quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Nascente | Milton Nascimento

Sinhazinha


Antes de o sol nascer, a Esméria me acordou e fomos até a praia, para que eu me lavasse. Ela disse que um bom banho devia ser tomado em água doce, mas no momento o mar mesmo servia. Àquela hora da madrugada, já eram muitos os pretos que estavam acordados, alguns também tomando banho de mar, outros já trabalhando, circulando entre a praia, a casa-grande, as plantações e as senzalas, homens e mulheres carregando imensos balaios equilibrados sobre as cabeças ou amarrados às costas. Muito mais homens que mulheres, e até aquele momento eu não tinha visto nenhuma criança. Depois do banho, a Esméria me deu roupas melhores do que o pano que eu usava amarrado ao pescoço desde o desembarque, mas ainda longe de serem iguais às das mulheres que eu tinha visto no atracadouro. Eram roupas simples, uma bata e uma saia comprida até o tornozelo, brancas. Os pretos da senzala grande usavam roupas quase iguais, mas feitas de outro tipo de tecido, mais grosso e com listras brancas e azuis. A Esméria disse que as minhas não eram roupas novas e nem para crianças do meu tamanho, mas estavam bem conservadas e que depois perguntaria à sinhá se precisava providenciar outras, já que eu ia ficar dentro da casa, onde os pretos não deviam fazer má figura. Ela também disse que eu estava bonita e que não falaria mais comigo em iorubá, pois eu precisava aprender logo o português. Alertou novamente que nunca, nunca mesmo, eu poderia falar iorubá ou eve-fon perto do sinhô, da sinhá, da sinhazinha ou do Eufrásio, pois seria castigada. Não me pareceu difícil, pois eu achava a língua bonita e já entendia muitas palavras, faltando apenas aprender a pronunciá-las direito.
Na cozinha a movimentação já era grande, e a Esméria mal teve tempo de comer o mingau que a Antônia tinha preparado para todos nós. O dia na casa começava cedo, pois quando o sinhô José Carlos acordava, com os galos, a mesa do desjejum já devia estar posta. A Esméria parecia nervosa com o meu primeiro dia na casa, e eu também, desejando nunca ter deixado Savalu, que não era tão bonita quanto a Ilha dos Frades ou a Ilha de Itaparica, mas era onde eu tinha nascido e conhecia muita gente, onde tinha a minha mãe, a minha avó, a Taiwo e o Kokumo, e não ficava preocupada em saber se as pessoas iam gostar de mim ou não, porque já gostavam. A manhã já ia pelo meio quando a Antônia apareceu para me chamar; demos a volta por fora da casa e fomos até a varanda para encontrar a sinhá e a sinhazinha.
A sinhá estava sentada em uma cadeira de balanço e nem levantou os olhos do bordado que tinha no colo. A sinhazinha Maria Clara, em meio a almofadas e bonecas, brincava sobre uma esteira feita de panos coloridos. As bonecas dela tinham rostos com olhos, boca e nariz, e cabelos e roupas de verdade, parecendo gente, muito diferentes das que a minha avó fazia para mim e para a Taiwo. Quando chegamos perto e a Antônia disse o meu nome, ela levantou o rosto e era a pessoa mais bonita que eu já tinha visto, e ao mesmo tempo não parecia ser real. Era como uma de suas bonecas, uma boneca viva. Na verdade, eu não só a achei bonita, mas também senti medo ou um certo estranhamento quando percebi os olhos, que me pareceram de vidro ou de água do mar, pois nunca tinha visto gente com olhos daquela cor. Os do sinhô também eram azuis, como notei mais tarde, mas de um azul mais escuro, que não chamava atenção. Além dos olhos azuis, ela tinha o rosto muito branco, a boca pequena e cor-de-rosa e os cabelos da cor de cabelo de milho. Estava usando um vestido também azul, do mesmo tom dos olhos ou do mar, e que se espalhava feito água ao redor dela. A sinhazinha me olhou com certo interesse, mas não retribuiu meu sorriso, provavelmente tinha me achado menos interessante e muito mais feia que os outros brinquedos, porque foi isso que a Esméria disse que eu seria para ela, um brinquedo, e era como tal que eu deveria agir, ficar quieta e esperar que ela quisesse brincar comigo, do que ela quisesse. E apenas esperar, foi o que fiz durante todo o resto da manhã. Esperar que alguma coisa acontecesse que não fosse a sinhá Ana Felipa gritando de tempos em tempos para dentro de casa e logo sendo atendida pelo Sebastião ou pela Antônia, ou pelos dois juntos.
