A
mitologia conta que, quando encontraram a ilha da Madeira, não
puderam adentrar a mata de tão espessa. Por canto nenhum se subia à
ilha, cheia de alturas à vista larga e, contudo, sem modo de pousar
os pés. Também conta que, esticados nos barcos, os homens de então
foguearam a natureza. Circundaram como entenderam e foguearam por
toda a parte. Sete anos mais tarde, quando aconteceu de alguém
voltar a encontrar nossa terra, a ilha ainda ardia. Os fumos faziam
grandeza nos promontórios junto às águas, as chamas subiam para
depois das nuvens vindas do interior das maiores caldeiras, onde as
gargantas secas dos vulcões tinham nutrido floras exuberantes.
Diz-se que, de tão bela a ilha e suas plantas, tão belas flores
aqui se nasciam, ainda voavam pássaros lastimando o incêndio.
Pássaros maravilhosos. Muitos ter-se-ão extinguido por lhes doer de
gritar e por lhes doer de tristeza. Tantos terão acabado como
labaredas em fuga mar fora, pequenos cadáveres incandescentes que se
sepultaram nas águas.
Quando
os homens de outrora puseram pé na ilha, ainda assim se perguntavam
que caminho havia daqui para algum lugar, porque tudo subia sem
parar, e muita terra é como apenas paredões onde se projectam
sombras e aquilo que cai. Quiseram, de qualquer modo, povoar. Foram
chegando do reino com avidez de mais fortuna, e o mar era abundante,
e o chão voltava lentamente a florir, a reimaginar cada uma de suas
flores, colorindo tudo, subindo e descendo e perfumando.
Diz-se
que a ilha já inventaria suas flores só pela memória, sem semente
nem água. E, àquele tempo, foi lançando pelo vento um chamado para
bichos alados que foram voltando. A nossa ilha propende para a
primavera. E as flores não têm vertigem. Os homens e as mulheres
que foram ficando, para qualquer sustento que nossa terra pudesse
dar, tiveram de mudar para pés de cabra. Pessoas de terras íngremes,
terras verticais, sem medo do tamanho dos olhos, da vastidão que
qualquer caminho faz diante do corpo, muito para cima, muito para
baixo. Nada fica para a frente, senão a lisura infinita do mar. Como
pode ser liso e imenso o mar, que se vê quieto, igual a uma pedra
arrepiada em quase todos os dias do nosso ano.
A
mitologia diz que podem ter sido cem anos de incêndio. Muito para lá
de sete. Muito mais tempo, como nas histórias lendárias que ninguém
sabe quem inventou. De qualquer jeito, o que ficou nas convicções
dos ilhéus foi que mais se sobe e desce do que se avança. E mais se
faz um madeirense na combustão do que na friúra. Por causa disto,
quando se sofre, é sobretudo por destino que se pensa sofrer. O que
implica uma bravura inesgotável, mas também, por defeito, uma
resignação que obriga a aguentar. O ilhéu aguenta. Sete ou cem
anos.
*
O
Buraco da Caldeira, o esconso sombrio onde nossa casa foi feita, fica
num cotovelo antes da Ribeira Brava. No Sítio do Jardim, acima da
Chamorra, na freguesia de Campanário. Em mil setecentos e noventa e
oito caiu do imenso rochedo do Ilhéu, no meio do nosso mar, uma
pernada que o desfigurou. Antes que caísse, dizem os livros, era
igual à torre dos sinos. Era um ilhéu igual ao cimo de uma igreja
que estivesse afundada. O nome da nossa freguesia vem daí. Dessa
igreja afundada que um abalo qualquer destruiu.
