quinta-feira, 17 de outubro de 2024
nada, esta espuma
Por
afrontamento do desejo
insisto
na maldade de escrever
mas
não sei se a deusa sobe à superfície
ou
apenas me castiga com seus uivos.
Da
amurada deste barco
quero
tanto os seios da sereia.
Ana Cristina Cesar, em Cenas de abril
O consciente e o inconsciente
Em
sua autobiografia, Jung conta um sonho impressionante (mas qual deles
não o é?). Achava-se em frente a uma casa de oração, sentado no
chão e na posição do lótus, quando notou a presença de um iogue
mergulhado em profunda meditação. Aproximou-se e viu que o rosto do
iogue era o seu. Aterrorizado, afastou-se, acordou e se pôs a
conjeturar: é ele aquele que medita; sonhou e eu sou o seu sonho.
Quando
ele despertar, eu já não existirei.
Rodericus Bartius, Los que son números y los que no lo son, em Livro de Sonhos, de Jorge Luis Borges
Banqueiro
Os que dizem que os banqueiros não perdem por esperar nunca ouviram falar em juros antecipados.
Millôr Fernandes, em A bíblia do caos
Cartas na Rua | SEIS
3
Mas
havia um pouco de ação. Um cara foi flagrado na mesma escadaria em
que eu tinha me trancado. Foi pego lá com a cabeça debaixo da saia
de uma garota. Então uma das garotas que trabalhava no refeitório
reclamou que não tinha sido paga conforme prometido, por um pouco de
sexo oral que ela tinha praticado com um gerente de seção e três
carteiros. Demitiram a garota e os três carteiros e rebaixaram o
gerente a supervisor.
Foi
quando botei fogo nos Correios.
Eu
havia sido mandado para as correspondências de quarta categoria e
estava fumando um charuto, tirando um maço de correspondências de
um carrinho quando um cara se aproximou e disse:
— EI,
SUAS CARTAS ESTÃO PEGANDO FOGO!
Olhei
em volta. Ali estava. Uma pequena chama começava a se erguer como
uma cobra bailarina. Evidentemente, um pouco de cinza em brasa do
charuto tinha caído ali antes.
— Puta
merda!
A
chama se alastrou depressa. Peguei um catálogo e, mantendo-o
esticado, bati sobre o foco. Faíscas voaram. Estava quente. Tão
logo apaguei uma parte, outra pegou fogo.
Escutei
uma voz:
— Ei!
Sinto cheiro de fogo!
— NÃO
SE SENTE CHEIRO DE FOGO — gritei —, SENTE-SE CHEIRO DE FUMAÇA!
— Acho
que vou dar o fora daqui!
— Foda-se,
então — gritei —, DÊ O FORA!
As
chamas queimavam minhas mãos. Eu tinha que salvar os Correios dos
Estados Unidos, todo aquele lixo de correspondências de quarta
classe.
Finalmente,
consegui controlar o incêndio. Usando o pé, empurrei a pilha
inteira de papéis para o chão e pisei no último foco de cinza
vermelha.
O
supervisor se aproximou para me dizer alguma coisa. Fiquei ali
parado, o catálogo queimado na mão, a esperá-lo. Ele me olhou e se
afastou.
Depois
disso, retomei a organização daquele lixo de correspondência de
quarta classe. Separava tudo que estivesse queimado.
Meu
charuto tinha morrido. Não voltei a acendê-lo.
Minhas
mãos começaram a doer e fui até o bebedor, coloquei-as debaixo
d’água. Não ajudou.
Encontrei
o supervisor e pedi-lhe uma dispensa para ir até a sala da
enfermeira.
Era
a mesma que costumava ir à minha porta perguntar:
— Qual
é o problema agora, sr. Chinaski?
Quando
entrei, ela disse a mesma coisa de novo.
— Lembra-se
de mim, não é? — perguntei.
— Ah,
sim, sei que o senhor teve umas noites realmente doentes.
— Ô
— eu disse.
— Ainda
há mulheres lá no seu apartamento? — perguntou.
— Sim.
Há homens no seu?
— Tudo
bem, sr. Chinaski, o que o traz aqui?
— Queimei
minhas mãos.
— Deixe
eu ver. Como queimou as mãos?
— Isso
importa? Elas estão queimadas.
Ela
começou a passar alguma coisa nas minhas mãos. Um de seus peitos
roçou em mim.
— Como
aconteceu, Henry?
— Charuto.
Eu estava parado perto de um carrinho da quarta classe. Deve ter
caído brasa ali dentro. As chamas subiram.
O
peito voltou a roçar em mim.
— Mantenha
suas mãos paradas, por favor!
Então
ela apoiou todo o flanco contra mim enquanto espalhava uma pomada em
minhas mãos. Eu estava sentado num banco.
— Qual
é o problema, Henry? Você parece nervoso.
— Bem...
você sabe como é, Martha.
— Meu
nome não é Martha. É Helen.
— Vamos
nos casar, Helen?
— O
quê?
— Quero
dizer, quando vou poder voltar a usar minhas mãos?
— Pode
usá-las agora mesmo se tiver vontade.
— O
quê?
— Quero
dizer, no trabalho.
Ela
as enrolou com umas gazes.
— Sinto-me
melhor — eu disse.
— Você
não devia queimar as cartas assim.
— Era
só lixo.
— Toda
correspondência é importante.
— Tudo
bem, Helen.
Ela
voltou à sua mesa e eu a segui. Preencheu a folha de dispensa.
Estava muito bonita em seu pequeno chapéu branco. Eu teria de
encontrar um jeito de voltar aqui.
Ela
me viu olhando para seu corpo.
— Muito
bem, sr. Chinaski, acho que é melhor o senhor ir agora.
— Ah,
sim... Bem, obrigado por tudo.
— Faz
parte do serviço.
— Claro.
Charles Bukowski, em Cartas na Rua
quarta-feira, 16 de outubro de 2024
luto por mim mesmo
a
luz se põe
em
cada átomo do universo
noite
absoluta
desse
mal a gente adoece
como
se cada átomo doesse
como
se fosse esta a última luta
o
estilo desta dor
é
clássico
dói
nos lugares certos
sem
deixar rastos
dói
longe dói perto
sem
deixar restos
dói
nos himalaias, nos interstícios
e
nos países baixos
uma
dor que goza
como
se doer fosse poesia
já
que tudo mais é prosa
Faça
os gestos certos,
o
destino vai ser teu aliado,
ouço
uma voz dizendo
do
fundo mais fundo do passado.
Hoje,
não faço nada direito,
que
é preciso muito mais peito
pra
fazer tudo de qualquer jeito.
Ai
do acaso,
se
não ficar do meu lado.
Paulo Leminski, em Toda Poesia
Dom Casmurro | Capítulo III
A
DENÚNCIA
Ia
a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e
escondi-me atrás da porta. A casa era a da rua de Mata-cavalos, o
mês novembro, o ano é que é um tanto remoto, mas eu não hei de
trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não
amam histórias velhas; o ano era de 1857.
– D.
Glória, a senhora persiste na ideia de meter o nosso Bentinho no
seminário? É mais que tempo, e já agora pode haver uma
dificuldade.
– Que
dificuldade?
– Uma
grande dificuldade.
Minha
mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de
concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por
mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa
ao pé, a gente do Pádua.– A gente do Pádua?
– Há
algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me
parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha
do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de
namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los.
– Não
acho. Metidos nos cantos?
– É
um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quase não
sai de lá. A pequena é uma desmiolada; o pai faz que não vê;
tomara ele que as coisas corressem de maneira que... Compreendo o seu
gesto; a senhora não crê em tais cálculos, parece-lhe que todos
têm a alma cândida…
– Mas,
Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada
que faça desconfiar. Basta a idade; Bentinho mal tem quinze anos.
Capitu fez quatorze à semana passada; são dois criançolas. Não se
esqueça que foram criados juntos, desde aquela grande enchente, há
dez anos, em que a família Pádua perdeu tanta coisa; daí vieram as
nossas relações. Pois eu hei de crer? ... Mano Cosme, você que
acha?
Tio
Cosme respondeu com um “Ora!” que, traduzido em vulgar, queria
dizer: “São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se,
eu divirto-me; onde está o gamão?”
– Sim,
creio que o senhor está enganado.
– Pode
ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei
senão depois de muito examinar…
– Em
todo caso, vai sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de
metê-lo no seminário quanto antes.
– Bem,
uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o
principal. Bentinho há de satisfazer os desejos de sua mãe. E
depois a igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que
um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o
Império…
– Governo
como a cara dele! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores
políticos.
– Perdão,
doutor, não estou defendendo ninguém, estou citando. O que eu quero
é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil.
– Você
o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao
pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a
dizer missa atrás das portas. Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo
necessidade de fazê-lo padre?
– É
promessa, há de cumprir-se.
– Sei
que você fez promessa... mas uma promessa assim... não sei... Creio
que, bem pensado... Você que acha, prima Justina?
– Eu?
– Verdade
é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que
sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é
isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é coisa de
lágrimas?
Minha
mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e
foi ter com ela. Seguiu-se um alto silêncio, durante o qual estive a
pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção...
Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima
Justina exortava: “Prima Glória! Prima Glória!” José Dias
desculpava-se: “Se soubesse, não teria falado, mas falei pela
veneração, pela estima, pelo afeto, para cumprir um dever amargo,
um dever amaríssimo...”
Machado de Assis, em Dom Casmurro
A leste do Éden | 2
[
1 ]
Tenho
que depender de rumores, de velhas fotografias, de histórias
contadas e de lembranças nebulosas misturadas com fábula para
tentar contar-lhes sobre os Hamilton. Não eram pessoas importantes e
existem poucos registros a seu respeito, exceto as costumeiras
certidões de nascimento, casamento, posse de terra e óbito.
O
jovem Samuel Hamilton veio do norte da Irlanda e sua mulher também.
Era filho de pequenos fazendeiros, nem ricos nem pobres, que viveram
numa terra arrendada e numa casa de pedra durante muitas centenas de
anos. Os Hamilton conseguiam ser notavelmente instruídos e versados;
e, como ocorre geralmente naquele país verde, eram ligados e
aparentados a pessoas muito importantes e a pessoas humildes, de modo
que um primo podia ser um baronete e outro primo, um mendigo. E
naturalmente descendiam dos antigos reis da Irlanda, como todo
irlandês descende.
Por
que Samuel deixou a casa de pedra e os verdes hectares dos seus
ancestrais, eu não sei. Nunca foi um homem político, então é
pouco provável que uma acusação de rebelião o tenha banido, e era
escrupulosamente honesto, o que elimina a polícia como o principal
agente da sua saída. Havia um murmúrio — não chegava a ser um
rumor, era mais um sentimento não declarado — na minha família de
que foi o amor que o fez partir, e não o amor da mulher que tinha
desposado. Mas se foi um amor bem-sucedido demais, ou se ele partiu
espicaçado por um amor não correspondido, eu não sei. Sempre
preferíamos pensar que foi a primeira hipótese. Samuel tinha uma
bela aparência, era encantador e alegre. É difícil imaginar que
qualquer jovem irlandesa do campo o recusasse.
Chegou
ao vale do Salinas exuberante e animado, cheio de invenções e
energia. Seus olhos eram muito azuis e quando estava cansado um deles
escapava um pouco para fora. Era um homem grandalhão, mas de certa
forma delicado. Na atividade empoeirada da fazenda, parecia sempre
imaculado. Suas mãos eram hábeis. Era um bom ferreiro, carpinteiro
e entalhador, e capaz de improvisar qualquer coisa com pedaços de
madeira e metal. Estava sempre inventando novas formas de se fazer
uma coisa velha e o fazia cada vez melhor e mais rápido, mas nunca
em toda a sua vida teve qualquer talento para ganhar dinheiro. Outros
homens que tinham talento para isso pegavam as ideias de Samuel, as
vendiam e ficavam ricos, mas Samuel mal chegou a ganhar salário na
vida inteira.
Não
sei o que orientou seus passos para o vale do Salinas. Era um lugar
pouco promissor para um homem de um país verde, mas ele chegou cerca
de trinta anos antes da virada do século e trouxe consigo sua
pequenina esposa irlandesa, uma mulherzinha tensa e dura como o humor
de uma galinha. Tinha uma mentalidade presbiteriana austera e um
código moral que proibia e tirava a graça de tudo o que era
prazeroso.
Não
sei onde Samuel a conheceu, como a cortejou e desposou. Acho que
devia ter outra jovem gravada em algum lugar do seu coração, pois
era um homem de amor e sua esposa não era uma mulher de demonstrar
sentimentos. E, apesar disso, em todos os anos da sua juventude até
a sua morte no vale do Salinas, nunca houve nenhum sinal de que
Samuel tivesse procurado outra mulher.
Quando
Samuel e Liza chegaram ao vale do Salinas toda a terra plana estava
tomada, o solo rico, as pequenas pregas férteis nos morros, as
florestas, mas ainda havia terra marginal a ser cultivada e, nas
colinas nuas a leste do que é hoje King City, Samuel Hamilton
cultivou.
Seguiu
a prática habitual. Tomou um lote que o governo concedia para si
mesmo e outro para sua mulher e, como ela estava grávida, tomou
outro lote para a criança. Ao longo dos anos, nove crianças
nasceram, quatro meninos e cinco meninas, e a cada nascimento outro
lote era acrescido ao rancho, que assim chegou a onze lotes, ou
setecentos e doze hectares.
Se
a terra fosse boa, os Hamilton teriam ficado ricos. Mas os hectares
eram ásperos e secos. Não havia fontes de água e a crosta do solo
era tão fina que pedaços de pedra apareciam à superfície. Até a
artemísia lutava para existir e os carvalhos ficavam nanicos por
falta de umidade. Mesmo nos anos relativamente bons havia tão pouco
pasto que o gado ficava magro de tanto rodar em busca de algo para
comer. Das suas colinas áridas, os Hamilton podiam avistar no oeste
a riqueza das terras planas e as áreas verdejantes ao redor do rio
Salinas.
Samuel
construiu sua casa com as próprias mãos e construiu também um
celeiro e uma ferraria. Descobriu em pouco tempo que mesmo que
tivesse cinco mil hectares de terra de encosta não conseguiria viver
do solo esquelético sem água. Suas mãos hábeis construíram uma
sonda de perfuração e ele cavava poços nas terras dos homens com
mais sorte. Inventou e construiu uma debulhadora e corria as fazendas
da planície na época da colheita, debulhando o grão que sua
própria fazenda não dava. E na sua ferraria afiava arados,
consertava charruas, soldava eixos quebrados e botava ferradura em
cavalos. Homens de toda a região traziam-lhe ferramentas para
consertar e aperfeiçoar. Além do mais, gostavam de ouvir Samuel
falar do mundo e do seu pensamento, da poesia e da filosofia que
existiam fora do vale do Salinas. Ele tinha uma voz rica e grave, boa
para cantar e para falar, e embora não tivesse sotaque irlandês
havia uma ondulação, um canto e uma cadência na sua fala que a
tornavam doce aos ouvidos dos taciturnos fazendeiros do vale. Eles
também traziam uísque e, fora da visão da janela da cozinha e do
olho reprovador da sra. Hamilton, tomavam goles ardentes da garrafa e
mordiam nacos de anis verde selvagem para disfarçar o bafo de
uísque. Era um dia ruim quando não havia três ou quatro homens de
pé em torno da forja, ouvindo o malho e a conversa de Samuel.
Chamavam-no de gênio cômico e levavam suas histórias
cuidadosamente para casa, mas se perguntavam como as histórias
podiam se perder pelo caminho, porque nunca soavam iguais se
repetidas em suas próprias cozinhas.
Samuel
devia ter ficado rico com o seu perfurador de poços, sua debulhadora
e sua ferraria, mas ele não tinha tino para negócios. Seus
fregueses, sempre com dinheiro apertado, prometiam pagar depois da
colheita e então depois do Natal e então depois — até que
finalmente se esqueciam. Samuel não tinha nenhum jeito para
lembrá-los da dívida. E assim os Hamilton continuavam pobres.
Os
filhos vieram tão regularmente como os anos. Os poucos médicos
sobrecarregados do condado não iam com frequência aos ranchos para
um parto, a não ser que a alegria se transformasse num pesadelo e
prosseguisse por vários dias. Samuel Hamilton fez o parto de todos
os seus filhos, deu um nó preciso nos cordões umbilicais, os
tapinhas no bumbum e limpou a bagunça. Quando o primogênito nasceu
com uma pequena obstrução respiratória e começou a ficar roxo,
Samuel colou sua boca na da criança, soprou ar dentro dela e sugou o
ar até que o bebê conseguisse respirar sozinho. As mãos de Samuel
eram tão boas e suaves que vizinhos num raio de trinta quilômetros
o chamavam para ajudar nos partos. E ele era igualmente bom com égua,
vaca ou mulher.
Samuel
tinha um grande livro preto numa estante à mão, com letras douradas
na capa — Medicina da Família do Dr. Gunn. Algumas páginas
estavam dobradas e surradas pelo uso, e outras nunca haviam sido
expostas à luz. Folhear o Dr. Gunn é conhecer a história médica
dos Hamilton. Estes são os capítulos mais consultados: ossos
quebrados, cortes, contusões, caxumba, sarampo, dor de coluna,
escarlatina, difteria, reumatismo, males femininos, hérnia e,
naturalmente, tudo o que tivesse a ver com gravidez e parto. Os
Hamilton deviam ser afortunados ou moralistas porque as páginas
sobre gonorreia e sífilis nunca foram abertas.
Não
existia ninguém como Samuel para acalmar a histeria e aquietar uma
criança assustada. Era a doçura da sua língua e a ternura de sua
alma. Assim como havia limpeza em seu corpo, havia também uma
limpeza no seu pensamento. Homens que vinham à sua ferraria, para
falar e ouvir, deixavam de lado os palavrões por um tempo, não por
se sentirem restringidos, mas automaticamente, como se não fosse um
lugar para aquilo.
Samuel
sempre manteve um ar distante. Talvez fosse a cadência da sua fala e
isso tivesse o efeito de levar homens e mulheres também a lhe contar
coisas que não contariam a parentes ou amigos íntimos. Sua ligeira
estranheza o distinguia e fazia dele um repositório seguro.
Liza
Hamilton era uma irlandesa de uma cepa muito diferente. Sua cabeça
era pequena e redonda e guardava pequenas convicções redondas.
Tinha um nariz em forma de botão e um queixo pequeno e recuado, um
maxilar duro e resoluto capaz de desafiar até a vontade dos anjos de
Deus.
Liza
era uma boa cozinheira no trivial e sua casa — era sempre sua casa
— era varrida, espanada e lavada. Parir os filhos não interferia
muito na sua atividade — precisava só se cuidar durante duas
semanas, no máximo. Devia ter a ossatura pélvica de uma baleia,
pois deu à luz bebês grandes um após o outro.
Liza
tinha uma noção muito elaborada do pecado. O ócio era um pecado,
assim como jogar cartas, que era um tipo de ócio para ela.
Desconfiava de qualquer tipo de diversão, fosse dançar ou cantar ou
até mesmo gargalhar. Achava que as pessoas que se divertiam estavam
expostas ao diabo. E isso era uma pena, pois Samuel sempre foi um
homem chegado a risadas, mas acho que Samuel estava escancarado para
o demônio. Sua mulher o protegia sempre que podia.
Usava
os cabelos sempre puxados para trás e amarrados num coque. E, como
não consigo me lembrar do seu modo de vestir, deve ser porque usava
roupas que combinavam exatamente com a sua personalidade. Não tinha
nenhuma centelha de humor e apenas ocasionalmente uma lâmina de
ironia. Assustava os netos porque não tinha nenhuma fraqueza.
Atravessou a vida sofrendo bravamente sem se queixar, convencida de
que era assim que Deus queria que todos vivessem. Sentia que as
recompensas viriam depois.
John Steinbeck, em A leste do Éden
terça-feira, 15 de outubro de 2024
Cabrito Montês
“O
senhor mesmo sabe. E, se sabe, me entende...” Tudo indica
que o Riobaldo, numa outra encarnação, estudou filosofia com
Platão. Os dois, Lobato e Nietzsche, tinham a mesma coisa na alma.
Eles, ambos, amavam as crianças. Não esse amor bobo, as crianças
umas gracinhas, tolinhas, com quem se fala só por meio de
diminutivos idiotas: tem dois aninhos, vai tomar sopinha, vai pôr
roupinha. Levavam as crianças a sério. Concordavam com a opinião
de Bernardo Soares, que notava a “diferença hedionda entre a
inteligência das crianças e a estupidez dos adultos”. Num
momento de desânimo ante a incompreensão dos adultos, Nietzsche
escreveu: “Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam,
ao lado da parede em ruínas, entre os espinhos e as papoulas
vermelhas. Para as crianças eu sou ainda um sábio, e também para
os espinhos e as papoulas vermelhas”.
Nietzsche
escrevia para educar. Mas tinha horror às escolas. Nas escolas se
formam os rebanhos de ovelhas, todas balindo igual, todas pensando
igual. Ovelha que balisse diferente, que pensasse diferente, ia para
o manicômio ou era reprovada. Morreria de rir se tivesse tido a
felicidade de ler a Adélia Prado: “Escola é uma coisa sarnenta.
Fosse terrorista, raptava era diretor de escola e dentro de três
dias amarrava no formigueiro, se não aceitasse minhas condições.
Quando acabarem as escolas quero nascer outra vez”.
Escola
é máquina de destruir crianças. Nas escolas, as crianças são
transformadas em adultos. É isso que todos os pais querem: que seus
filhos sejam adultos produtivos. O destino de uma criança é
conseguir entrar no mercado de trabalho.
Nietzsche
andava na direção contrária... Não era ovelha de rebanho. Era
cabrito montês que andava sozinho nas rochas. Criança não é meio
para se chegar ao adulto. Criança é fim, o lugar onde todo adulto
deve chegar. Zaratustra tinha 30 anos de idade quando deixou sua casa
e o lago de sua casa e subiu para a solidão das montanhas. Chegou um
dia, entretanto, em que ele se sentiu como fonte transbordante. E
então teve saudades dos homens. Desejou que eles bebessem da sua
água. E assim começou a descer. Sua descida passava por uma
floresta, a mesma por que passara dez anos antes. Dez anos antes ele
se encontrara com um eremita. E agora se encontrava com o mesmo
eremita, que se espantou ao vê-lo: “Esse caminhante não me é
estranho; muitos anos atrás ele passou por esse caminho. Ele se
chamava Zaratustra. Mas ele mudou. Naquele tempo tu levavas tuas
cinzas para as montanhas; e agora tu levas teu fogo para os vales?
Não tens medo de ser punido como incendiário?... Zaratustra mudou,
Zaratustra se transformou numa criança, Zaratustra é um iluminado”.
De
fato, o jequitibá é maravilhoso, muito alto, muito velho. No galho
de um jequitibá se pode pendurar um balanço. Mas a criança de
Nietzsche é mais maravilhosa que o jequitibá. Que são a altura e a
idade de uma árvore comparados ao momento efêmero de uma criança
que balança no balanço? Bolha de sabão...
Rubem Alves, em Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
Royal flush
Reverências
à Dama de Copas,
que ousa andar de coração a mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas,
em vez de paus e pedras enfeitadas,
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelho;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, tomba a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta das cartas da canastra.
que ousa andar de coração a mostra,
leva flores nas mãos em vez de espadas,
em vez de paus e pedras enfeitadas,
que ostenta rubra uma paixão exposta.
Transita arfante pelos naipes
à procura de seu rei vermelho;
ao encontrá-lo, se queda de joelhos
férvida, túrgida, convulsa,
invade o castelo, tomba a pilastra,
pinta os quatro ases de amarelo.
Rainha absoluta das cartas da canastra.
Flora Figueiredo, em Amor a céu aberto
Os Nascimentos | 1547 – Valparaíso
A
despedida
Zunem
as moscas entre os restos do banquete. Nem o muito vinho nem o bom
sol adormecem os comilões. Esta manhã, os corações batem
apressados. Debaixo da folhagem, frente ao mar, Pedro de Valdívia
diz adeus aos que vão partir. No fim de tanta guerra e fome nas
terras bravias do Chile, quinze de seus homens se dispõem a
regressar à Espanha. Alguma lágrima roda quando Valdívia recorda
os anos passados juntos, as cidades nascidas do nada, os índios
domados pelo ferro das lanças:
– Não
me sobra outro consolo – se inflama no discurso – além de
entender que vais descansar e gozar o que bem merecido tem, e isso
alivia, em parte pelo menos, o meu penar.
Não
longe da praia, as ondas acalantam o navio que os levam ao Peru. De
lá, viajarão ao Panamá; através do Panamá, ao outro mar, e
depois... Será longo, mas o que estica as pernas sente que já está
pisando as pedras do cais de Sevilha. A bagagem, roupa e ouro, está
na coberta desde a noite anterior. Três mil pesos de ouro levará do
Chile o escrivão Juan Pinel. Com seu maço de papéis, uma pluma de
ave e um tinteiro, seguiu Valdívia como uma sombra, dando fé de
cada um de seus passos e força de lei a cada um de seus atos. Várias
vezes roçou a morte. Esta fortuninha sobrará para remediar a sorte
das filhas donzelas que esperam pelo escrivão Pinel na distante
Espanha.
Estão
os soldados sonhando em voz alta, quando de repente alguém dá um
pulo e pergunta:
– E
Valdívia? Onde está Valdívia?
Todos
se precipitam para a beira do mar. Saltam, gritam, erguem os punhos.
Valdívia
aparece, cada vez menor. Lá vai, remando o único bote, rumo ao
navio carregado do ouro de todos.
Na
praia de Valparaíso, as maldições e as ameaças soam mais forte
que o barulho das ondas.
As
velas se inflam e se afastam rumo ao Peru. Vai-se Valdívia em busca
de seu título de governador do Chile. Com o ouro que leva e o brio
de seus braços, espera convencer os que mandam em Lima.
No
alto de um rochedo, o escrivão Juan Pinel aperta a cabeça e ri sem
parar. Morrerão virgens as suas filhas na Espanha. Alguns choram,
vermelhos de raiva; e o corneteiro Alonso de Torres desafina uma
velha melodia e depois arrebenta seu clarim, que é o que lhe restou.
Eduardo Galeano, em Os Nascimentos
Prefácio Interessantíssimo
Dans
mon pays de fiel et d’or
j’en
suis la loi.
E.
Verhaeren
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
•
Este
prefácio, apesar de interessante, inútil.
•
Alguns
dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis
ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões,
confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido
explicar o que, antes de ler, já não aceitou.
•
Quando
sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu
inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como
para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio
interessantíssimo.
•
Aliás
muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde
principia a seriedade. Nem eu sei.
•
E
desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos
atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só
vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria
hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda
não compreende bem.
•
Livro
evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o
Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova,
filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes
elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como
Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres,
do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são
bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia
catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia...
“tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e
efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista,
confesso.
•
“Este
Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e
incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo
autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se
apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos
profetas”. Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá.
Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta;
julguei mais conveniente apresentar-me como louco.
•
Você
já leu São João Evangelista? Walt Whitman? Mallarmé? Verhaeren?
•
Perto
de dez anos metrifiquei, rimei. Exemplo?
Artista
O
meu desejo é ser pintor – Lionardo,
cujo
ideal em piedades se acrisola;
fazendo
abrir-se ao mundo a ampla corola
do
sonho ilustre que em meu peito guardo...
Meu
anseio é, trazendo ao fundo pardo
da
vida, a cor da veneziana escola,
dar
tons de rosa e de ouro, por esmola,
a
quanto houver de penedia ou cardo.
Quando
encontrar o manancial das tintas
e
os pincéis exaltados com que pintas,
Veronese!
teus quadros e teus frisos,
irei
morar onde as Desgraças moram;
e
viverei de colorir sorrisos
nos
lábios dos que imprecam ou que choram!
•
Os
srs. Laurindo de Brito, Martins Fontes, Paulo Setúbal, embora não
tenham evidentemente a envergadura de Vicente de Carvalho ou de
Francisca Júlia, publicam seus versos. E fazem muito bem. Podia,
como eles, publicar meus versos metrificados.
•
Não
sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de
contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista,
errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que
saísse. Tal foi o escândalo, que desejei a morte do mundo. Era
vaidoso. Quis sair da obscuridade. Hoje tenho orgulho. Não me
pesaria reentrar na obscuridade. Pensei que se discutiriam minhas
ideias (que nem são minhas): discutiram minhas intenções. Já
agora não me calo. Tanto ridicularizariam meu silêncio como esta
grita. Andarei a vida de braços no ar, como o Indiferente de
Watteau.
•
“Alguns
leitores ao lerem estas frases (poesia citada) não compreenderam
logo. Creio mesmo que é impossível compreender inteiramente à
primeira leitura pensamentos assim esquematizados sem uma certa
prática. Nem é nisso que um poeta pode queixar-se dos seus
leitores. No que estes se tornam condenáveis é em não pensar que
um autor que assina não escreve asnidades pelo simples prazer de
experimentar tinta; e que, sob essa extravagância aparente havia um
sentido porventura interessantíssimo, que havia qualquer coisa por
compreender”. João Epstein.
•
Há
neste mundo um senhor chamado Zdislas Milner. Entretanto escreveu
isto: “O fato duma obra se afastar de preceitos e regras
aprendidas, não dá a medida do seu valor”. Perdoe-me dar algum
valor a meu livro. Não há pai que, sendo pai, abandone o filho
corcunda que se afoga, para salvar o lindo herdeiro do vizinho. A
ama-de-leite do conto foi uma grandíssima cabotina desnaturada.
•
Todo
escritor acredita na valia do que escreve. Se mostra é por vaidade.
Se não mostra é por vaidade também.
•
Não
fujo do ridículo. Tenho companheiros ilustres.
•
O
ridículo é muitas vezes subjetivo. Independe do maior ou menor alvo
de quem o sofre. Criamo-lo para vestir com ele quem fere nosso
orgulho, ignorância, esterilidade.
•
Um
pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente,
acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são
versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com
acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados
da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro. Uso
de cachimbo...
•
A
inspiração é fugaz, violenta. Qualquer empecilho a perturba e
mesmo emudece. Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não
consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para
avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece,
caia e se fira. Arte é mondar mais tarde o poema de repetições
fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis
ou inexpressivos.
•
Que
Arte não seja porém limpar versos de exageros coloridos. Exagero:
símbolo sempre novo da vida como do sonho. Por ele vida e sonho se
irmanam. E, consciente, não é defeito, mas meio legítimo de
expressão.
•
“O
vento senta no ombro das tuas velas!” Shakespeare. Homero já
escrevera que a terra mugia debaixo dos pés de homens e cavalos. Mas
você deve saber que há milhões de exageros na obra dos mestres.
•
Taine
disse que o ideal dum artista consiste em “apresentar, mais que os
próprios objetos, completa e claramente qualquer característica
essencial e saliente deles, por meio de alterações sistemáticas
das relações naturais entre as suas partes, de modo a tornar essa
característica mais visível e dominadora”. O sr. Luís Carlos,
porém, reconheço que tem o direito de citar o mesmo em defesa das
suas “Colunas”.
•
Já
raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo
horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de
certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os
tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o
artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de
belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com
grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da
beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro
dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu
Emílio Bayard: “O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver.
Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da
feiura. O artista sublima tudo”.
•
Belo
da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de
moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a
eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir
natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora
consciente (Rafael das Madonas, Rodin
do Balzac, Beethoven
da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora
inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza.
Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto
mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram
o que quiserem. Pouco me importa.
•
Nossos
sentidos são frágeis. A percepção das coisas exteriores é fraca,
prejudicada por mil véus, provenientes das nossas taras físicas e
morais: doenças, preconceitos, indisposições, antipatias,
ignorâncias, hereditariedade, circunstâncias de tempo, de lugar,
etc... Só idealmente podemos conceber os objetos como os atos na sua
inteireza bela ou feia. A arte que, mesmo tirando os seus temas do
mundo objetivo, desenvolve-se em comparações afastadas, exageradas,
sem exatidão aparente, ou indica os objetos, como um universal, sem
delimitação qualificativa nenhuma, tem o poder de nos conduzir a
essa idealização livre, musical. Esta idealização livre,
subjetiva, permite criar todo um ambiente de realidades ideais onde
sentimentos, seres e coisas, belezas e defeitos se apresentam na sua
plenitude heroica, que ultrapassa a defeituosa percepção dos
sentidos. Não sei que futurismo pode existir em quem quase perfilha
a concepção estética de Fichte. Fujamos da natureza! Só assim a
arte não se ressentirá da ridícula fraqueza da fotografia...
colorida.
•
Não
acho mais graça nenhuma nisso da gente submeter comoções a um
leito de Procusto para que obtenham, em ritmo convencional, número
convencional de sílabas. Já, primeiro livro, usei indiferentemente,
sem obrigação de retorno periódico, os diversos metros pares.
Agora liberto-me também desse preconceito. Adquiro outros. Razão
para que me insultem?
•
Mas
não desdenho balouços dançarinos de redondilhas e decassílabos.
Acontece a comoção caber neles. Entram pois às vezes no cabaré
rítmico dos meus versos. Nesta questão de metros não sou aliado;
sou como a Argentina: enriqueço-me.
•
Sobre
a ordem? Repugna-me, com efeito, o que Musset chamou: “L’art de
servir à point un dénouement bien cuit”.
