala de caridade do Hospital Geral. Eles com certeza fazem lambança lá, e, se alguma vez você ouviu falar qualquer coisa sobre o lugar, provavelmente é verdade. Fiquei lá 9 dias e me mandaram uma conta de $14,24 por dia. Que ala de caridade. Escrevi um conto a respeito chamado “Cerveja, vinho, vodca, uísque; vinho, vinho, vinho” e enviei-o à Accent. Eles o mandaram de volta: ... “uma torrente um tanto sangrenta. Talvez, um dia, o gosto do público emparelhe com você”.
Meu Deus. Espero que não. […]
A propósito, no seu bilhete você disse que nunca tinha me publicado. Você tem um exemplar da Story de março-abril de 1944?
Bem, estou com 34 agora. Se eu não tiver conseguido quando chegar aos 60, vou simplesmente me dar 10 anos mais.

Charles Bukowski, em Escrever para não enlouquecer

Os deuses são felizes

Os deuses são felizes.
Vivem a vida calma das raízes.
Seus desejos o Fado não oprime.
Ou, oprimindo, redime
Com a vida imortal.
Não há
Sombras ou outros que os contristem.
E, além disto, não existem…

Fernando Pessoa, em Poesias inéditas e poemas dramáticos

O Impressionismo de Renoir

Buquê de Crisântemos (1881), de Pierre-Auguste Renoir

Capítulo IX – A Ópera

Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que me faz mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da Terra e do Céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar contra a iniquidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia. Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis. Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou:
A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente…
Mas, meu caro Marcolini…
Quê?…
E, depois, de beber um gole de licor, pousou o cálice, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, — e acaso para reconciliar-se com o céu, — compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
Mas, Senhor…
Nada! Nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
Ouvi agora alguns ensaios!
Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiário.
Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.
Tem graça…
Graça? bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que digo é a verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré, etc. Este cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…

Machado de Assis, em Dom Casmurro

Um tipo divertido



Era a explosão do ano-novo: um caos de barro e de neve, atravessado por mil carroças, cintilando de brinquedos e doces, fervilhando de cobiças e desesperos, delírio oficial de uma cidade grande feito sob medida para perturbar o cérebro do solitário mais arredio.
Em meio a essa zoeira e barafunda, um asno trotava alerta, fustigado por um campônio armado de chicote.
Quando o animal estava prestes a fazer a curva numa esquina, um belo senhor de luvas, sapatos reluzentes, cruelmente engravatado e que mal se mexia no seu traje todo novo inclinou-se solene diante da humilde besta e lhe disse, tirando o chapéu:
Feliz ano-novo!
Em seguida virou-se na direção de sabe-se quem, pleno de satisfação, como para colher os cumprimentos que lhe seriam prestados pelos amigos.
O asno passou reto pelo belo tipo, e continuou a correr zeloso conforme lhe era exigido pelo dever.
Quanto a mim, fui tomado de uma raiva inexprimível daquele magnífico imbecil, que me pareceu concentrar em si o verdadeiro espírito da França.

Charles Baudelaire, em O spleen de Paris – Pequenos poemas em prosa

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Chitãozinho & Xororó e Simone | Evidências

Madrigal

Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.

Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

José Paulo Paes, em Poesia completa

Do pensamento

Eu penso em ti. Sabias que isso é uma coisa maravilhosa? A primeira criatura que pensou numa outra criatura ausente, como deve ter-se espantado! Não sabia que se tratava do seu primeiro pensamento humano.

Mário Quintana, em Caderno H 

O impagável Laerte

Na outra noite no meio-fio

The other night I had a dream that I
was sitting on the sidewalk on Moody
Street, Pawtucketville, Lowell, Mass.,
with a pencil and paper in my hand
saying to myself“Describe the
wrinkly tar of this sidewalk, also
the iron pickets of Textile Institute,
or the doorway where Lousy and you and
G.J.’s always sitting and don’t stop
to think of words when you do
stop, just stop to think of the
picture better — and let your mind off
yourself in this work.”

