domingo, 22 de dezembro de 2024

A leste do éden | 6


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Adam foi dispensado em 1885 e começou a longa jornada de volta para casa. Na aparência havia mudado pouco. Não tinha porte militar. Na cavalaria as coisas não eram assim. Na verdade, algumas unidades se orgulhavam de manter uma postura desleixada.
Adam sentia-se como um sonâmbulo. É difícil deixar qualquer vida profundamente marcada pela rotina, mesmo se você a odeia. De manhã ele acordava em um segundo e ficava deitado à espera do toque de alvorada. Suas panturrilhas sentiam falta das perneiras, e o pescoço parecia nu sem o colarinho apertado. Chegou a Chicago e lá, sem motivo algum, alugou um quarto mobiliado por uma semana, ficou nele dois dias, foi até Buffalo, mudou de ideia e seguiu para as cataratas do Niágara. Não queria voltar para casa e protelou o regresso tanto quanto possível. O lar não era um lugar agradável na sua lembrança. Os sentimentos que tivera lá estavam mortos nele e relutava em trazê-los à vida. Observou as cataratas hora após hora. Seu bramido o atordoava e hipnotizava.
Certa noite, sentiu um anseio terrível pela proximidade dos homens no quartel e nas barracas. Seu impulso foi correr para uma multidão em busca de calor humano, qualquer multidão. O primeiro lugar público cheio de gente que encontrou foi um pequeno bar, apinhado e fumacento. Suspirou de prazer e quase se aninhou na massa humana como um gato se aninha numa pilha de lenha. Pediu uísque, bebeu e se sentiu quente e bem. Ele nada via ou ouvia. Simplesmente absorvia o contato.
À medida que ficou tarde e os homens começaram a ir embora, teve medo do momento em que precisaria ir para casa. Logo estava sozinho com o balconista, que esfregava sem parar o mogno do balcão e tentava com seus olhos e suas maneiras fazer com que Adam fosse embora.
Vou tomar mais um — disse Adam.
O homem tirou a garrafa. Adam o notou pela primeira vez. Tinha uma marca cor de morango na testa.
Sou novo por aqui — disse Adam.
É o que mais temos nas cataratas — disse o homem.
Estive no Exército. Na cavalaria.
Verdade?
Adam sentiu subitamente que tinha de impressionar o homem, tinha de prender sua atenção de algum modo.
Lutando contra os índios — disse. — Tive momentos inesquecíveis.
O homem não respondeu.
Meu irmão tem uma marca na cabeça.
O balconista tocou o sinal cor de morango com os dedos.
É de nascença — disse. — Fica maior a cada ano. Seu irmão tem um?
O dele foi um corte. Escreveu-me a respeito.
Notou que este meu sinal se parece com um gato?
Parece mesmo.
É o meu apelido, Gato. Eu o tive a vida inteira. Dizem que minha velha deve ter sido assustada por um gato quando estava me parindo.
Estou voltando para casa. Passei muito tempo fora. Não quer aceitar um drinque?
Obrigado. Onde está hospedado?
Na pensão da sra. May.
Eu a conheço. Dizem que ela te enche de sopa para que você não possa comer muita carne.
Acho que cada negócio tem os seus truques — disse Adam.
Acho que é verdade. Existem muitos no meu.
Acredito nisso — concordou Adam.
Mas o truque de que preciso eu não tenho. Queria muito conhecer este. — E qual seria o truque?
Como fazer com que você vá para casa e me deixe fechar esta espelunca.
Adam olhou para ele longamente sem falar.
É uma brincadeira — falou o homem, apreensivo.
Acho que vou para casa de manhã — disse Adam. — Quero dizer, minha verdadeira casa.
Boa sorte.
Adam caminhou através da cidade escura, apressando o passo como se sua solidão fungasse atrás de si. Os degraus curvados da frente de sua pensão rangeram um aviso quando subiu por eles. O vestíbulo estava iluminado por um pingo de luz de um lampião de azeite com a chama tão baixa que parecia prestes a se apagar.
A dona da pensão estava parada diante de sua porta aberta e seu nariz projetava uma sombra na ponta do queixo. Seus olhos frios seguiram Adam como os olhos de um retrato e ela ouviu com o nariz o uísque que o cercava.
