[
2 ]
Adam
foi dispensado em 1885 e começou a longa jornada de volta para casa.
Na aparência havia mudado pouco. Não tinha porte militar. Na
cavalaria as coisas não eram assim. Na verdade, algumas unidades se
orgulhavam de manter uma postura desleixada.
Adam
sentia-se como um sonâmbulo. É difícil deixar qualquer vida
profundamente marcada pela rotina, mesmo se você a odeia. De manhã
ele acordava em um segundo e ficava deitado à espera do toque de
alvorada. Suas panturrilhas sentiam falta das perneiras, e o pescoço
parecia nu sem o colarinho apertado. Chegou a Chicago e lá, sem
motivo algum, alugou um quarto mobiliado por uma semana, ficou nele
dois dias, foi até Buffalo, mudou de ideia e seguiu para as
cataratas do Niágara. Não queria voltar para casa e protelou o
regresso tanto quanto possível. O lar não era um lugar agradável
na sua lembrança. Os sentimentos que tivera lá estavam mortos nele
e relutava em trazê-los à vida. Observou as cataratas hora após
hora. Seu bramido o atordoava e hipnotizava.
Certa
noite, sentiu um anseio terrível pela proximidade dos homens no
quartel e nas barracas. Seu impulso foi correr para uma multidão em
busca de calor humano, qualquer multidão. O primeiro lugar público
cheio de gente que encontrou foi um pequeno bar, apinhado e
fumacento. Suspirou de prazer e quase se aninhou na massa humana como
um gato se aninha numa pilha de lenha. Pediu uísque, bebeu e se
sentiu quente e bem. Ele nada via ou ouvia. Simplesmente absorvia o
contato.
À
medida que ficou tarde e os homens começaram a ir embora, teve medo
do momento em que precisaria ir para casa. Logo estava sozinho com o
balconista, que esfregava sem parar o mogno do balcão e tentava com
seus olhos e suas maneiras fazer com que Adam fosse embora.
— Vou
tomar mais um — disse Adam.
O
homem tirou a garrafa. Adam o notou pela primeira vez. Tinha uma
marca cor de morango na testa.
— Sou
novo por aqui — disse Adam.
— É
o que mais temos nas cataratas — disse o homem.
— Estive
no Exército. Na cavalaria.
— Verdade?
Adam
sentiu subitamente que tinha de impressionar o homem, tinha de
prender sua atenção de algum modo.
— Lutando
contra os índios — disse. — Tive momentos inesquecíveis.
O
homem não respondeu.
— Meu
irmão tem uma marca na cabeça.
O
balconista tocou o sinal cor de morango com os dedos.
— É
de nascença — disse. — Fica maior a cada ano. Seu irmão tem um?
— O
dele foi um corte. Escreveu-me a respeito.
— Notou
que este meu sinal se parece com um gato?
— Parece
mesmo.
— É
o meu apelido, Gato. Eu o tive a vida inteira. Dizem que minha velha
deve ter sido assustada por um gato quando estava me parindo.
— Estou
voltando para casa. Passei muito tempo fora. Não quer aceitar um
drinque?
— Obrigado.
Onde está hospedado?
— Na
pensão da sra. May.
— Eu
a conheço. Dizem que ela te enche de sopa para que você não possa
comer muita carne.
— Acho
que cada negócio tem os seus truques — disse Adam.
— Acho
que é verdade. Existem muitos no meu.
— Acredito
nisso — concordou Adam.
— Mas
o truque de que preciso eu não tenho. Queria muito conhecer este. —
E qual seria o truque?
— Como
fazer com que você vá para casa e me deixe fechar esta espelunca.
Adam
olhou para ele longamente sem falar.
— É
uma brincadeira — falou o homem, apreensivo.
— Acho
que vou para casa de manhã — disse Adam. — Quero dizer, minha
verdadeira casa.
— Boa
sorte.
Adam
caminhou através da cidade escura, apressando o passo como se sua
solidão fungasse atrás de si. Os degraus curvados da frente de sua
pensão rangeram um aviso quando subiu por eles. O vestíbulo estava
iluminado por um pingo de luz de um lampião de azeite com a chama
tão baixa que parecia prestes a se apagar.
A
dona da pensão estava parada diante de sua porta aberta e seu nariz
projetava uma sombra na ponta do queixo. Seus olhos frios seguiram
Adam como os olhos de um retrato e ela ouviu com o nariz o uísque
que o cercava.
— Boa
noite — disse Adam.