Fazendo de conta que eu não estava ali, a sinhazinha ficou trocando as roupas e penteando os cabelos das bonecas. Mas eu até gostei que ela me ignorasse, porque assim pudecontinuar maravilhada, sem tirar os olhos dela e, principalmente, das bonecas. Muito de vez em quando ela me olhava com o canto do olho, para logo depois se esquecer de mim novamente, em um alheamento que me fazia compará-la ainda mais às bonecas. Quando o sinhô apareceu na varanda e se sentou ao lado da sinhá por alguns instantes, os dois também permanecendo em silêncio, e o Sebastião chamou para o almoço, eu fiquei lá, como a Esméria tinha dito, como brinquedo obediente, parada, morrendo de vontade de ver de perto as bonecas da sinhazinha. Foi difícil me conter, mas fiquei com medo de que tivessem colocado alguém para me vigiar, até que a Esméria me chamou para comer também. Com os pratos nas mãos, nos sentamos à porta da cozinha, onde ela me mostrava alguns objetos, dizia os nomes deles em português e pedia que eu repetisse. Entre outras coisas, naquele dia aprendi que existem talheres, e que eu deveria usá-los para comer, que não podia mais comer com as mãos, o que era proibido pela sinhá aos escravos que trabalhavam na casa-grande.
Depois do almoço, os senhores foram se deitar um pouco e eu fui para o lugar onde estivera durante a manhã, como se não tivesse saído de lá. A sinhá e a sinhazinha voltaram para a varanda com a fresca da tarde e, de novo, agiram como se eu não existisse. A sinhá entretida com um livro e a sinhazinha, com as bonecas. E foi assim durante quatro ou cinco dias, enquanto à noite, e até que fosse necessário, as pretas da casa me ensinavam português, como também o Tico e o Hilário, com quem eu brincava de vez em quando. Eu já entendia quase tudo o que falavam e não foi muito difícil começar a falar também. Não tive a menor dificuldade em me comunicar com a sinhazinha quando ela finalmente conversou comigo, mostrando uma boneca e dois vestidos, um amarelo e outro branco, e perguntando qual deles eu preferia. Eu apontei o amarelo, mas foi o branco que ela colocou. Na mesma tarde, ela estava sentada no degrau mais baixo da escada que levava da varanda ao jardim, com a Antônia no degrau de cima, às suas costas, penteando os cabelos cor de milho. Eu apenas olhava quando ela me chamou, tirou o pente das mãos da Antônia e colocou nas minhas, pedindo que eu continuasse o trabalho da outra. Primeiro, tive medo de tocar os cabelos dela, de machucá-la com o pente, mas logo gostei da suavidade que tinha entre as mãos. Primeiro passei os dedos, sentindo os fios deslizarem entre eles como as franjas de um lenço que a Sanja, a filha da Titilayo, tinha ganhado de um marinheiro com quem se deitara. Acho que ficamos ali durante horas, eu mexendo no cabelo dela e nós duas olhando o mar além do jardim, além da areia branca. A partir daquele dia, só eu escovava os cabelos da sinhazinha, sempre inventando um jeito diferente de prendê-los, com fitas, grampos ou em tranças, que ela tentava repetir nas bonecas. Foi por isso que tive permissão para pegar nelas, porque a sinhazinha Maria Clara não conseguiu copiar um penteado com tranças e pediu que eu o fizesse. Os cabelos das bonecas eram quase tão macios quanto os dela, e ficávamos o dia inteiro naquilo, fazendo penteados e trocando as roupas para combinar, a sinhazinha sempre pedindo a minha opinião. Opinião que ela não aceitava, logo percebi, e passei a dizer o contrário do que realmente achava para que, ao me contrariar, ela fizesse o meu verdadeiro gosto.
A sinhá parou de aparecer na varanda e a Esméria disse que ela estava pejada, de resguardo. Contou que ela já tinha ficado assim várias vezes, mas nunca segurava criança. Quase todas morreram antes mesmo de se notar a barriga, mas duas chegaram a nascer antes do tempo e morreram logo em seguida. Em uma dessas vezes a sinhá quase morreu também, sendo salva por milagre. Foi um rebuliço na fazenda toda, com o sinhô descontando em maldade nos pretos o medo que ele tinha de perder a segunda mulher, como tinha acontecido com a primeira. Comentei que deviam dizer a ela que essas crianças podiam ser abikus, mas fui repreendida pela Esméria e avisada de que nunca deveria tocar nesse assunto. Ela disse também que, mesmo não sendo de verdade, todos nós tínhamos que adotar a religião e as crenças dos brancos, e que era falha dela ainda não ter me ensinado a rezar. Naquele dia mesmo, fez com que eu repetisse até decorar duas rezas importantes, a ave-maria e o pai-nosso, pois a qualquer momento a sinhá Ana Felipa poderia mandar me chamar para ver se eu já sabia rezar como gente de bem. Eu não conseguia entender que mal havia em falar de abiku, de Ibêjis, de voduns, mas a Esméria retrucou com tanta braveza que não me atrevi a contar sobre as promessas que tinha feito à minha avó, como providenciar o pingente da Taiwo, que eu tinha que trazer sempre comigo e que ainda estava representado pela concha amarrada no pescoço. Naquela noite sonhei com a Taiwo, que não disse nada, mas parecia brava comigo.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

Sísifo

Arte: Marc Perez

Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla o seu tormento. No universo que repentinamente recuperou o silêncio, erguem-se milhares de vozes maravilhadas da terra.
[...]
Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Albert Camus, em O Mito de Sísifo

Ah, já está tudo lido

Ah, já está tudo lido.
Mesmo o que falta ler!
Sonho, e ao meu ouvido
Que música vem ter?