Boa noite — disse Adam.
Ela não respondeu.
No alto do primeiro lance de escadas ele olhou para trás. A cabeça dela estava erguida e agora o queixo é que lançava uma sombra sobre o pescoço e seus olhos não tinham pupilas.
Seu quarto cheirava a poeira que umedecera e secara muitas vezes. Pegou um fósforo da caixa de madeira e o riscou num dos lados. Acendeu o toco de vela num castiçal laqueado e olhou para a cama — invertebrada como uma rede e coberta com uma colcha de retalhos suja, o estofo de algodão saindo pelas bordas.
Os degraus do alpendre se queixaram de novo e Adam sabia que a mulher estaria de novo plantada diante da porta pronta para aspergir hostilidade sobre o recém-chegado.Adam sentou-se numa cadeira reta, colocou os ombros nos joelhos e apoiou o queixo nas mãos. Um inquilino no final do corredor começou uma tosse incessante contra a noite.
E Adam soube que não podia voltar para casa. Ouvira velhos soldados contarem que fizeram o que ele ia fazer.“Eu simplesmente não podia suportar aquilo. Não tinha para onde ir. Não conhecia ninguém. Vagueava pelas ruas e logo entrei em pânico como uma criança e a primeira coisa que fiz foi implorar ao sargento para me aceitar de volta — como se estivesse me fazendo um favor.”
De volta a Chicago, Adam realistou-se e pediu para ser lotado no seu antigo regimento. No trem a caminho do Oeste, os homens do seu esquadrão pareciam muito amistosos e cordiais.
Enquanto esperava a troca de trens em Kansas City, ouviu chamarem seu nome e uma mensagem foi enfiada em sua mão — ordens para se apresentar em Washington no gabinete do secretário da Guerra. Adam em seus cinco anos tinha absorvido, mais do que aprendido, a nunca pensar demais sobre uma ordem. Para os soldados regulares, os altaneiros e distantes deuses em Washington eram malucos e se um soldado quisesse manter sua sanidade mental deveria pensar o menos possível em generais.
No devido tempo, Adam deu o seu nome a um funcionário e foi sentar-se na antessala. Seu pai o encontrou ali. Adam levou um certo tempo para reconhecer Cyrus, e mais tempo ainda para se acostumar a ele. Cyrus havia se tornado um grande homem. Vestia-se como um grande homem — casaco e calças pretos de casimira fina, um chapéu largo também preto, sobretudo com gola de veludo, bengala de ébano que ele fazia parecer uma espada. E Cyrus portava-se como um grande homem. Sua fala era lenta e suave, compassada e contida, seus gestos largos, e dentes novos lhe davam um sorriso vulpino fora de toda proporção com a sua emoção.
Depois que Adam percebeu que aquele era o seu pai, ainda continuou intrigado. Subitamente olhou para baixo — nenhuma perna de pau. A perna era reta, dobrada no joelho, e o pé estava calçado numa botina de pelica com elástico lateral. Quando ele andava havia um coxeio, mas não o batuque típico da perna de pau.
Cyrus percebeu o olhar.
Perna mecânica — disse ele. — Funciona com uma dobradiça. Tem uma mola. Não chego sequer a mancar quando me concentro. Vou mostrar-lhe quando a tirar. Venha comigo.
Adam disse:
Estou cumprindo ordens, senhor. Devo apresentar-me ao coronel Wells.
Eu sei disso. Fui eu que mandei Wells despachar as ordens. Vamos andando.
Adam disse inquietamente:
Se não objetar, senhor, acho melhor eu me apresentar ao coronel Wells.
Seu pai mudou de tom.
Eu o estava testando — falou, magnânimo. — Queria ver se o Exército tem alguma disciplina no dia de hoje. Muito bem, rapaz. Eu sabia que faria bem a você. Você é um homem e um soldado, meu rapaz.
Estou cumprindo ordens, senhor — disse Adam. Aquele homem era um estranho para ele. Adam sentiu uma leve repulsa. Algo não era verdadeiro ali. E a rapidez com que as portas se abriram para o coronel, o respeito obsequioso daquele oficial, as palavras “O secretário o receberá agora, senhor” não removeram a sensação de Adam.
Este é o meu filho, um soldado raso, senhor secretário. Exatamente como eu, um soldado raso do Exército dos Estados Unidos.
