sábado, 14 de dezembro de 2024

As descobertas


A sinhá Ana Felipa já estava de cama havia três meses e o sinhô José Carlos tinha mudado de quarto, porque a sinhá exigia cuidados constantes e ele precisava dormir e descansar para o trabalho do dia seguinte. Além das dores, ela ainda sentia o pavor de perder novamente a criança que esperava, e mantinha a Antônia e a Firmina dia e noite ao pé da cama. Duas pretas da senzala grande foram chamadas para ocupar a cozinha, e a Maria das Graças e a Esméria passaram para o serviço da casa. Foi no meio dessa confusão toda que eu, depois de meses, deixei a varanda e a cozinha e entrei pela primeira vez na casa-grande, que não era chamada assim por acaso. Fiquei encantada com a sala de muitos móveis, com grandes sofás de madeira escura cobertos por almofadas ricas em bordados e pinturas, inteiras no comprimento do encosto e do assento, e outras soltas, menores, jogadas por cima das maiores. As pequenas eram de crochê ou de renda, de diversas cores e formatos, redondas, retangulares, quadradas, trabalhadas com linha finíssima, formando desenhos muito delicados. Havia também muitas poltronas e cadeiras, algumas da mesma madeira escura dos sofás, com os assentos de palha trançada que davam repouso para mais almofadas, quase todas vermelhas. Havia muito vermelho e dourado pela sala, como os xales jogados sobre bancos e móveis que eu nem sabia para que serviam, e que a Esméria explicou serem para descansar os pés.
À direita da porta da frente ficava um móvel com estátuas de santos, todas muito lindas e algumas vestidas com roupas de verdade, como a Nossa Senhora, a mãe do Menino Jesus, e o São José, o pai. Sobre este móvel também havia um vaso com flores e um castiçal de prata, e era dever da Antônia cuidar para que sempre houvesse lá uma vela acesa e um copo com água. Na parte de baixo do móvel ficava uma tábua um pouco elevada do chão, onde a pessoa se ajoelhava para rezar sobre uma almofada vermelha com bordados e franjas em dourado. Esse móvel tinha um nome também muito bonito, que eu tive dificuldade para aprender a falar, genuflexório. Em cada uma das paredes que separavam a sala da varanda, três janelas protegidas por cortinas, através das quais eu nunca tinha me atrevido a olhar pelo lado de fora, com medo de ser repreendida. Havia também uma mesa redonda com quatro cadeiras e muitas outras mesinhas espalhadas pelos cantos, com objetos de vidro, de prata ou de ouro, como cinzeiros, vasos com flores, caixinhas para rapé, castiçais e garrafinhas, tudo sobre delicadas toalhas de renda. Um outro móvel, com quatro prateleiras e porta de vidro, guardava copos de vários tamanhos e cores, em vidros tão finos que mais pareciam papel colorido, e também alguns pratos com desenhos que a Esméria disse serem do estrangeiro, da Europa, de onde tinham saído as famílias do sinhô e da sinhá. Havia mais pratos desses, com pinturas, pendurados nas paredes, ao lado de quadros que tanto eram de paisagens estrangeiras como de gente. Logo à entrada, ao lado da porta, um outro móvel com guarda-chuvas e capas de chuva, chapéus de todos os tipos, cores e tamanhos, luvas, e o que eu mais gostei, um espelho. Desde que me olhei nele pela primeira vez, não consegui passar um único dia sem voltar a fazê-lo sempre que surgia uma oportunidade. A Esméria parou na frente dele e me chamou, disse para eu fechar os olhos e imaginar como eu era, com o que me parecia, e depois podia abrir os olhos e o espelho me diria se o que eu tinha imaginado era verdade ou mentira. Eu sabia que tinha a pele escura e o cabelo duro e escuro, mas me imaginava parecida com a sinhazinha. Quando abri os olhos, não percebi de imediato que eram a minha imagem e a da Esméria paradas na nossa frente. Eu já tinha me visto nas águas de rios e de lagos, mas nunca com tanta nitidez. Só depois que deixei de prestar atenção na menina de olhos arregalados que me encarava e vi a Esméria ao lado dela, tal qual a via de verdade, foi que percebi para que servia o espelho. Era como a água muito limpa, coisa que, aliás, ele bem parecia.