•
Existe
a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas,
dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores
que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se
lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada
dos elementos.
•
Quem
leciona História do Brasil obedecerá a uma ordem que, certo, não
consiste em estudar a guerra do Paraguai antes do ilustre acaso de
Pedro Álvares. Quem canta seu subconsciente seguirá a ordem
imprevista das comoções, das associações de imagens, dos contatos
exteriores. Acontece que o tema às vezes descaminha. • O impulso
lírico clama dentro de nós como turba enfuriada. Seria
engraçadíssimo que a esta se dissesse: “Alto lá! Cada qual berre
por sua vez; e quem tiver o argumento mais forte, guarde-o para o
fim!” A turba é confusão aparente. Quem souber afastar-se
idealmente dela, verá o imponente desenvolver-se dessa alma
coletiva, falando a retórica exata das reivindicações.
•
Minhas
reivindicações? Liberdade. Uso dela; não abuso. Sei embridá-la
nas minhas verdades filosóficas e religiosas; porque verdades
filosóficas, religiosas, não são convencionais como a Arte, são
verdades. Tanto não abuso! Não pretendo obrigar ninguém a
seguir-me. Costumo andar sozinho.
•
Virgílio,
Homero, não usaram rima. Virgílio, Homero, têm assonâncias
admiráveis. • A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E
possui o admirabilíssimo “ão”.
•
Marinetti
foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo,
simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha
como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar
poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é
grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros.
•
Sei
construir teorias engenhosas. Quer ver?
A
poética está muito mais atrasada que a música. Esta abandonou,
talvez mesmo antes do século 8, o regime da melodia quando muito
oitavada, para enriquecer-se com os infinitos recursos da harmonia. A
poética, com rara exceção até meados do século 19 francês, foi
essencialmente melódica. Chamo de verso melódico o mesmo que
melodia musical: arabesco horizontal de vozes (sons) consecutivas,
contendo pensamento inteligível.
Ora,
se em vez de unicamente usar versos melódicos horizontais:
“Mnezarete,
a divina, a pálida Frineia,
Comparece
ante a austera e rígida assembleia
Do
Areópago supremo...”
fizermos
que se sigam palavras sem ligação imediata entre si: estas
palavras, pelo fato mesmo de se não seguirem intelectual,
gramaticalmente, se sobrepõem umas às outras, para a nossa
sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias.
Explico
melhor:
Harmonia:
combinação de sons simultâneos. Exemplo:
“Arroubos...
Lutas... Setas... Cantigas... Povoar!...”
Estas
palavras não se ligam. Não formam enumeração. Cada uma é frase,
período elíptico, reduzido ao mínimo telegráfico. Se pronuncio
“Arroubos”, como não faz parte de frase (melodia), a palavra
chama a atenção para seu insulamento e fica vibrando, à espera
duma frase que lhe faça adquirir significado e QUE NÃO VEM.
“Lutas” não dá conclusão alguma a “Arroubos”; e, nas
mesmas condições, não fazendo esquecer a primeira palavra, fica
vibrando com ela. As outras vozes fazem o mesmo. Assim: em vez de
melodia (frase gramatical) temos acorde arpejado, harmonia, – o
verso harmônico. Mas, se em vez de usar só palavras soltas, uso
frases soltas: mesma sensação de superposição, não já de
palavras (notas) mas de frases (melodias). Portanto: polifonia
poética. Assim, em Pauliceia desvairada usam-se o verso
melódico:
“São
Paulo é um palco de bailados russos”;
o
verso harmônico:
“A
cainçalha... A Bolsa... As jogatinas...”;
e
a polifonia poética (um e às vezes dois e mesmo mais versos
consecutivos):
“A
engrenagem trepida... A bruma neva...”
Que
tal? Não se esqueça porém que outro virá destruir tudo isto que
construí.
Para
ajuntar à teoria:
1º
Os
gênios poéticos do passado conseguiram dar maior interesse ao verso
melódico, não só criando-o mais belo, como fazendo-o mais variado,
mais comotivo, mais imprevisto. Alguns mesmo conseguiram formar
harmonias, por vezes ricas. Harmonias porém inconscientes,
esporádicas. Provo inconsciência: Victor Hugo, muita vez harmônico,
exclamou depois de ouvir o quarteto do Rigoletto: “Façam
que possa combinar simultaneamente várias frases e verão de que sou
capaz”. Encontro anedota em Galli, Estética musical. Se non
é vero...
2º
Há
certas figuras de retórica em que podemos ver embrião da harmonia
oral, como na lição das sinfonias de Pitágoras encontramos germe
da harmonia musical. Antítese – genuína dissonância. E se tão
apreciada é justo porque poetas como músicos, sempre sentiram o
grande encanto da dissonância, de que fala G. Migot.
3º
Comentário
à frase de Hugo. Harmonia oral não se realiza, como a musical, nos
sentidos, porque palavras não se fundem como sons, antes
baralham-se, tornam-se incompreensíveis. A realização da harmonia
poética efetua-se na inteligência. A compreensão das artes do
tempo nunca é imediata, mas mediata. Na arte do tempo coordenamos
atos de memória consecutivos, que assimilamos num todo final. Este
todo, resultante de estados de consciência sucessivos, dá a
compreensão final, completa da música, poesia, dança terminada.
Victor Hugo errou querendo realizar objetivamente o que se realiza
subjetivamente, dentro de nós.
4º
Os
psicólogos não admitirão a teoria... É responder-lhes com o
Só-quem-ama de Bilac. Ou com os versos de Heine de que Bilac
tirou o Só-quem-ama. Entretanto: se você já teve por acaso
na vida um acontecimento forte, imprevisto (já teve, naturalmente)
recorde-se do tumulto desordenado das muitas ideias que nesse momento
lhe tumultuaram no cérebro. Essas ideias, reduzidas ao mínimo
telegráfico da palavra, não se continuavam, porque não faziam
parte de frase alguma, não tinham resposta, solução, continuidade.
