A
sinhá Ana Felipa já estava de cama havia três meses e o sinhô
José Carlos tinha mudado de quarto, porque a sinhá exigia cuidados
constantes e ele precisava dormir e descansar para o trabalho do dia
seguinte. Além das dores, ela ainda sentia o pavor de perder
novamente a criança que esperava, e mantinha a Antônia e a Firmina
dia e noite ao pé da cama. Duas pretas da senzala grande foram
chamadas para ocupar a cozinha, e a Maria das Graças e a Esméria
passaram para o serviço da casa. Foi no meio dessa confusão toda
que eu, depois de meses, deixei a varanda e a cozinha e entrei pela
primeira vez na casa-grande, que não era chamada assim por acaso.
Fiquei encantada com a sala de muitos móveis, com grandes sofás de
madeira escura cobertos por almofadas ricas em bordados e pinturas,
inteiras no comprimento do encosto e do assento, e outras soltas,
menores, jogadas por cima das maiores. As pequenas eram de crochê ou
de renda, de diversas cores e formatos, redondas, retangulares,
quadradas, trabalhadas com linha finíssima, formando desenhos muito
delicados. Havia também muitas poltronas e cadeiras, algumas da
mesma madeira escura dos sofás, com os assentos de palha trançada
que davam repouso para mais almofadas, quase todas vermelhas. Havia
muito vermelho e dourado pela sala, como os xales jogados sobre
bancos e móveis que eu nem sabia para que serviam, e que a Esméria
explicou serem para descansar os pés.
À
direita da porta da frente ficava um móvel com estátuas de santos,
todas muito lindas e algumas vestidas com roupas de verdade, como a
Nossa Senhora, a mãe do Menino Jesus, e o São José, o pai. Sobre
este móvel também havia um vaso com flores e um castiçal de prata,
e era dever da Antônia cuidar para que sempre houvesse lá uma vela
acesa e um copo com água. Na parte de baixo do móvel ficava uma
tábua um pouco elevada do chão, onde a pessoa se ajoelhava para
rezar sobre uma almofada vermelha com bordados e franjas em dourado.
Esse móvel tinha um nome também muito bonito, que eu tive
dificuldade para aprender a falar, genuflexório. Em cada uma das
paredes que separavam a sala da varanda, três janelas protegidas por
cortinas, através das quais eu nunca tinha me atrevido a olhar pelo
lado de fora, com medo de ser repreendida. Havia também uma mesa
redonda com quatro cadeiras e muitas outras mesinhas espalhadas pelos
cantos, com objetos de vidro, de prata ou de ouro, como cinzeiros,
vasos com flores, caixinhas para rapé, castiçais e garrafinhas,
tudo sobre delicadas toalhas de renda. Um outro móvel, com quatro
prateleiras e porta de vidro, guardava copos de vários tamanhos e
cores, em vidros tão finos que mais pareciam papel colorido, e
também alguns pratos com desenhos que a Esméria disse serem do
estrangeiro, da Europa, de onde tinham saído as famílias do sinhô
e da sinhá. Havia mais pratos desses, com pinturas, pendurados nas
paredes, ao lado de quadros que tanto eram de paisagens estrangeiras
como de gente. Logo à entrada, ao lado da porta, um outro móvel com
guarda-chuvas e capas de chuva, chapéus de todos os tipos, cores e
tamanhos, luvas, e o que eu mais gostei, um espelho. Desde que me
olhei nele pela primeira vez, não consegui passar um único dia sem
voltar a fazê-lo sempre que surgia uma oportunidade. A Esméria
parou na frente dele e me chamou, disse para eu fechar os olhos e
imaginar como eu era, com o que me parecia, e depois podia abrir os
olhos e o espelho me diria se o que eu tinha imaginado era verdade ou
mentira. Eu sabia que tinha a pele escura e o cabelo duro e escuro,
mas me imaginava parecida com a sinhazinha. Quando abri os olhos, não
percebi de imediato que eram a minha imagem e a da Esméria paradas
na nossa frente. Eu já tinha me visto nas águas de rios e de lagos,
mas nunca com tanta nitidez. Só depois que deixei de prestar atenção
na menina de olhos arregalados que me encarava e vi a Esméria ao
lado dela, tal qual a via de verdade, foi que percebi para que servia
o espelho. Era como a água muito limpa, coisa que, aliás, ele bem
parecia.