Se escuto, nenhuma.
Se não ouço ao luar
Uma voz que é bruma
Entra em meu sonhar.

E esta é a voz que canta
Se não sei ouvir…
Tudo em mim se encanta
E esquece sentir.

O que a voz canta
Para sempre agora
Na alma me fica
Se a alma me ignora.

Sinto, quero, sei-me
Só há ter perdido –
E o eco onde sonhei-me
Esquece do meu ouvido.

Fernando Pessoa, em Poesias inéditas e poemas dramáticos

Capítulo XIII | Capitu


De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé:
Capitu!
E no quintal:
Mamãe!
E outra vez na casa:
Vem cá!
Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho. Era costume delas, às tardes, e às manhãs também. Que as pernas também são pessoas, apenas inferiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de ideias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia ali uma porta de comunicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela; abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quase que exclusivamente nossa. Em crianças, fazíamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitu adoeciam, o médico era eu. Entrava no quintal dela com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso à doente, e pedia-lhe que mostrasse a língua. “É surda, coitada!”, exclamava Capitu. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando aplicar-lhe umas sanguessugas ou dar-lhe um vomitório: era a terapêutica habitual do médico.
Capitu!
Mamãe!
Deixa de estar esburacando o muro; vem cá.
A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quis passar ao quintal, mas as pernas, há pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me inquieta:
Que é que você tem?
Eu? Nada.
Nada, não; você tem alguma coisa.
Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.
Que é que você tem? Repetiu.
Não é nada, balbuciei finalmente.
E emendei logo:
É uma notícia.
Notícia de quê?
Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminário e espreitar a impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse cálculo foi obscuro e rápido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não sei como…
Então?
Você sabe…
Nisto olhei para o muro, o lugar em que ela estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto que ela fizera para cobri-los. Então quis vê-los de perto, e dei um passo. Capitu agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adiante e apagou o escrito. Foi o mesmo que acender em mim o desejo de ler o que era.

Machado de Assis, em Dom Casmurro

O meu avô

O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar, explicava.
Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia. Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim um mistério tremendo.

Valter Hugo Mãe, em As mais belas coisas do mundo

No meu tempo era diferente! | (Prólogo)


quando eu tinha a tua idade no meu tempo era diferente enquanto você viver debaixo do meu teto você não sabe o que é cansaço não me faça parar o carro de castigo agora mesmo pois saiba que dinheiro não dá em árvore tenha juízo coloca um casaco quando você for mais velho você vai entender não coloca a mão na boca não esquece de escovar os dentes você já está muito crescidinho pra isso já comeu alguma coisa isso é hora de estar acordado dê um beijo na titia dê um abraço no seu irmão diz tchau para o amiguinho já passou da hora você precisa comer direito parece comigo quando eu era jovem só não esquece a cabeça porque tá grudada no pescoço me dê a mão para atravessar a rua será sempre o meu bebê não chegue tarde em casa querer não é poder tira isso da boca menina avise quando chegar não levante a voz comigo não foi isso que te ensinei tenha modos você não para quieta qual é a palavrinha mágica não é pra correr dentro de casa não vá dormir muito tarde chega de videogame por hoje se você não estudar não vai chegar em lugar nenhum você não é os outros eu te amo porque sim tira o dedo do nariz tanta gente com fome e você desperdiçando comida onde você estava com quem você vai sair que horas vai chegar em casa se colocar no prato vai ter que comer deus te abençoe e te guarde meu filho minha filha aconteceu alguma coisa você passa muito tempo no celular nem vai doer é só uma picadinha o gato comeu a sua língua como foi na escola estudou para a prova senta direito na volta a gente compra o que você quer ser quando você crescer pare de bancar o palhaço você ainda vai me matar de desgosto se apanhar na rua vai apanhar em dobro quando chegar em casa espera só sua mãe chegar o que você tem na cabeça não fale com estranhos deixe de ser bicho do mato já está pronta pra casar vou contar até três o que eu acabei de dizer não me faça voltar eu não quero ouvir um pio passa pra dentro você nem experimentou é como falar com a parede esse quarto parece um chiqueiro se eu for aí você vai ver quantas vezes eu tenho que perguntar não importa quem começou já mandei parar eu disse talvez se você perguntar de novo a resposta é não vai ser assim e pronto se comporte como uma mocinha rapazinho engole esse choro agora você vai aprender a me tratar que nem gente se eu for até aí e achar você me paga olha pra mim quando eu estiver falando com você você não é todo mundo espera só a gente chegar em casa quer me matar do coração você me respeite quebra mesmo não foi você que pagou não fez mais do que a sua obrigação eu não durmo à noite por sua causa quando eu morrer você vai me dar valor estou falando para o seu bem um dia você vai me agradecer um dia você vai ter filhos e vai entender

Bethânia Pires Amaro, em O ninho

terça-feira, 19 de novembro de 2024

O vento

O vento é um inveterado ledor de tabuletas. E, com toda aquela sua pressa, é exatamente o contrário do leitor apressado: não salta uma só que seja, não perde nenhuma delas, lê e passa — que o seu destino é passar —, mas guarda uma lembrança vertiginosa de todas, principalmente das verdes, das vermelhas, das de azul mais forte, sem esquecer, ó Van Gogh, as tabuletas amarelas...
Sabes? Passa no vento a alma dos pintores mortos, procurando captar, levar (para onde?) as cores deste mundo.
Que este mundo pode ser que não preste, mas é tão bom de ver!

Mário Quintana, em Caderno H

Xande Canta Caetano | Força Estranha

Níquel Náusea

Termópilas

Honra àqueles que Termópilas fixaram
em suas vidas para as defender.
Que, jamais se furtando à obrigação,
foram justos e retos nos seus atos,
mas condoídos, também, e compassivos;
generosos, quando ricos; quando pobres,
generosos ainda com seu pouco,
socorrendo a quem pudessem; proclamando
sempre a verdade, embora sem nutrir
ódio algum por aqueles que mentissem.

E de mais honra serão merecedores
se previram (como tantos o fizeram)
que Efialte finalmente há de surgir,
e que os medas finalmente passarão.

Konstantinos Kaváfis (tradução de José Paulo Paes)

Manhã


Não tive uma vez uma juventude amável, heroica, fabulosa, a ser narrada sobre folhas de ouro – muita sorte! Por que crime, por que erro, mereci minha fraqueza atual? Os que creem que os animais têm soluços de pena, que os doentes desesperam, que os mortos tenham maus sonhos, tratem de contar a minha queda e o meu sono. Eu não posso me explicar mais que o mendigo com seus contínuos Pater e Ave Maria. Não sei mais falar!
Porém hoje creio ter terminado o relato do meu inferno. Era o inferno; o velho, de que o filho do homem abriu as portas.
Do mesmo deserto, à mesma noite, sempre meus olhos cansados se abrem para a estrela de prata, sempre, sem que se comovam os reis da vida, os três magos, o coração, a alma, o espírito. Quando iremos, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da sabedoria nova, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição, adorar – os primeiros! – O Natal na terra!
O cântico dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos a vida.

Arthur Rimbaud, em Uma temporada no inferno seguido de Correspondência

Minhas páginas femininas

Há já bastante tempo, precisando de dinheiro, combinei com um jornal carioca que eu faria a página feminina: só que ela não seria assinada por mim, e sim por Ilka Soares. Além da vantagem para o jornal, convinha a ambas. Encarregaram-me pois da seção culinária, de beleza, de modas, e de conselhos destinados exclusivamente para a mulher, mulher de classe média.
Um dia destes, mexendo em papéis, encontrei algumas dessas páginas, e reli, por curiosidade, a parte de conselhos. E eis que de repente perguntei-me: por que não dar pelo menos em uma de minhas colunas aqui o endereço da mulher de classe média? Ela, suponho, também me lê às vezes.
Vejamos:
O título deste conselho era: “Você é mais bonita do que pensa”. E seguia-se assim: “Uma amiga disse brincando que é rara a mulher para quem esse título se adapta – na sua opinião a maioria das mulheres se acha linda, e que eu lhes faria um benefício se lhes dissesse: você é menos bonita do que pensa. Mas tenho certeza do contrário. Tenho visto que mesmo a mulher que tem, em matéria de beleza, o que se chama de sucesso, é uma mulher insegura. As outras, então, disfarçam como podem um sentimento que vai desde um mal-estar declarado e que as leva a um recolhimento de timidez e falta de alegria natural – até formas menos óbvias de insegurança. Não, não é fácil ser mulher.” E assim continuava eu, a grande conselheira.
Outro conselho tinha o título de “Acordar-se”:
Sonhar é bom, é como voar suspensa por balões. O problema é que um simples bodoque de criança, e os balões estouram. Se é verdade que do chão não se passa, também é verdade que quanto mais alto se está maior é a queda.
Não é por ser grande a queda que se evitará o grande gosto de subir. Mas subir em balões? Voar assim em autoenganos é muitas vezes melancólico.
Há vários modos de alçar-se em balões. Um destes consiste em cair em devaneios que levam longe e levam mal. E para voltar? A aterrissagem é difícil. Quando se dorme fora de hora, o despertar é meio ruim.
Outra variedade de subir em balões é a de não enfrentar os fatos e mentir-se sem cessar e já sem mesmo sentir. É bom mentir? Não encarar os fatos? Talvez, mas você nunca poderá enganar totalmente a si mesma. E em geral a mentira só fará evadir-se alguns centímetros.
Por que não tentar subir pelas escadas? É menos bonito, menos rápido. (Não falo da escada da Penha, que é caso raro.) Mas cada degrau alcançado ainda é a boa terra da realidade. Às vezes não ‘boa’, bem sei, mas é chão, é realidade. Em cada degrau alcançado se pode, inclusive, parar um pouco para descansar, sem por isso perder terreno ou bater com a cabeça no chão. ‘Também da escada se pode cair’, dirá você que não gosta de ser acordada. Bom, cair pode-se cair, todos sabem disso, sobretudo as crianças que nem por isso deixam de andar. Mas levante-se, então; as crianças também sabem disso.”
A um conselho dei o título de “Conselho bom, mas preguiçoso”: “Manter uma conversação? Não é tão difícil quanto parece. Se você souber ouvir, metade da tarefa estará feita. Não é somente esta a vantagem de saber ouvir. Tem-se além disso a oportunidade de aprender alguma coisa interessante.“
E se o interlocutor for desinteressante? Bem, nesse caso, desligue. Sempre há um modo de ouvir sem escutar, e enquanto isso pensar em algo melhor. Este conselho, na verdade pouco educado, só pode ser aplicado por pessoas espertíssimas na arte de dissimular. Exige grande prática, certa arte de manter um sorriso leve de quem ouve com prazer, mas ao mesmo tempo a capacidade de captar no ar, pela entonação de quem fala, a hora de parar de sorrir e tomar um ar compungido. Pensando melhor, este conselho é contraindicado para a maioria das pessoas.”
Bem, vou terminar aqui senão termino invadindo as seções das colegas. Para o que não fui contratada.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Genealogia da moral


PRÓLOGO

1. Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos — e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? Com razão alguém disse: “onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”. Nosso tesouro está onde estão as colmeias do nosso conhecimento. Estamos sempre a caminho delas, sendo por natureza criaturas aladas e coletoras do mel do espírito, tendo no coração apenas um propósito — levar algo “para casa”. Quanto ao mais da vida, as chamadas “vivências”, qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para elas? Nas experiências presentes, receio, estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso coração — para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser — ah! e contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” — para nós mesmos somos “homens do desconhecimento”…
2. Meus pensamentos sobre a origem de nossos preconceitos morais — tal é o tema deste escrito polêmico — tiveram sua expressão primeira, modesta e provisória na coletânea de aforismos que leva o título Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos livres, cuja redação foi iniciada em Sorrento, durante um inverno que me permitiu fazer uma parada, como faz um andarilho, e deitar os olhos sobre a terra vasta e perigosa que meu espírito percorrera até então. Isto aconteceu no inverno de 1876-7; os pensamentos mesmos são mais antigos. Já eram, no essencial, os mesmos que retomo nas dissertações seguintes — esperemos que o longo intervalo lhes tenha feito bem, que tenham ficado mais maduros, mais claros, fortes, perfeitos! O fato de que me atenho a eles ainda hoje, de que eles mesmos se mantenham juntos de modo sempre firme, crescendo e entrelaçando-se, isto fortalece em mim a feliz confiança em que não me tenham brotado de maneira isolada, fortuita, esporádica, mas a partir de uma raiz comum, de algo que comanda na profundeza, uma vontade fundamental de conhecimento que fala com determinação sempre maior, exigindo sempre maior precisão. Pois somente assim convém a um filósofo. Não temos o direito de atuar isoladamente em nada: não podemos errar isolados, nem isolados encontrar a verdade. Mas sim, com a necessidade com que uma árvore tem seus frutos, nascem em nós nossas ideias, nossos valores, nossos sins e nãos e ses e quês — todos relacionados e relativos uns aos outros, e testemunhas de uma vontade, uma saúde, um terreno, um sol. — Se vocês gostarão desses nossos frutos? — Mas que importa isso às árvores! Que importa isso a nós, filósofos!…
3. Por um escrúpulo que me é peculiar, e que confesso a contragosto — diz respeito à moral, a tudo o que até agora foi celebrado na terra como moral —, escrúpulo que surgiu tão cedo em minha vida, tão insolicitado, tão incontido, tão em contradição com ambiente, idade, exemplo, procedência, que eu quase poderia denominá-lo meu “a priori” — tanto minha curiosidade quanto minha suspeita deveriam logo deter-se na questãode onde se originam verdadeiramente nosso bem e nosso mal. De fato, já quando era um garoto de treze anos me perseguia o problema da origem do bem e do mal: a ele dediquei, numa idade em que se tem “o coração dividido entre brinquedos e Deus”, minha primeira brincadeira literária, meu primeiro exercício filosófico — quanto à “solução” que encontrei então, bem, rendi homenagem a Deus, como é justo, fazendo-o Pai do mal. Era isso o que exigia meu “a priori” de mim? Aquele novo e imoral, pelo menos imoralista “a priori”, e o “imperativo categórico” que nele falava, tão antikantiano, tão enigmático, ao qual desde então tenho dado atenção, e mais que atenção?... Por fortuna logo aprendi a separar o preconceito teológico do moral, e não mais busquei a origem do mal por trás do mundo. Alguma educação histórica e filológica, juntamente com um inato senso seletivo em questões psicológicas, em breve transformou meu problema em outro: sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? e que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? — Para isso encontrei e arrisquei respostas diversas, diferenciei épocas, povos, hierarquias dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas nasceram novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades: até que finalmente eu possuía um país meu, um chão próprio, um mundo silente, próspero, florescente, como um jardim secreto do qual ninguém suspeitasse... Oh, como somos felizes, nós, homens do conhecimento, desde que saibamos manter silêncio por algum tempo!…
4. O primeiro impulso para divulgar algumas das minhas hipóteses sobre a procedência da moral me foi dado por um livrinho claro, limpo e sagaz — e maroto —, no qual uma espécie contrária e perversa de hipótese genealógica, sua espécie propriamente inglesa, pela primeira vez me apareceu nitidamente, e que por isso me atraiu — com aquela força de atração que possui tudo o que é oposto e antípoda. O título do livrinho era A origem das impressões morais; seu autor, o dr. Paul Rée; o ano de seu aparecimento, 1877. Talvez eu jamais tenha lido algo a que dissesse “não” de tal modo, sentença por sentença, conclusão por conclusão, como a esse livro: sem traço de irritação ou impaciência, porém. Na obra acima mencionada, na qual trabalhava então, eu me refiro, oportuna e inoportunamente, às teses desse livro, não para refutá-las — que tenho eu a ver com refutações! — mas sim, como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro. Foi então que, como disse, pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre origens a que são dedicadas estas dissertações, de maneira canhestra, como seria o último a negar, ainda sem liberdade, sem linguagem própria para essas coisas próprias, e com recaídas e hesitações diversas. Confira-se, em particular, o que digo em Humano, demasiado humano (parágrafo 45) sobre a dupla pré-história do bem e do mal (a saber, na esfera dos nobres e na dos escravos); igualmente (§ 136) sobre valor e origem da moral ascética; igualmente (§ 96, 99, e vol. II, 89), sobre a “moralidade do costume”, aquela espécie de moral mais antiga e primordial, que difere toto coelo [diametralmente] do modo de valorizar altruísta (que o dr. Rée, como todos os genealogistas da moral ingleses, vê como o modo de valorar em si); igualmente (§ 92), O andarilho (§ 26), Aurora (§ 112), sobre a origem da justiça como um acerto entre poderosos mais ou menos iguais (o equilíbrio como pressuposto de todo contrato, portanto de todo direito); do mesmo modo, O andarilho (§ 22, 33), sobre a origem do castigo, ao qual a finalidade de intimidação não é essencial nem primordial (como pensa o dr. Rée — ela lhe é, isto sim, enxertada em determinadas circunstâncias, e sempre como algo acessório, adicionado).