Jack Kerouac, Dr. Sax

Na outra noite sonhei que estava sentada no meio-fio com papel, lápis e assobios vazios me dizendo: “Você não é Jack Kerouac apesar das assombrações insistirem em passar nas bordas da cama exatamente como naquele tempo”. Eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. O tempo se fazia ao contrário. De noite não dormia enquanto meus olhos viam as luzes dos automóveis velozes no teto. Quando me virava de bruços vinha o diabo e me furava as costas com o punhal de prata. As mãos se interrompiam à meia-noite quando chegava o anjo mais escuro que o silêncio. Não havia mais sonho e eu e Jack brincávamos de paixão escondida.
O caso rendia por cima dos balcões. Eu era rainha das cobras. Jack com sobrolho carregado e ar desentendido. Ninguém devia saber de nada, nem a gente. Eu era a freira de nariz arrebitado e boquinha vermelha. Jack doente e eu cuidava dele no hospital. Me dá a mão, Ângela, segura a minha mão, ele falava angustiado como se estivesse delirando. Eu segurava a mão dele porque era irmã Paula mas Ângela não me chamava. Ele torcia meus dedos e suava nos lençóis. Eu sentia um calor terrível, inquieta na cadeira branca de ferro coberta de hábitos pretos.
O colarinho engomado pinicava. Com a outra mão eu pegava nos meus seios que não eram grandes como a angústia de Jack. Altas horas lá ia eu atender a luzinha vermelha do quarto que piscava. De manhã Jack partia para sempre e eu tinha calores na madrugada seguinte sem luzinha. Na confissão virava Jack sofrendo na enfermaria e chamava Ângela de olhos fechados. O confessor era careca e não dizia nada, suportava meus dedos retorcidos entre as grades. Sozinha imitava o jeito de Jack tirando os livros da estante gravemente. Quando dava por mim estava amparando a cabeça para não cair no sono igual ele fazia depois de falar muito. Andava de perna meio aberta e batia a porta. O hábito ficava preso no vão; eu não saía do lugar.
Nessa época começaram os bombardeios. Tivemos que nos esconder todos dentro de um trem apagado no meio da floresta. Tinha mais gente que espaço e todos deitavam no chão meio embolados e tentavam descansar os peitos fatigados, os corações exaustos, os olhares carregados etc. Jack vigiava os céus de insônia por uma fresta no teto. Um homem gordo roncava aos meus pés. Ao lado dele uma mulher carnuda se remexia. Não deitei tensa de medo de fazer caridade pelos porcos. Jack barbado e cabeludo movia a cabeça de um lado para o outro. Quando as explosões recomeçavam Jack se atirava no chão e rolava por cima de seus protegidos até no meu cantinho acocorado.
A rainha das cobras era cruel com olhos flamejantes. Capturava Jack na floresta e torturava com chicotes, embebia feridas com água e sal. Não pessoalmente, mas comandando soldados cabeçudos, barris de obediência. Na hora do aperto tinha de aguentar os cheiros de Jack colados no meu braço. Dava as costas e fingia que não sentia o aperto do perigo. Jack também me dava as costas e as explosões sacudiam as paredes do trem. Ninguém podia se mexer só se juntar mais e mais até os ossos estalarem, gemidos imperceptíveis.
Jack me pegou desprevenida durante o descanso vespertino. Subiu nas minhas costas e desceu a boca nas dobras grudentas do pescoço. Não mexi e deixei que os dentes trincassem preso o corpo todo. As mãos de Jack parece que entenderam e vieram muito por cima pros meus peitos. As pernas de Jack entenderam e mudas deram voo rasante pelas minhas. Meus dentes seguraram: não me movi pela tesoura. Jack entendeu e não passou de mariposa. Rasteiro se afastou e era como se tivéssemos dormido a noite inteira sem reparos.
Finalmente a mulher carnuda acordou, superiora, madre, dona dos soldados, dona da pensão. Quando Jack subia nas costas dela não se dormia mais no casarão, no trem, no hospital. Fiquei à escuta, tentei brincar de acordar sozinha, chamei Ângela cortante, às tesouradas, touradas, trovoadas de verão, punhal de prata. De fato recebi visitas discretas da nova enfermeira de plantão, enfermeira de enfermeiras que contraíam a peste que curavam. Ainda toda ouvidos só de insônias povoadas. Jack no coro franzia a cara e só eu percebia na plateia; mas não mudo, não falo, não mexo. Tinha suor, não tinha palmas.

Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril

Um homem discreto

Deus lhe deu inúmeros pequenos dons que ele não usou nem desenvolveu por receio de ser um homem terminado e sem pudor.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas