“Sem-vergonha...
Mato!” — rugia o Migudonho, em ira com mais de três
letras, devida a alambiques. Ele acordava cedo mais não entendia de
orvalho; soprava para ajudar o vento; nem se entendia bem com a
realidade pensante. E a invectiva ia ao Teixeirete — vizinho seu na
limitada superfície terrestre — enquanto vinha a ameaça a um
capado de ceva, que gordo abusava a matéria e negava-se a qualquer
graça. Teixeirete aconselhara vender-se vivo o bicho? Visse, para
aprender! Matava. Hoje. O dia lá era de se fazer Roma.
— “Sujo
Se ingerir, atiro...” — e dava passo de recuo. Agora, ao
contrário: ao vizinho, o desafiar; e o insulto ao porco, não menos
roncante, total devorador, desenxurdando-se, a eliminar de si
horrível fluido quase visível. Migudonho sobraçava tocha de palha
para o chamusco, após sangração, a ponta de faca. — “Monstro!”
— o que timbrava elogio; engordá-lo fora proeza. Teixeirete achava
não valer aquilo o milho e a pena? — “Saf...” — aos
gritos do apunhalado, que parecia ainda comer para lá da morte.
Migudonho — o ato invadia-lhe o íntimo: suã, fressuras,
focinheira, pernil, lombo. — “Quero ninguém!” Mas, não
o Teixeirete: vinha era a filha dele, aparar o sangue, trazia já
farinha e sal e temperos, na cuia. Xepeiros! Também em casa dele,
Migudonho, não se comia morcela, chouriço-de-sangue, não somavam.
Outros sobejos o Teixeirete não ia aproveitar, nem o que urubu há
de ter! Do Migudonho — para o Migudonho. Porco morto de bom.
Crestava-o,
raspando-o a sabugo. A machado, rachava-o. Despojara-o da barrigada.
Cortava pedaço — xingando a mulher: que o picasse e fritasse! Ele
respingava pressa. Tomava trago. Destrinchava. Aquela carne rosada,
mesmo crua, abria gostoso exalar, dava alma. — “Cachorro!”
Teixeirete se oferecera de levar a manta de toicinho à venda? Queria
era se chegar, para manjar do alheio, de bambocheio. Tomava mais
gole. Mastigava, boca de não caber, entendia era o porco, suas todas
febras. — “Cambada...” — os que olhavam, de longe, não
deixando paz a um no seu. Retalhava. Não arrotava. Grunhia à
mulher: para cozinhar mais, assar do lombinho, naco, frigir com fubá
um pezunho. Teixeirete que espiasse de lá, chuchando e aguando,
orelhas para baixo. Migudonho era um Hércules. Arrotava. Para ele, o
triunfal trabalho se acabasse jamais.
Ais.
A barriga beliscou-o. O danado do porco — sua noção. A cobra de
uma cólica. Suinão do cerdo. Vingança? Vê se porco sabe o que
porca não sabe... — “Doi, dor!”— ele cuinchava,
cuinhava. Queria comer, desatou a gemer. Ah, o tratante do
Teixeirete: só eram só seus maus olhos... Migudonho cochinava. Já
suava. Ele estava em consequência de flecha.
Fazendo
o que, dentro do chiqueiro, atolado? Beber não adiantava. Migudonho,
mover e puxar vômitos, pneumático opado o ventre, gases, feito se
com o porco íntegro conteúdo. O borboroto, sem debelo. O porco
fazia-se o sujeito, não o objeto da atual representação. A hora
virou momento. Arre, ai, era um inocente pagando.
Acudiam-lhe,
nesse entrecontratempo. Até o Teixeirete, aos saltos-furtados, o
diabo dono de todas as folgas? — “Canastrão!”
Teixeirete, não! Pregavam-lhe uma descompostura.
Mas
Migudonho não era mais só Migudonho. Doíam, ele e o porco, tão
unidos, inseparáveis, intratáveis. Não lhes valessem losna,
repurga, emplastro quente no fígado. De melhorar nem de
traspassar-se, a sedeca, aquela espatifação. Gemia, insultava-se
por sílabas. Estava como noz na tenaz. Já pequenino atrás de sua
opinião, manso como marido de madrasta.
Teixeirete,
a filharada, a mulher, solertes samaritanos, em ágil, vizinha, alta
caridade. Porca, gorda vida. Migudonho, com na barriga o outro,
lobisomem, na cama chafurdado. — “Satanasado!”
Teixeirete,
bel-prazeroso, livre de qualquer maçada. — “Coisa de
extravagâncias...” — disse. Abancou-se. À cidade iria, por
remédio, e levar o toucinho. — “Ora, tão certo...” —
falava. Nada lhe oferecessem, do porco, comida nenhuma, os cheiros
inteiros, as linguiças aprontadas! O canalha.
Melhor,
sim, dessem-lhe. Para ele botassem prato cheio, de comer e repetir, o
trestanto, dar ao dente... Ia ver, depois de atochado! Pegava também
a indigestão. Saber o que é que o porco do Migudonho pode...
Ria
o Migudonho, apalpando-se a eólia pança, com cuidado. Mais quitutes
dessem ao Teixeirete, já, reenchessem-lhe o prato. Homem de bons
engolimentos. — “Com torresmos...” Teixeirete —
nhaco-te, nhaco-te, m’nhão... — não se recusava. E não adoecia
e rebentava, o desgraçado?!
“Arre,
ai...” — a dor tornava. Esfaqueava-o o morto porco, com a
faca mais navalha. Comido, não destruído, o porco interno
sapecava-o. Deu tonítruo arroto. Pediu o vaso. Do porco não se
desembaraçava. Volvo? — e podia morrer daquilo. Queria elixir
paregórico, injeção, algum récipe de farmácia. Pois, que fosse,
logo, o Teixeirete. Que era que ainda esperava? Deixasse de comer o
dos outros, glutoar e refocilar-se. — “Descarado!...”
Ver
o Teixeirete saindo, no bom cavalo, emprestado. Tomava também
dinheiro! Sorrindo, lépido, sem poeira nem pena — um desgraçado!
Migudonho virava-se para o canto, não merecia tanta infelicidade. —
“Porqueira...” — somente disse. Foi seu exato desabafo.
Guimarães Rosa, em Ave, Palavra
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