Quem
passa estrada regional fora, a dado momento, uma altura de encosta
sobe muito para lá dos olhos e vai para dentro, onde já não podem
entrar carros. Naquele cotovelo, na verdade, para mais subir ou mais
descer, já só por pé de cabra. Um pé depois do outro, fincado
como der nas veredas que levam até à praia diante do Ilhéu, ou até
ao cimo onde moramos nós. Não se pode subir para depois de onde é
nossa casa, a casa dos Pardieiros. A rocha é bastante mais alta, mas
não há vereda. Já é só lugar de pássaro. Ali para cima, é
lugar de pássaro, não se caminha. Até para ser quem éramos, já
nos conferiam uma metade de asa. Mas, na verdade, qualquer madeirense
tem uma metade de asa.
Quando
amanheci, espantado, o céu era rosado de mil vezes mil flamingos que
migravam. Não existem flamingos na nossa ilha e nem devem existir
mil vezes mil flamingos cor-de-rosa no mundo inteiro. Nem acredito
que flamingos voassem tão alto para cima de encostas como estas. Era
certamente a visão de um milagre qualquer. Um olhar extasiado que
viesse de dentro. Estaria a ver o meu próprio interior, que chegava
à revelia do que é possível e à revelia da tristeza que queriam
atribuir ao nascimento de meu irmão. E eu levantei meus braços como
se pudesse colher os flamingos, comecei a gritar de euforia. Aves
belas eram aves felizes, faziam uma mancha imensa no céu que parecia
florir mais do que nosso chão. Eu chamava meu pai e chamava minha
mãe e ninguém vinha ou ninguém me ouvia, porque talvez eu
sonhasse, talvez não estivesse a ver nem a gritar de verdade. Mas eu
gritei. Queria que todos chegassem às suas portas e vissem como já
a cobrir o mar ia gigante um povo voador lindo, tão lindo, um povo
de pássaros que voara por nossas casas só para nos maravilhar,
porque a vida fazia maravilha. Fazia sempre maravilha.
Quando
os flamingos eram mais nada no horizonte, quando não havia bulício
algum, nenhum bater de asas, entrei. Fui saber de meus pais em redor
de Pouquinho e pedi: posso pegar meu irmão, nosso santo. E minha mãe
me disse os bons dias e cobriu os olhos para não chorar e não
chorou, porque eu imediatamente afirmei: vou cuidarde ti, meu irmão.
Vais aprender tudo o que faz urgência na nossa vida aqui ao
dependuro desta encosta. Vais nadar comigo por toda a volta do Ilhéu,
vais escurecer a pele no calhau e vais ficar forte. Muito mais forte
que os homens do mar. Porque tu vais saber tudo e vais ser esperto.
Quem sabe coisas fortalece para depois do ferro. Fica bom para mandar
no mundo. E eu comecei a rir. Queria rir. E prometi que lhe contaria
tudo sobre os pardais, os gatos-bravos e os torrões que atirávamos
aos poços. Ele saberia de como se faziam as fisgas e porque haveriam
os estrangeiros de falar palavras diferentes. Prometi que Pouquinho
haveria de ir aos pêros, aos tabaibos e às bêberas, e certamente
ia gostar de pitangas tanto quanto eu. Nasciam pitangas pelo nosso
mato, caminho abaixo. Ninguém as plantava ou cuidava. Simplesmente
apareciam. Eram por ali sem preço nem fim. Muito do que se comia era
abundância da mata da ilha, e as famílias seguiam colhendo para
saciarem fomes, que faltava nenhuma fome na Madeira. As bocas nem
falavam como deviam por se abrirem com o vazio do estômago, a dor de
certa morte à espera. A fome é uma certa morte à espera.
Naquela
manhã, o meu pai quis apertar-me no seu abraço mas eu senti que era
difícil. Ficou atrapalhado e precisava de sair para fabricar.
Trabalharia cheio de hesitações, distrações, muitos medos e
alguma vergonha. A descer para as hortas nos nicos de lavra que
tínhamos, o meu enorme pai estava emudecido e de pouca fé. Eu não
saberia o que fazer. Mas julguei que melhoraria. Confiei que
melhoraria. E então jurei que passaram mil vezes mil flamingos
cor-de-rosa por sobre nossas cabeças. Juro. Eu disse. Eram tantos
que o sol atravessava por brechas como se estivesse roto o céu. A
minha mãe respondia: filho, a mãe não sente valor no corpo. Traz
um bocado de pão, que tu és bonito.
