quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Pesquisa

Dá licença, cavalheiro? Permite que eu roube dois minutos de sua preciosa atenção? É assunto de interesse geral, esteja certo. Do contrário, não seria eu que viria importuná-lo. Sou muito respeitador do tempo dos outros, lá isto sou. Negócio seguinte. Quer colaborar comigo na pesquisa sociocultural sobre o dia do morador da Guanabara, no tocante à mobilidade? Não se molesta se eu lhe fizer umas perguntinhas ligeiras? Vai responder direitinho, pois não? Ótimo. Bem, a que horas o amigo habitualmente sai de casa? Todos os dias úteis? Ah, depende da noite anterior? Compreendo, mas sai almoçado ou almoça na cidade? Tem carro, é claro? Onde é a garagem? Quantos minutos até lá, para pegá-lo? Se ele está na oficina, vai de táxi, é lógico? Sempre o mesmo, já combinado, ou qualquer um que passe na esquina? E qual o itinerário, se não é indiscrição? Sozinho? Então dá carona aos amigos? E, se não for indagar demais: a moças conhecidas ou desconhecidas? Como? Onde costuma acontecer isso? Uma garota só, mais de uma, como é? Costuma desviar o rumo para ser gentil? Compreendo, compreendo. Quanto tempo leva no percurso normal? E no anormal, o máximo até agora qual foi? Na cidade, onde estaciona? Só a três quilômetros de distância do escritório? Em que rua fica esse edifício? Barão de quê? Das Calças Largas? E o andar, qual é? Os elevadores enguiçam muito? O quê? já subiu a pé vinte andares? E depois foi atendido onde: no Sousa Aguiar ou no Prontocor? Trabalha firme até a hora do almoço? E a que hora é o almoço? Desce para almoçar? O restaurante fica onde? Sempre o mesmo, ou gosta de variar? Sozinho, é? Ah, sim, mas sempre com a mesma pessoa? Como? Varia? Claro, claro. Depois do almoço dá uma voltinha? A que hora está de novo no trabalho? E seu lanche, quando é? Lá em cima mesmo? Quanto tempo leva isso? Costuma descer outras vezes, durante a jornada de trabalho? Para fazer o quê, hem? Sozinho? Mas lojas de que ruas? Demora muito? E o banco, onde é? Outros escritórios também? No mesmo perímetro, é? Pode cronometrar essas atividades externas? Digamos, aproximadamente? Nesses casos, o senhor ainda volta ao escritório, ou? Há outras interrupções de ritmo, que obriguem deslocamento de sua pessoa? Outras, sei lá? O senhor é que deve saber. Fecha a que hora, meu amigo? Sempre, sempre? Mesmo em ocasião de balanço? Balanço no sentido verdadeiro, essa é boazinha, não? Resumindo, acabado o serviço vai direto ao carro, provavelmente? Já sei, passa talvez no bar? Onde fica isso? É bacana? Sozinho, desta vez? Mas é questão de muito tempo? De lá segue para onde, meu caro? Não ouvi bem, faz o obséquio de repetir? Coisa de meia, uma hora no máximo? Como? Nem perto nem longe? Então é prático, hem? Mas de lá até o estacionamento, quantos minutos? Ah, já estava no carro? Não entendi nada. Será que temos de refazer esta parte do roteiro, para ficar mais claro? Acha que não precisa? Tá bom, deixa. E após, como dizem os puristas? Direto pra casa, adivinhei? Aproveita para passar no posto de gasolina, é? A que altura? Mas então, a que hora consegue chegar em casa, se é que chega? Digamos, o mais tardar? Guardou o carro em que fração de tempo? O jantar é servido sempre à mesma hora? Qual? Depois, vê televisão com a família, ou sai para um cineminha? Acompanhado? É no bairro, ou vai aonde tiver um bom lançamento por aí? No que tiver menos pulga? Boa, essa. E onde é que tem menos? eu também quero ir lá. No seu carro, num de praça, ou no de um amigo? Duas, três vezes por mês ou por semana? Só? E boate? A mesma sempre, ou estica em outras? Em que ruas? Qual o tempo de permanência habitual? E quantas vezes por mês, felizardo? Será que me esqueci de algum detalhe, alguma faixa do seu dia que… Não pode me ajudar, lembrando? Vamos, lembre, lembre, é tão simples. Bem, agora o seu fim de semana. Quais os movimentos do meu amigo, a partir do instante em que põe o pé na rua, no sábado? Falta pouco para terminar, mas que é isso? Está se sentindo mal? Aborrecido comigo? Porventura acha que fui indiscreto, eu que tive o maior cuidado em não devassar o que quer que fosse de sua vida particular, dos refolhos de sua privacy? Não, isso não, espere lá, não precisa me dar bolacha, eu saio imediatamente, até logo, socorro, socorro!

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

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