5. No fundo interessava-me algo bem mais importante do que revolver hipóteses, minhas ou alheias, acerca da origem da moral (mais precisamente, isso me interessava apenas com vista a um fim para o qual era um meio entre muitos). Para mim, tratava-se do valor da moral — e nisso eu tinha de me defrontar sobretudo com o meu grande mestre Schopenhauer, ao qual aquele livro, a paixão e a secreta oposição daquele livro se dirigem, como a um contemporâneo (— também ele era um “escrito polêmico”). Tratava-se, em especial, do valor do “não-egoísmo”, dos instintos de compaixão, abnegação, sacrifício, que precisamente Schopenhauer havia dourado, divinizado, idealizado, por tão longo tempo que afinal eles lhe ficaram como “valores em si”, com base nos quais ele disse não à vida e a si mesmo. Mas precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim uma desconfiança cada vez mais radical, um ceticismo cada vez mais profundo! Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para a humanidade, sua mais sublime sedução e tentação — a quê? ao nada? —; precisamente nisso enxerguei o começo do fim, o ponto morto, o cansaço que olha para trás, a vontade que se volta contra a vida, a última doença anunciando-se terna e melancólica: eu compreendi a moral da compaixão, cada vez mais se alastrando, capturando e tornando doentes até mesmo os filósofos, como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietante cultura europeia; como o seu caminho sinuoso em direção a um novo budismo? a um budismo europeu? a um — niilismo?... Pois essa moderna preferência e superestimação da compaixão por parte dos filósofos é algo novo: justamente sobre o não-valor da compaixão os filósofos estavam até agora de acordo. Menciono apenas Platão, Spinoza, La Rochefoucauld e Kant, quatro espíritos tão diversos quanto possível um do outro, mas unânimes em um ponto: na pouca estima da compaixão. —
6. Este problema do valor da compaixão e da moral da compaixão (— eu sou um adversário do amolecimento moderno dos sentimentos —) à primeira vista parece ser algo isolado, uma interrogação à parte; mas quem neste ponto se detém, quem aqui aprende a questionar, a este sucederá o mesmo que ocorreu a mim — uma perspectiva imensa se abre para ele, uma nova possibilidade dele se apodera como uma vertigem, toda espécie de desconfiança, suspeita e temor salta adiante, cambaleia a crença na moral, em toda moral — por fim, uma nova exigência se faz ouvir. Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão — para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses “valores” como dado, como efetivo, como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário fosse a verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?…
7. Em suma, desde que para mim se abriu essa perspectiva, tive razões para olhar em torno, em busca de camaradas doutos, ousados e trabalhadores (ainda hoje olho). O objetivo é percorrer a imensa, longínqua e recôndita região da moral — da moral que realmente houve, que realmente se viveu — com novas perguntas, com novos olhos: isto não significa praticamente descobrir essa região?... Se para isso pensei no mencionado dr. Rée, entre outros, isto ocorreu por não duvidar que a natureza mesma das suas questões o levaria a métodos mais corretos para alcançar as respostas. Teria me enganado nisso? Meu desejo, em todo o caso, era dar a um olhar tão agudo e imparcial uma direção melhor, a direção da efetiva história da moral, prevenindo-o a tempo contra essas hipóteses inglesas que se perdem no azul. Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado moral humano! — O dr. Rée não sabia de sua existência; mas ele havia lido Darwin — e assim, em suas hipóteses, de maneira no mínimo divertida, a besta darwiniana e o moderníssimo, modesto fracote moral dão-se graciosamente as mãos, este com expressão de bondosa e refinada indolência no rosto, à qual se mistura inclusive um grão de pessimismo e de cansaço, como se não pagasse a pena levar todas essas coisas — os problemas da moral — tão a sério. A mim me parece, muito ao contrário, que não existem coisas que mais compensem serem levadas a sério; sua recompensa está, por exemplo, em que talvez se possa um dia levá-las na brincadeira, na jovialidade. Pois a jovialidade, ou, para dizê-lo com a minha linguagem, a gaia ciência, é uma recompensa: um pagamento por uma longa, valente, laboriosa e subterrânea seriedade, uma tal que, admito, não é para todos. No dia, porém, em que com todo o coração dissermos: “avante! também a nossa velha moral é coisa de comédia!” — teremos descoberto novas intrigas e possibilidades para o drama dionisíaco do “Destino da Alma”; e ele saberá utilizá-las, disso podemos ter certeza, ele, o grande, velho, eterno poeta-comediógrafo da nossa existência!…
8. Se este livro resultar incompreensível para alguém, ou dissonante aos seus ouvidos, a culpa, quero crer, não será necessariamente minha. Ele é bastante claro, supondo-se — e eu suponho — que se tenha lido minhas obras anteriores, com alguma aplicação na leitura: elas realmente não são fáceis. No que toca ao meu Zaratustra, por exemplo, não pode se gabar de conhecê-lo quem já não tenha sido profundamente ferido e profundamente encantado por cada palavra sua: só então poderá fruir o privilégio de participar, reverentemente, do elemento alciônico do qual se originou aquela obra, da sua luminosa claridade, distância, amplidão e certeza. Em outros casos, a forma aforística traz dificuldade: isto porque atualmente não lhe é dada suficiente importância. Bem cunhado e moldado, um aforismo não foi ainda “decifrado”, ao ser apenas lido: deve ter início, então, a sua interpretação, para a qual se requer uma arte da interpretação. Na terceira dissertação deste livro, ofereço um exemplo do que aqui denomino “interpretação”: a dissertação é precedida por um aforismo, do qual ela constitui o comentário. É certo que, a praticar desse modo a leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido — e que exigirá tempo, até que minhas obras sejam “legíveis” —, para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um “homem moderno”: o ruminar
Sils-Maria, Alta Engadina, julho de 1887