Dei baixa como cabo, senhor — disse Adam. Ele mal ouvira a troca de cumprimentos. Estava pensando. Este é o secretário da Guerra. Não consegue ver que meu pai não é assim? Ele está só fazendo teatro. O que foi que aconteceu com ele? É estranho que o secretário não consiga perceber.
Caminharam até o pequeno hotel onde Cyrus morava e no caminho Cyrus mostrou os pontos turísticos, os edifícios, os locais históricos, expansivo como um palestrante.
Moro num hotel — disse. — Pensei em ter uma casa, mas viajo tanto que não valeria a pena. Estou percorrendo o país quase que o tempo todo.
O funcionário do hotel também não conseguia notar nada. Fez uma mesura para Cyrus, chamou-o de “senador” e indicou que daria um quarto a Adam ainda que fosse preciso botar alguém na rua.
Mande uma garrafa de uísque para o meu quarto, por favor.
Posso mandar um pouco de gelo picado se quiser.
Gelo! — disse Cyrus. — Meu filho é um soldado. — Bateu com a bengala na perna que emitiu um som oco. — Já fui soldado, soldado raso. Para que precisaríamos de gelo?
Adam ficou espantado com os aposentos de Cyrus. Tinha não só um quarto de dormir, mas uma sala de estar ao lado e o banheiro ficava junto ao quarto.Cyrus sentou-se numa poltrona funda e suspirou. Arregaçou a perna da calça e Adam viu o aparelho de ferro, couro e madeira de lei. Cyrus afrouxou os cordões da bainha de couro que prendia a perna ao cotoco e colocou a imitação de perna ao lado da sua cadeira.
Aperta muito às vezes — disse ele.
Sem a perna, seu pai voltou a ser o mesmo, o homem de que Adam se lembrava. Havia experimentado um início de desdém, mas agora o medo de infância, o respeito e a animosidade voltaram a ele, de modo que parecia um garotinho testando o humor imediato do pai para se ver livre de encrenca.
Cyrus fez suas preparações, bebeu seu uísque e afrouxou o colarinho. Encarou Adam.— E então?
Senhor?
Por que se realistou?
Eu... não sei, senhor. Simplesmente me deu vontade.
Você não gosta do Exército, Adam.
Não, senhor.
Por que voltou?
Eu não queria ir para casa.
Cyrus suspirou e esfregou as pontas dos dedos nos braços da poltrona.
Vai ficar no Exército? — perguntou.
Não sei, senhor.
Posso colocá-lo em West Point. Tenho influência. Posso obter sua dispensa para que se matricule em West Point.
Não quero ir para lá.
Está me desafiando? — perguntou Cyrus calmamente.
Adam levou muito tempo para responder e sua mente procurou alguma saída antes de dizer:
Sim, senhor.
Cyrus disse:
Sirva-me um pouco de uísque, filho. — E, quando Adam o fez, ele continuou: — Não sei se você sabe quanta influência eu realmente tenho. Posso jogar o Grande Exército em massa a favor de qualquer candidato. Até o presidente gosta de saber o que eu penso em relação a questões públicas. Posso derrotar senadores e conseguir empregos como se apanha maçãs. Posso fazer homens e destruir homens. Sabe disso?
Adam sabia mais do que aquilo. Sabia que Cyrus estava se defendendo com ameaças.
Sim, senhor. Ouvi falar.
Eu podia designá-lo para Washington, designá-lo até para mim e ensinar-lhe como são as coisas por aqui.
Eu preferiria voltar para o meu regimento, senhor.
Ele viu a sombra da perda escurecer o rosto do pai.
Talvez eu tenha cometido um erro. Você aprendeu a resistência estúpida de um soldado. — Suspirou. — Vou dar ordens para que se apresente ao seu regimento. Você vai apodrecer no quartel.
Obrigado, senhor.
Depois de uma pausa, Adam perguntou:
Por que não traz Charles para cá?
Porque eu... não, Charles fica melhor onde está. Melhor onde está.
Adam se lembrou do tom do pai e da sua aparência. E teve muito tempo para se lembrar, porque apodreceu no quartel. Lembrou que Cyrus estava sozinho e solitário — e sabia disso.

John Steinbeck, em A leste do Éden

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