De
todas as vezes que fazia o que era pedido ou esperado, eu era bonito.
Não havia melhor coisa para ser.
*
Veio
logo cedo o padre Estêvão para lamúrias e rezas. Fora impedido por
lonjuras no dia anterior. Mas sabia de Pouquinho e estava cheio de
palavrinhas cândidas para motivar a família à recuperação. Padre
Estêvão era deitado a salvações e chegara cansado da subida, com
seus agrados prejudicados, meio sem ar e cheio de sede. Eu fui cuidar
da água e fui cuidar de mais pão, e pousei tudo na camilha para que
se servisse, de onde estava sentado numa cadeira almofadada com
Pouquinho ao colo dizendo ideias muito bíblicas. A minha mãe
agradecia-lhe tanto. Era toda grata aos padres porque acreditava
muito, como todos nós, que intercediam perante Deus. Teriam modo de
andar para dentro e fora da transcendência a oficiar assuntos de
almas. Eram tão importantes, os padres, eram fundamentais para o
sentido extremo da vida. E ele perguntou: buzico, e teu pai. Eu
respondi: fabrica, meu pai fabrica as hortas, senhor padre Estêvão.
E minha mãe pediu: chama teu pai. Que venha abençoar-se da presença
do senhor padre, diz-lhe que veio ver o menino nosso. Fui ao
precipício e apupei: uuuuuuh, paizinho, venha ao padre. Ao fundo,
depois da casa da senhora Agostinha do Brinco, mas antes da casa da
senhora Luisinha do Guerra, que fica mesmo acima da estrada, o meu
pai ergueu a cabeça e parou de fabricar para se levantar. Começou
logo a levantar-se na vereda porque, embora a sobrevivência fosse
elementar, tinha a cabeça parada na aflição que havia em casa, e
mais valia que estivesse em casa para se afligir de perto.
*
Com
dez anos de idade, eu já cozinharia quase tudo. Era habituado ao
fogo e às facas. Não se dava muito tempo à infância. Ser-se
pequeno precisava de prestar serviço, tinha de se atarefar as
crianças para que as famílias não sucumbissem às dificuldades,
que eram quase todas as mesmas por toda a parte. As pobrezas e os
temores repartiam-se como por justiça democrática. Não havia muita
gente excluída de um destino assim. Cozinhar era cumprir uma
infância útil, para ser decente e ter amanhã.
Metidos
por dentro do Buraco da Caldeira, na casa mais subida e mais pobre,
éramos bastos de nossas fazendas e uma levada vinha rente ao nosso
telhado com a água mais limpa. Da levada, sem qualquer desafio,
descíamos a água necessária e era generosa até para chuveirar os
banhos que sabiam tão bem no tempo do verão. Tratado destas
competências, eu fui a mando do almoço para se convidar o padre à
sopa e a uma perna de frango. Padre Estêvão nunca ali vinha. Era
uma visita tão importante que eu não poderia falhar nos temperos
nem haveria de deixar que suspeitasse que desprezávamos o que Deus
nos trazia à mesa. Meu pai, querendo aproximar-se do padre, mas
também querendo garantir que o almoço se faria com requinte, andava
quarto e cozinha a espiar e a dar instruções. Dizia: vigia, tu não
ponhas senão dois grãos de sal. Vigia, tu desceste água da manhã.
Por me fazer tantas encomendas, eu nem sempre o escutava e
perguntava: como é.
