quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

O som do rugido da onça | X

A travessia do mar para os prisioneiros era uma coisa totalmente diferente do que era para os cientistas, muito embora para uns e outros fosse conflitiva. Para Spix e Martius, se transportava um jardim de maravilhas, um terrário preparado com cuidado e que transplantavam, fervorosos, reverentes, para deleite dos homens e das mulheres e crianças do seu povo. Para regalo próprio, de outros estudiosos e do seu rei. Para as crianças e os animais, levados contra a vontade, ao contrário, tudo aquilo era um rasgo profundo, inflamado. Gritos aflitos pareciam ecoar nos trovões que despencavam bolas impossíveis de fogo e água por sobre a embarcação. Adoeciam. Passavam fome e sede. Por ordens expressas do capitão, toda água e toda ração eram restritas a porções ínfimas, muito embora as provisões dos cientistas tivessem sido pagas e levadas por eles mesmos para seu próprio consumo, das crianças, dos animais vivos e das plantas.
O capitão, um bruto. Homem ruim. Yurupari o cegue com o seu raio, Yurupari o devore e o vomite, desejava a menina, e não apenas ela.
O capitão gritava com Martius, que reclamava do severo racionamento. Martius gritava com o capitão e teria ímpetos de matá-lo, se isso não custasse a sua própria vida. Com Spix mais enfraquecido do que ele, era seu o dissabor do embate com aquele sujeito tosco, que definitivamente não alcançava a importância de preservar o tesouro que tinha sob seus cuidados. Ao capitão, por feroz e desalmado que fosse, e era, só interessava chegar, sem motins, sem homens com facão em seu pescoço ou sua carne dada de comer aos monstros do mar. Se para isso fosse necessário deitar fora o que considerasse excedente, paciência. Entre dedos e anéis, preferia os dedos.
Os bichos foram os primeiros a morrer. Em seguida, as crianças. O caminho do mar transformado em uma vala comum e inconstante. Crianças e bichos, todos tombados na água sem nenhum ritual, como duras tábuas de madeira despencadas em túmulo semovente. Longe de suas famílias, nunca encontrariam o caminho para qualquer terra sem males onde pudessem se reunir com seus ancestrais.
Yurupari encontraria seus espíritos e os resgataria daquelas águas estranhas e vorazes? Iñe-e não sabia responder àquilo, apenas esperava o dia em que fosse também jogada já sem vida àquele pasto de peixes e criaturas assombrosas, e sentia que morria em cada morte que testemunhava. Perdia o chão deste mundo, aquele chão instável do assoalho do navio, em cada companheiro seu que expirava. Morreu com a menina pequena que murchou em dois dias, o sangue saindo em jatos de sua boca. Morreu também com o menino do seu tamanho que se foi agarrado ao irmão menorzinho, os dois gemendo e se contorcendo de dor por toda a noite até que, mal raiando o dia, se fez silêncio e frio dentro e fora deles. Morreu com todos, porque lhe faltava a palavra. E embora respirasse e sentisse o tum-tum do coração dentro da caixa do peito, a certeza era de que morta estava. E uma a uma as crianças foram falecendo, até que sobrassem de pé apenas ela e o menino Juri. E, ao sobreviverem, tanto ela quanto ele sabiam que estava lançada a sua falta de futuro e esperavam, desse modo, apenas a sua hora de também tombar e serem jogados na impiedosa e voraz boca da grande água.
O que, no entanto, só ela sabia, é que no momento em que crianças e bichos morriam, seus espíritos começavam a se desprender dos corpos, como uma lagarta que lentamente deixava para trás o casulo que até pouco tempo antes a continha. Mas, diferente das borboletas, que, tão logo secam suas asas, partem para sua vida de borboleta, os espíritos dos mortos daquelas embarcações passaram a pairar no alto, azulados, como pandorgas que estivessem de algum modo presas aos mastros. Ou como os balões de gás que, atados a fios muito finos e delicados, eram impedidos de ganhar o céu. E assim os espíritos continuaram acompanhando o comboio. Não eram Desencantados, porque neles não havia rigidez, imobilidade; eram matéria fina, inflada, com olhos enormes e a tudo atentos. Muito embora parecesse, não era aos barcos, galeras e escunas que aqueles espíritos estavam presos. Eles estavam mesmo atados aos cientistas, que, sem saber, arrastavam os fios daquelas almas aonde quer que fossem ou estivessem. Iñe-e não os via, mas os pressentia espreitando os dias dos vivos, se esforçando para pedir alguma coisa que ela não sabia o que era ao certo, mas imaginava.
Quando a caravana aportou em Lisboa, os espíritos dos mortos continuaram a segui-los, e se alguém pudesse de fato vê-los talvez se espantasse de que acima do adormecido Spix, que descansava em uma cama de madeira escura, em um quarto cheio de móveis e bibelôs, na noite do dia 6 de outubro de 1820, havia ao menos uma menina, um menino, três serpentes e um macaco a observar seu sono, todos colados ao teto, todos com seus grandes olhos que nunca se fechavam.
Sobre Martius pairavam uns outros tantos, como se dividissem entre si a função de vigiá-los. E assim seguiam, mortos e vivos dia após dia, noite após noite, pelos corredores, pelas salas de jantar dos palacetes, pelos gabinetes, pelas ruas da cidade, os espíritos observando os modos como aqueles homens andavam, como se despiam, como suavam à noite entre febres por baixo das cobertas. Incansáveis, não abandonavam seus postos, e continuaram atados aos homens quando a caravana seguiu seu rumo, saindo da capital portuguesa para Madri, de lá para Valência, Tarragona, Barcelona, por entre os Pirineus, Perpignan, Lyon, Alsácia, entrando em Estrasburgo pelo Reno até que chegassem, finalmente, à capital da Baviera, a cidade dos monges.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

Nenhum comentário:

Postar um comentário