Recém-nomeado
ao Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2023, o novo ministro
abraça o governador de Alagoas na cerimônia de posse. Governadores
não costumam frequentar esses eventos, mas acontece. Dias depois, o
ministro decano do STF, o mais longevo na cadeira, sozinho, anula
todas as provas reunidas contra esse governador em operação
policial autorizada, por 10 votos a 2, pelo Superior Tribunal de
Justiça em 2022.
O
governador é cliente do ex-escritório de advocacia do ministro
empossado. O mesmo escritório da esposa desse ministro (agora
ex-sócia). Semanas antes, o governador também participou de
encontro jurídico em Lisboa, organizado pela empresa do ministro
decano, na presença das maiores autoridades políticas e jurídicas
do país. Rodeados de advogados e empresários. Uma reunião dos Três
Poderes com o poder econômico, uma congregação do público com o
privado. Bem longe do país. E bem distante de qualquer valor
republicano.
Episódios
como esse geram a fumaça da desconfiança. Procurando mais, talvez
outras conexões se iluminem nessa intrincada rede de relações.
Será que a anulação das provas obedeceu à legalidade? Ou foi puro
intercâmbio de interesses?
Difícil
saber. Não podemos entrar na cabeça dos ministros para investigar
suas reais intenções. Seus comportamentos, contudo, não ajudam.
Deixam pouco nas entrelinhas e justificam a suspeita.
Atitudes
assim facilitam a vida do extremismo político e convidam ao ataque
de má-fé. Fragilizam o tribunal e o estado democrático de direito.
Não são deslizes nem falta de noção, mas condutas antiéticas. E
a antiética judicial, ao contrário de normas éticas gerais, é
também ilegal.
Se
você não quiser seguir princípios éticos para ser uma “boa
pessoa”, qualquer que seja essa definição, tem liberdade para
tanto. Já os deveres éticos do “bom juiz” estão previstos em
lei. Nenhum juiz é livre para ignorá-los. A arquitetura
institucional deveria fiscalizar e sancionar os desvios. Se a
violação de deveres éticos é tolerada, não se torna menos ilegal
por isso. Juízes devem prestar contas. Não só perante sua
consciência.
Mais
do que qualquer outra, instituições de justiça dependem da fumaça
da confiança. A imagem de integridade é sua principal âncora de
legitimidade. Para a credibilidade de um tribunal, a mensagem
transmitida pela conduta de seus membros chega a ser mais decisiva do
que as reais intenções eventualmente escondidas em despachos, votos
e sentenças.
No
mundo da justiça, parecer honesto importa tanto quanto ser honesto.
Se for um lobo, que pelo menos o seja em pele de cordeiro. Não
basta, mas não é pouco.
A
anedota dá apenas um exemplo atual entre tantos do cotidiano
político relatados pelos jornais. Não são casos isolados. Permitem
visualizar padrões de comportamento das autoridades jurídicas
brasileiras. Agregados, demonstram costumes arraigados. E esses
costumes operam contra as instituições.
Este
livro reúne uma seleção de 88 colunas sobre atores do sistema de
justiça brasileiro. Sobre a magistocracia, mais especificamente.
Magistocracia é um neologismo que mistura o termo “magistrado”
com “aristocracia”. Evoca a ideia da aristocracia de toga. Adota
o sentido mais antigo e abrangente de magistrado, que abarca qualquer
agente público dotado de autoridade, como juízes, procuradores,
promotores, advogados públicos. Magistocratas, aqui, não são
somente os juízes.
A
magistocracia corresponde a uma fatia do sistema de justiça, não à
sua totalidade. Ela coloniza as cúpulas das instituições de
justiça e as governa. Exerce hegemonia cultural e política e dá
pouca margem para sua transformação.
O
livro atribui cinco características à magistocracia. Ela é
autoritária, porque adota noções iliberais e
pré-constitucionais das liberdades públicas e é corresponsável
por grandes violações de direitos (como o encarceramento em massa e
a violência policial); autocrática, afinal reprime a
independência de juízes ideologicamente destoantes; autárquica,
pois recusa mecanismos de controle e transparência; rentista,
porque se utiliza de estratagemas da baixa política para acumular
benefícios remuneratórios que escapam da legalidade; e dinástica,
pois pratica e tolera variadas formas de favoritismo familiar, o
chamado parentismo.
Instituições
erram e acertam. A magistocracia erra, protege o erro e resiste à
autocorreção. Seus erros formam sérias comorbidades da democracia
brasileira.
Juízes
contrabandeiam o retrato idealizado de como pensam que o Judiciário
deveria ser para dentro da descrição de como de fato é. E assim
escondem o que o Judiciário é ou poderia ser. Essa dissonância
acaba se normalizando na consciência de cada magistocrata orgulhoso
de sua condição. Quando confrontados com retratos mais secos e
realistas, alguns entram em negação. Outros partem para a
perseguição.
Diante
de críticas factuais, um magistocrata recita doutrinas e aforismos
ululantes: “A Magistratura é, antes de tudo, serva da Constituição
e da lei.” Prefere atuar no campo retórico ilusionista. Tem mania
do autoelogio.
O
sistema de justiça, claro, é mais diverso do que um retrato
estanque e generalista da magistocracia. Não é só feito de
magistocratas. Nas franjas, vê-se empenho, abnegação, coragem,
cuidado, sensibilidade social, conhecimento sociológico,
inteligência jurídica, sinceridade hermenêutica. São exceção
nas cúpulas institucionais que governam tribunais superiores,
regionais ou estaduais. Mas a diversidade, que poderia diluir a
perversão magistocrática e democratizar a justiça, mal consegue
subir os degraus da hierarquia.
O
livro reúne escritos em ordem cronológica de publicação. Recupera
alguns textos esparsos de opinião publicados a partir de 2010 em
jornais, colunas semanais desde que me tornei colaborador semanal na
revista Época, em março de 2018, e da Folha de S.Paulo,
em novembro de 2019.
O
conjunto não corresponde a uma miscelânea aleatória de temas
conforme o vento da conjuntura nesses anos. Todos remetem ao lugar de
cortes, de juízes e de outros profissionais jurídicos na
democracia.
Além
de contribuir para a memória de um período, há um fio condutor que
costura argumentos comuns: de um lado, a defesa da imparcialidade, do
decoro; de outro, a denúncia de conflitos de interesses, da
suspeição e da corrupção institucional, da manipulação da
retórica jurídica, da sedução e do disfarce.
As
colunas podem ser lidas linear ou tematicamente. O índice remissivo
ajuda quem quiser navegar pelos textos de acordo com os temas ou
personagens tratados.
Luis
Buñuel, diretor da obra surrealista O discreto charme da
burguesia, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1973,
não se espantaria com o discreto charme da magistocracia. No filme,
em dada noite, amigos da alta sociedade buscam jantar, o que acaba
nunca acontecendo em razão de seguidos incidentes inusitados. Sem
perder a pose, o grupo entretém conversas presunçosas, simula
normalidade e expressa desprezo moral pelo drama que os rodeia. A
magistocracia não deixa nada a dever.