Eu
era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei
feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram, e evitei
chegar perto da sinhazinha. Quando era inevitável, fazia o possível
para deixá-la feia também, principalmente em relação aos
penteados. Pegava em seus cabelos com as mãos sujas de banha ou de
terra e inventava maneiras estranhas de prendê-los. Sem a sinhá por
perto e com a sinhazinha enfrentando a Esméria e a Antônia dizendo
que, se eu tinha feito, então estava bonito, pois elas não
entendiam nada de penteados, ficava por aquilo mesmo, e eu ria
sozinha pelos cantos. O sinhô José Carlos não ligava para essas
coisas; aliás, ele não ligava para a filha, por não ter o dom do
afeto e por considerá-la culpada pela morte da mãe. E assim foi até
o dia em que comecei a me achar bonita também, pensando de um modo
diferente e percebendo o quanto era parecida com a minha mãe. O
espelho passou a ser diversão, e eu ficava longo tempo na frente
dele, fazendo caretas e vendo a minha imagem repeti-las, até o dia
em que a sinhazinha viu e me chamou para ir ao quarto dela. A Esméria
tinha dito para eu nunca entrar lá, porque, se sumisse alguma coisa,
poderiam dizer que eu tinha roubado. Mas como a sinhazinha insistiu e
eu morria de curiosidade, fui. Andamos pelo longo corredor que tinha
o mesmo piso da sala, de tábuas largas e compridas, uma mais clara
ao lado de outra mais escura, com tapetes coloridos jogados de espaço
a espaço. O corredor era escuro, pois não tinha janelas como os
outros cômodos, somente muitas portas fechadas e três lamparinas,
que ficavam apagadas durante o dia.
Quando
a porta do quarto da sinhazinha se abriu, eu me imaginei entrando em
um outro mundo, cor-de-rosa como o tapete que cobria o chão. Tudo
era dourado, branco ou cor-de-rosa, como a cama e o dossel, onde
estava presa uma cortina feita de tecido muito leve e transparente,
salpicado de flores bordadas. Ou a cômoda e o armário, onde ficavam
guardadas as roupas e os sapatos, assim como o móvel que tomava toda
uma parede e estava cheio de brinquedos de variados tipos, tamanhos e
cores, principalmente bonecas. No chão, em meio a algumas almofadas,
um cavalo de madeira pintado de branco com os pés iguais aos da
cadeira de balanço em que a sinhá se sentava na varanda, com o rabo
e a crina cor-de-rosa trançados e amarrados com fita. A sinhazinha
abriu a porta do armário e eu vi mais roupas do que dez crianças
juntas poderiam vestir, e, na porta, no lado de dentro, um imenso
espelho, onde era possível ver nós duas juntas, de pé e de corpo
inteiro. Fiquei fascinada, e mais ainda quando ela disse que eu podia
pegar uma roupa para ver como ficava em mim. Ela era maior que eu,
mas, mesmo assim, escolhi um vestido longo, do mesmo tecido da
cortina que rodeava a cama, com diversas camadas de saias rodadas,
sendo que a de cima estava bordada com minúsculas borboletas
coloridas. Ela também me emprestou pares de luvas e sapatos que não
couberam nos meus pés, mas fiz questão de ficar equilibrada em cima
deles, com os dedos enfiados o mais que eu podia aguentar. A
sinhazinha buscou na sala uma sombrinha cor-de-rosa, que combinava
com todo o resto e completava o meu fascínio.
Olhando
no espelho, eu me achei linda, a menina mais linda do mundo, e
prometi que um dia ainda seria forra e teria, além das roupas iguais
às das pretas do mercado, muitas outras iguais às da sinhazinha.
Ela também deve ter me achado bonita e ficado com ciúme, pois logo
deu a brincadeira por terminada e pediu que eu tirasse tudo antes que
estragasse, ou antes que a sinhá Ana Felipa aparecesse e brigasse
com nós duas. Mas a sinhá não ia aparecer, ela não se levantava
da cama, para ver se conseguia segurar a criança que estava
esperando, deixando a sinhazinha Maria Clara inteiramente aos
cuidados da Esméria. E era bem possível que a sinhá não
aparecesse nem se estivesse boa, pois comentavam que depois que ela
se casou com o sinhô José Carlos, meses após a morte da sinhá
Angélica, quando deveria ser uma mãe substituta para a sinhazinha,
nunca cuidou da menina. Diziam que até a maltratava, e depois se
tornou indiferente, como era naquela época. A indiferença ainda era
acrescida de rancor, porque a sinhazinha Maria Clara era a lembrança
de que ela não conseguia dar filhos ao sinhô José Carlos, ao
contrário da finada sinhá Angélica e de algumas pretas, como
diziam ser o caso da mãe do Tico e do Hilário.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
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