Ela
não respondeu.
No
alto do primeiro lance de escadas ele olhou para trás. A cabeça
dela estava erguida e agora o queixo é que lançava uma sombra sobre
o pescoço e seus olhos não tinham pupilas.
Seu
quarto cheirava a poeira que umedecera e secara muitas vezes. Pegou
um fósforo da caixa de madeira e o riscou num dos lados. Acendeu o
toco de vela num castiçal laqueado e olhou para a cama —
invertebrada como uma rede e coberta com uma colcha de retalhos suja,
o estofo de algodão saindo pelas bordas.
Os
degraus do alpendre se queixaram de novo e Adam sabia que a mulher
estaria de novo plantada diante da porta pronta para aspergir
hostilidade sobre o recém-chegado.Adam sentou-se numa cadeira reta,
colocou os ombros nos joelhos e apoiou o queixo nas mãos. Um
inquilino no final do corredor começou uma tosse incessante contra a
noite.
E
Adam soube que não podia voltar para casa. Ouvira velhos soldados
contarem que fizeram o que ele ia fazer.“Eu simplesmente não podia
suportar aquilo. Não tinha para onde ir. Não conhecia ninguém.
Vagueava pelas ruas e logo entrei em pânico como uma criança e a
primeira coisa que fiz foi implorar ao sargento para me aceitar de
volta — como se estivesse me fazendo um favor.”
De
volta a Chicago, Adam realistou-se e pediu para ser lotado no seu
antigo regimento. No trem a caminho do Oeste, os homens do seu
esquadrão pareciam muito amistosos e cordiais.
Enquanto
esperava a troca de trens em Kansas City, ouviu chamarem seu nome e
uma mensagem foi enfiada em sua mão — ordens para se apresentar em
Washington no gabinete do secretário da Guerra. Adam em seus cinco
anos tinha absorvido, mais do que aprendido, a nunca pensar demais
sobre uma ordem. Para os soldados regulares, os altaneiros e
distantes deuses em Washington eram malucos e se um soldado quisesse
manter sua sanidade mental deveria pensar o menos possível em
generais.
No
devido tempo, Adam deu o seu nome a um funcionário e foi sentar-se
na antessala. Seu pai o encontrou ali. Adam levou um certo tempo para
reconhecer Cyrus, e mais tempo ainda para se acostumar a ele. Cyrus
havia se tornado um grande homem. Vestia-se como um grande homem —
casaco e calças pretos de casimira fina, um chapéu largo também
preto, sobretudo com gola de veludo, bengala de ébano que ele fazia
parecer uma espada. E Cyrus portava-se como um grande homem. Sua fala
era lenta e suave, compassada e contida, seus gestos largos, e dentes
novos lhe davam um sorriso vulpino fora de toda proporção com a sua
emoção.
Depois
que Adam percebeu que aquele era o seu pai, ainda continuou
intrigado. Subitamente olhou para baixo — nenhuma perna de pau. A
perna era reta, dobrada no joelho, e o pé estava calçado numa
botina de pelica com elástico lateral. Quando ele andava havia um
coxeio, mas não o batuque típico da perna de pau.
Cyrus
percebeu o olhar.
— Perna
mecânica — disse ele. — Funciona com uma dobradiça. Tem uma
mola. Não chego sequer a mancar quando me concentro. Vou mostrar-lhe
quando a tirar. Venha comigo.
Adam
disse:
— Estou
cumprindo ordens, senhor. Devo apresentar-me ao coronel Wells.
— Eu
sei disso. Fui eu que mandei Wells despachar as ordens. Vamos
andando.
Adam
disse inquietamente:
— Se
não objetar, senhor, acho melhor eu me apresentar ao coronel Wells.
Seu
pai mudou de tom.
— Eu
o estava testando — falou, magnânimo. — Queria ver se o Exército
tem alguma disciplina no dia de hoje. Muito bem, rapaz. Eu sabia que
faria bem a você. Você é um homem e um soldado, meu rapaz.
— Estou
cumprindo ordens, senhor — disse Adam. Aquele homem era um estranho
para ele. Adam sentiu uma leve repulsa. Algo não era verdadeiro ali.
E a rapidez com que as portas se abriram para o coronel, o respeito
obsequioso daquele oficial, as palavras “O secretário o receberá
agora, senhor” não removeram a sensação de Adam.
— Este
é o meu filho, um soldado raso, senhor secretário. Exatamente como
eu, um soldado raso do Exército dos Estados Unidos.
— Dei
baixa como cabo, senhor — disse Adam. Ele mal ouvira a troca de
cumprimentos. Estava pensando. Este é o secretário da Guerra. Não
consegue ver que meu pai não é assim? Ele está só fazendo teatro.
O que foi que aconteceu com ele? É estranho que o secretário não
consiga perceber.
Caminharam
até o pequeno hotel onde Cyrus morava e no caminho Cyrus mostrou os
pontos turísticos, os edifícios, os locais históricos, expansivo
como um palestrante.
— Moro
num hotel — disse. — Pensei em ter uma casa, mas viajo tanto que
não valeria a pena. Estou percorrendo o país quase que o tempo
todo.
O
funcionário do hotel também não conseguia notar nada. Fez uma
mesura para Cyrus, chamou-o de “senador” e indicou que daria um
quarto a Adam ainda que fosse preciso botar alguém na rua.
— Mande
uma garrafa de uísque para o meu quarto, por favor.
— Posso
mandar um pouco de gelo picado se quiser.
— Gelo!
— disse Cyrus. — Meu filho é um soldado. — Bateu com a bengala
na perna que emitiu um som oco. — Já fui soldado, soldado raso.
Para que precisaríamos de gelo?
Adam
ficou espantado com os aposentos de Cyrus. Tinha não só um quarto
de dormir, mas uma sala de estar ao lado e o banheiro ficava junto ao
quarto.Cyrus sentou-se numa poltrona funda e suspirou. Arregaçou a
perna da calça e Adam viu o aparelho de ferro, couro e madeira de
lei. Cyrus afrouxou os cordões da bainha de couro que prendia a
perna ao cotoco e colocou a imitação de perna ao lado da sua
cadeira.
— Aperta
muito às vezes — disse ele.
Sem
a perna, seu pai voltou a ser o mesmo, o homem de que Adam se
lembrava. Havia experimentado um início de desdém, mas agora o medo
de infância, o respeito e a animosidade voltaram a ele, de modo que
parecia um garotinho testando o humor imediato do pai para se ver
livre de encrenca.
Cyrus
fez suas preparações, bebeu seu uísque e afrouxou o colarinho.
Encarou Adam.— E então?
— Senhor?
— Por
que se realistou?
— Eu...
não sei, senhor. Simplesmente me deu vontade.
— Você
não gosta do Exército, Adam.
— Não,
senhor.
— Por
que voltou?
— Eu
não queria ir para casa.
Cyrus
suspirou e esfregou as pontas dos dedos nos braços da poltrona.
— Vai
ficar no Exército? — perguntou.
— Não
sei, senhor.
— Posso
colocá-lo em West Point. Tenho influência. Posso obter sua dispensa
para que se matricule em West Point.
— Não
quero ir para lá.
— Está
me desafiando? — perguntou Cyrus calmamente.
Adam
levou muito tempo para responder e sua mente procurou alguma saída
antes de dizer:
— Sim,
senhor.
Cyrus
disse:
— Sirva-me
um pouco de uísque, filho. — E, quando Adam o fez, ele continuou:
— Não sei se você sabe quanta influência eu realmente tenho.
Posso jogar o Grande Exército em massa a favor de qualquer
candidato. Até o presidente gosta de saber o que eu penso em relação
a questões públicas. Posso derrotar senadores e conseguir empregos
como se apanha maçãs. Posso fazer homens e destruir homens. Sabe
disso?
Adam
sabia mais do que aquilo. Sabia que Cyrus estava se defendendo com
ameaças.
— Sim,
senhor. Ouvi falar.
— Eu
podia designá-lo para Washington, designá-lo até para mim e
ensinar-lhe como são as coisas por aqui.
— Eu
preferiria voltar para o meu regimento, senhor.
Ele
viu a sombra da perda escurecer o rosto do pai.
— Talvez
eu tenha cometido um erro. Você aprendeu a resistência estúpida de
um soldado. — Suspirou. — Vou dar ordens para que se apresente ao
seu regimento. Você vai apodrecer no quartel.
— Obrigado,
senhor.
Depois
de uma pausa, Adam perguntou:
— Por
que não traz Charles para cá?
— Porque
eu... não, Charles fica melhor onde está. Melhor onde está.
Adam
se lembrou do tom do pai e da sua aparência. E teve muito tempo para
se lembrar, porque apodreceu no quartel. Lembrou que Cyrus estava
sozinho e solitário — e sabia disso.
John Steinbeck, em A leste do Éden
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