Friedrich Nietzsche, em Genealogia da moral

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

De Umbigo a Umbigo

Honra

O analista de Bagé se declara “freudiano de cola decalco” e “mais ortodoxo que Caximir Buquê”, mas isto não o impede de experimentar com novas formas de terapia. Como no caso da mulher do compadre Salustiano.
Contam que um dia o compadre Salustiano entrou no consultório, segundo o analista de Bagé, como mata-mosquito em convento. Causando alvoroço. Eles há tempo não se viam.
Guasca velho!
Cachorrão!
Índio bem loco!
Seu bosta!
Animal!
Desgraçado!
E se atiraram um nos braços do outro, com tanta força que a Lindaura veio ver se não tinha móvel quebrado. Depois o analista de Bagé mandou o amigo se deitar no divã e desembuchar, que era de graça. O Salustiano reagiu.
Epa. Ta me estranhando, compadre? O problema é com a Rosa Flor.
O que tem?
A Rosa Flor quer ir pro Rio.
Ir embora do Rio Grande? Mas enloqueceu.
Pos é. Diz que não aguenta mais vê campo. Quer ver o mar.
Mas ela não sabe que mar é igual a campo, com a desvantagem que afunda?
Sabe, mas não adianta. Aquela, quando decide ir pra um lugar, é como cachorro de cego. Só matando.
Escuta aqui, tchê. Tu deste um trancaço nela?
Dei trancaço, dei laço, cheguei até a pedi. Foi como mijá em incêndio.
Cosa, seu. Tu sabe que mulher que vai pro Rio já desce na rodoviária falada.
E não sei?
Me manda ela aqui.
A Rosa Flor, a princípio, não quis dizer nada. Ia para o Rio e pronto. O analista de Bagé abriu um volume do Freud para consulta. Era ali que guardava, numa folha de caderno de armazém, escritas a toco de lápis, as máximas do velho Adão, seu pai. Encontrou um precedente: “Pra amarrar cavalo no campo e mulher em casa, só carece de um pau firme.” Deitada no pelego, a Rosa Flor confirmou com a cabeça quando o analista perguntou, sutilmente, se o compadre não passava mais a linguiça na farinheira. Era verdade.
O analista botou uma mão na cabeça. Aquilo era a pior coisa que pode acontecer com um gaúcho, fora cair do cavalo ou a filha casar com nordestino.
Com a outra mão, começou a desabotoar a braguilha. Fazia qualquer coisa por um amigo.
Ficou combinado que a Rosa Flor teria sessões duas vezes por semana e desistiria daquela história de ir para o Rio, o compadre Salus tiano podia ficar descansado. A honra da Rosa Flor estava salva.

Luís Fernando Veríssimo, em O analista de Bagé

Fábrica do poema

In memoria de Donna Lina Bo Bardi

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo a fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbado
pelo mingau de almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afunda no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definia, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)

pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?

Waly Salomão, em Antologia Poética 

Anistia, por João Montanaro

O ciúme

Ela tinha a beleza tranquila da maturidade. Alguns fios de cabelo branco davam ao seu rosto um encanto especial. Bastava vê-la para adivinhar como teria sido quando jovem. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito distante.
O marido a observava de longe. Olhos que observam são aqueles que olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era o de um apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas, sorrisos. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita que o ser amado lhe esconde alguma coisa. Olha na esperança de ver o escondido, de entrar no segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua vigilância.
Há aquela modinha de Carlos Gomes, “quem sabe?”. É o monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando.

Tão longe de mim distante,
Onde irá, onde irá teu pensamento?

O seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele. Pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me diga “se inda é meu teu pensamento”.
Há os ciúmes mansos, que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e frequentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da pessoa amada, inclusive dos pensamentos dela. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora, para certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. O coito é coroação seguida de decapitação. Passado o êxtase, a dúvida volta. E, com ela, o tormento.
Ele a vigiava. Silenciosamente o felino a vigiava. Observava o seu rosto. Queria adivinhar os seus pensamentos. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se ele, o marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no livro, o marido não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido... O prazer acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.
Mas então algo aconteceu e o tranquilizou. A esposa teve câncer. Uma mulher cancerosa, dominada pela possibilidade da morte, é um pássaro de asas quebradas que não sonha nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não planeja voos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.
Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram leves – seu efêmero sentimento de posse se transformou num tranquilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.
Suspeito que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a pessoa amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela não seja de nenhum outro.
Mas há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento de todos os apaixonados.
A cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos, olhares... Marido e mulher se separam para se socializar com outras pessoas. Numa roda o marido conversa e ri, distraído. De repente vira o rosto e vê a mulher num outro grupo. Ela está virada para o outro lado, vestido branco, costas nuas. Como é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da roda. Todos os homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para o marido, é como se, naquele momento, ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele participe dela. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.
Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem para casa. Afinal de contas ele é um homem educado, que compreende os movimentos da alma.
O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Pode voar quando quiser.
Alguns ciumentos, tolos, acham que casamento é gaiola, que garantirá a posse do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. Nem mesmo a morte. O pássaro voa, o pássaro volta... Mas pode ser que voe e não volte…

Rubem Alves, em Cantos do Pássaro Encantado