Vibravam, ressoavam, amontoavam-se, sobrepunham-se. Sem ligação,
sem concordância aparente – embora nascidas do mesmo acontecimento
– formavam, pela sucessão rapidíssima, verdadeira simultaneidade,
verdadeiras harmonias acompanhando a melodia enérgica e larga do
acontecimento.
5º
Bilac,
Tarde, é muitas vezes tentativa de harmonia poética. Daí,
em parte ao menos, o estilo novo do livro. Descobriu, para a língua
brasileira, a harmonia poética, antes dele empregada raramente
(Gonçalves Dias, genialmente, na cena da luta, I-Juca-Pirama).
O defeito de Bilac foi não metodizar o invento; tirar dele todas as
consequências. Explica-se historicamente seu defeito: Tarde é
um apogeu. As decadências não vêm depois dos apogeus. O apogeu já
é decadência, porque sendo estagnação não pode conter em si um
progresso, uma evolução ascensional. Bilac representa uma fase
destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa
destruição. Imagino o seu susto, leitor, lendo isto. Não tenho
tempo para explicar: estude, se quiser. O nosso primitivismo
representa uma nova fase construtiva. A nós compete esquematizar,
metodizar as lições do passado. Volto ao poeta. Ele fez como os
criadores do organum medieval: aceitou harmonias de quartas e de
quintas desprezando terceiras, sextas, todos os demais intervalos. O
número das suas harmonias é muito restrito. Assim, “[...] o ar e
o chão, a fauna e a flora, a erva e o pássaro, a pedra e o tronco,
os ninhos e a hera, a água e o réptil, a folha e o inseto, a flor e
a fera” dá impressão duma longa, monótona série de quintas
medievais, fastidiosa, excessiva, inútil, incapaz de sugestionar o
ouvinte e dar-lhe a sensação do crepúsculo na mata.[48]
•
Lirismo:
estado afetivo sublime – vizinho da sublime loucura. Preocupação
de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo
objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus
melhores versos. Rostand por exemplo; e, entre nós, mais ou menos, o
sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus melhores
versos. Melhor do que isso não posso fazer.
•
Ribot
disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela
atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa
atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim
aquele não escorcha e esmiúça friamente o momento lírico; e
bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.
•
“A
linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite”.
Renan.
•
“Entre
o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do
artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as
possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente”. De
Wagner.
•
Você
está reparando de que maneira costumo andar sozinho...
•
Dom
Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra
do Consciente, é inspecionado pela visita médica, a Inteligência,
que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa
espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo
sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a
denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina
obrigatória
•
Parece
que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me
desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista. Que quer
você? Consigo passar minhas sedas sem pagar direitos. Mas é
psicologicamente impossível livrar-me das injeções e dos tônicos.
•
A
gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que
meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de
línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...
•
Você
perceberá com facilidade que se na minha poesia a gramática às
vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio
interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos:
paisagem do meu eu profundo.
•
Pronomes?
Escrevo brasileiro. Se uso ortografia portuguesa é porque, não
alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
•
Escrever
arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual
no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se estas
palavras frequentam-me o livro não é porque pense com elas escrever
moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão
de ser.
•
Sei
mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu
ou na Lusitânia de Nun’Álvares. Reconheço mais a existência de
temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo,
pátria, amor e a presença-dos-ausentes,
ex-gozo-amargo-de-infelizes.
•
Não
quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na
realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar
entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos
sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre
de arte.
•
O
passado é lição para se meditar, não para reproduzir. “E tu che
se’ costì, anima viva, Pàrtiti da cotesti che son morti”.
•
Por
muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que
ando à procura da originalidade, porque já descobri onde ela
estava, pertence-me, é minha.
•
Quando
uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: “Não
entendi”. Pessoas houve porém que confessaram: “Entendi, mas não
senti”. Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas
não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.
•
Escritor
de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou
bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meus amigos, o
anseio do farol. Se fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola
coletiva, esta seria por certo o “Farolismo”. Nosso desejo:
alumiar. A extrema-esquerda em que nos colocamos não permite
meio-termo. Se gênios: indicaremos o caminho a seguir; bestas:
naufrágios por evitar.
•
Canto
da minha maneira. Que me importa se me não entendem? Não tenho
forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário
alaúde que construí, me parto por essa selva selvagem da cidade.
Como o homem primitivo cantarei a princípio só. Mas canto é agente
simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas
sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós
por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei-de achar também algum,
alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos.
Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d’óculos, farei que as
próprias pedras se reúnam em muralhas à magia do meu cantar. E
dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.
•
Minha
mão escreveu a respeito deste livro que “não tinha e não tem
nenhuma intenção de o publicar”. Jornal do Comércio, 6 de
junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1° volume das
Promenades littéraires. Rui Barbosa tem sobre ela página
lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João
Cocteau, La noce massacrée.
Mas
todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém,
não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Pauliceia desvairada
não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que
ri, que berrei... Eu vivo!
•
Aliás
versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos
cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia
Paisagem n° 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao
burguês. Quem não souber rezar, não leia religião.
Desprezar: A escalada.
Sofrer: Colloque sentimental.
Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das
Enfibraturas do Ipiranga.
Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu
tem essa chave.
•
E
está acabada a escola poética “Desvairismo”.
•
Próximo
livro fundarei outra.
•
E
não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para
vaidade dum só.
•
Poderia
ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio
Interessantíssimo.
“Toda canção de liberdade vem do cárcere”.
Mário de Andrade, em Poesias completas
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