domingo, 22 de dezembro de 2024

Metade cavalo

No começo de sua carreira, o analista de Bagé também era chamado para atender casos a domicílio. Como na vez em que um peão foi chamar o analista no meio da noite. Era para o seu patrão, seu Vespasiano. Enquanto encilhava o cavalo, o analista de Bagé pediu detalhes sobre o caso. O peão contou que seu Vespasiano tava variando.
Pensa que é metade gente, metade animal.
Que animal?
Cavalo.
Que pêlo?
Castanho.
Que metade?
A de baixo.
Bueno. Pelo menos vou poder charlar com o homem.
Chegaram na estância quase de manhãzinha. Seu Vespasiano já estava de pé, mastigando seu milho. Recebeu o analista de Bagé com desconfiança.
Que lê traz aqui?
Pôs vim olhar a sua tropa. Um cavalo meu desgarrou pra estas bandas.
E tu cria cavalo no consultório, tchê?
Tem cliente que só a patada.
Pôs seu cavalo não ta aqui.
Só vendo.
Saíram para o campo. O analista de Bagé a cavalo e o seu Vespasiano galopando do seu lado. Olharam toda a tropa. Aí o analista começou a examinar seu Vespasiano de cima a baixo.
Tá me olhando por quê? – quis saber seu Vespasiano, carrancudo.
Acho que to reconhecendo meu castanho.
Endoidou? Eu sou o Vespasiano.
Só até a cintura.
Pra baixo também é meu.
Então mostra a marca.
O quê?
Quero ver a marca na anca. Se não ta marcado, é meu.
A discussão ainda durou um pouco, mas no fim seu Vespasiano se convenceu que não era metade cavalo. Lamentou bastante porque daquele jeito estava economizando montaria. Mas a família suspirou aliviada. Não aguentava mais a bosta no tapete.

Luís Fernando Veríssimo, em O analista de Bagé

Nenhum comentário:

Postar um comentário