Para
as pessoas pobres dos recônditos da ilha, que o padre entrasse em
casa, subido de meia hora a pé pela encosta desde a estrada, era
igual a vir o corpo de Cristo do tempo da Páscoa. O próprio corpo
de Cristo naquela cruz de beijar, a suar de estafa e sede. Haveria de
estar Deus e os santos inclinados à sua varanda para saber com que
ternura lhe receberíamos o funcionário. Sobre meus ombros recaía
tal responsabilidade. Mas de meus ombros se levantava também a
força. Meu pai dizia: Paulinho, à tarde, fabricamos juntos, que é
preciso puxar dos dois lados para passar o ferro naquele chão. E eu
respondi: sim, senhor meu pai. Senti-me bonito. Cozinhei e sorri.
Pouquinho,
de quando em vez, choramingava. Muito ligeirinho sem maldade. Tinha
fome. Amamentava com qualquer minutinho. Era tão pequenino que devia
encher com uns pingos de leite. A seguir, dormia. Padre Estêvão
dizia que o crio ainda não tinha pretensão do mundo. Estava em
negação. Devia ser verdade. Pouquinho levou muitos dias a abrir os
olhos. Não era normal. Ficou mais de uma semana com eles fechados.
Pensámos até que ele só veria para dentro. Talvez cegasse. Mas não
era verdade. Certamente ficou demorado a ver para dentro, sim, antes
da contingência de ver para fora e cegar para o interior, como
acontece com todas as pessoas, uma a uma.
Quando
estávamos a almoçar, todos gabando o sabor e bendizendo muitas
sortes, chegaram vozes de mais abaixo, até mais abaixo da casa da
senhora Agostinha, que apupavam por ali qualquer súplica. Meu pai
foi acudir para saber que era. Pela rocha num eco vinha o som
daquelas vozes que falavam de cachorros. Uns cachorros que fugiram.
Bem se escutava, mesmo da mesa na cozinha de onde não me deixaram
levantar e onde padre Estêvão repetia a sensatez bíblica que me
devia ajudar. E eu prometia cumprir. Cumpriria tudo, mas queria saber
de que cachorros se falava ali para fora. Coitados. Ou seriam
perigosos. Talvez mordam as pessoas e os bichos domésticos. Talvez
tenham fome. Alguns cachorros carregavam os piores espíritos.
Pensavam em matar. Matavam tudo quanto pudessem e devoravam até
tocos de árvores. Roíam mais que toupeiras e ratazanas.
Como
o padre não se calava de tanta dedicação bíblica, fizemos uma
oração à espera que meu pai voltasse a entrar. Suspendemos a
refeição. Não pude escutar mais nada. Dizer palavras sagradas
impunha que as pensasse por inteiro. Uma a uma, cada uma dita para
ser sentida. Quem reza sem pensar está a oferecer-se ao diabo, deixa
que a boca o traia, usa-a sem paixão. Fora como me ensinaram. Quem
reza sem pensar faz o mesmo que trincar o dedo ao invés do pão.
Padre Estêvão sabia de coração orações grandes. Nunca mais
acabavam. Meu pai, que descera a ver que fazer às súplicas que por
ali se gritavam, demorava. A comida esfriava e eu já sabia que meu
cozinhado ficaria mal visto. Gostaria de deixar de ser impaciente,
mas rabiava. Tinha uma infância aguda. Sofria de infantilidade
drástica, máxima. Não era por ser à deriva das ideias, era por
ter tantas ideias e tão poucos recursos e autoridade sobre mim
mesmo. Tudo em mim se ajeitava a dominar o mundo. Mas minha condição
era a de uma subalternidade absoluta. Minha idade subalterna passava
lenta diante da urgência. Estava demasiado a acontecer para que
soubesse ficar parado à espera. Minha mãe dizia: Paulinho, tira o
cotovelo da mesa. Paulinho, não se balançam as pernas assim. Eu
procurava aquietar-me, igual a parar o próprio coração de bater.
Minha natureza era a do movimento. Quase sempre me movia antes de
saber para onde ou por que razão. A cabeça nunca era mais rápida
do que os nervos no corpo. A cabeça esperava razões e explicações,
o corpo seguia a vertigem. Era um animal ativado pela simples
evidência de pulsar.
Valter Hugo Mãe, em Deus na escuridão
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