Eu era muito diferente do que imaginava, e durante alguns dias me achei feia, como a sinhá sempre dizia que todos os pretos eram, e evitei chegar perto da sinhazinha. Quando era inevitável, fazia o possível para deixá-la feia também, principalmente em relação aos penteados. Pegava em seus cabelos com as mãos sujas de banha ou de terra e inventava maneiras estranhas de prendê-los. Sem a sinhá por perto e com a sinhazinha enfrentando a Esméria e a Antônia dizendo que, se eu tinha feito, então estava bonito, pois elas não entendiam nada de penteados, ficava por aquilo mesmo, e eu ria sozinha pelos cantos. O sinhô José Carlos não ligava para essas coisas; aliás, ele não ligava para a filha, por não ter o dom do afeto e por considerá-la culpada pela morte da mãe. E assim foi até o dia em que comecei a me achar bonita também, pensando de um modo diferente e percebendo o quanto era parecida com a minha mãe. O espelho passou a ser diversão, e eu ficava longo tempo na frente dele, fazendo caretas e vendo a minha imagem repeti-las, até o dia em que a sinhazinha viu e me chamou para ir ao quarto dela. A Esméria tinha dito para eu nunca entrar lá, porque, se sumisse alguma coisa, poderiam dizer que eu tinha roubado. Mas como a sinhazinha insistiu e eu morria de curiosidade, fui. Andamos pelo longo corredor que tinha o mesmo piso da sala, de tábuas largas e compridas, uma mais clara ao lado de outra mais escura, com tapetes coloridos jogados de espaço a espaço. O corredor era escuro, pois não tinha janelas como os outros cômodos, somente muitas portas fechadas e três lamparinas, que ficavam apagadas durante o dia.
Quando a porta do quarto da sinhazinha se abriu, eu me imaginei entrando em um outro mundo, cor-de-rosa como o tapete que cobria o chão. Tudo era dourado, branco ou cor-de-rosa, como a cama e o dossel, onde estava presa uma cortina feita de tecido muito leve e transparente, salpicado de flores bordadas. Ou a cômoda e o armário, onde ficavam guardadas as roupas e os sapatos, assim como o móvel que tomava toda uma parede e estava cheio de brinquedos de variados tipos, tamanhos e cores, principalmente bonecas. No chão, em meio a algumas almofadas, um cavalo de madeira pintado de branco com os pés iguais aos da cadeira de balanço em que a sinhá se sentava na varanda, com o rabo e a crina cor-de-rosa trançados e amarrados com fita. A sinhazinha abriu a porta do armário e eu vi mais roupas do que dez crianças juntas poderiam vestir, e, na porta, no lado de dentro, um imenso espelho, onde era possível ver nós duas juntas, de pé e de corpo inteiro. Fiquei fascinada, e mais ainda quando ela disse que eu podia pegar uma roupa para ver como ficava em mim. Ela era maior que eu, mas, mesmo assim, escolhi um vestido longo, do mesmo tecido da cortina que rodeava a cama, com diversas camadas de saias rodadas, sendo que a de cima estava bordada com minúsculas borboletas coloridas. Ela também me emprestou pares de luvas e sapatos que não couberam nos meus pés, mas fiz questão de ficar equilibrada em cima deles, com os dedos enfiados o mais que eu podia aguentar. A sinhazinha buscou na sala uma sombrinha cor-de-rosa, que combinava com todo o resto e completava o meu fascínio.
Olhando no espelho, eu me achei linda, a menina mais linda do mundo, e prometi que um dia ainda seria forra e teria, além das roupas iguais às das pretas do mercado, muitas outras iguais às da sinhazinha. Ela também deve ter me achado bonita e ficado com ciúme, pois logo deu a brincadeira por terminada e pediu que eu tirasse tudo antes que estragasse, ou antes que a sinhá Ana Felipa aparecesse e brigasse com nós duas. Mas a sinhá não ia aparecer, ela não se levantava da cama, para ver se conseguia segurar a criança que estava esperando, deixando a sinhazinha Maria Clara inteiramente aos cuidados da Esméria. E era bem possível que a sinhá não aparecesse nem se estivesse boa, pois comentavam que depois que ela se casou com o sinhô José Carlos, meses após a morte da sinhá Angélica, quando deveria ser uma mãe substituta para a sinhazinha, nunca cuidou da menina. Diziam que até a maltratava, e depois se tornou indiferente, como era naquela época. A indiferença ainda era acrescida de rancor, porque a sinhazinha Maria Clara era a lembrança de que ela não conseguia dar filhos ao sinhô José Carlos, ao contrário da finada sinhá Angélica e de algumas pretas, como diziam ser o caso da mãe do Tico e do Hilário.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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