A
travessia do mar para os prisioneiros era uma coisa totalmente
diferente do que era para os cientistas, muito embora para uns e
outros fosse conflitiva. Para Spix e Martius, se transportava um
jardim de maravilhas, um terrário preparado com cuidado e que
transplantavam, fervorosos, reverentes, para deleite dos homens e das
mulheres e crianças do seu povo. Para regalo próprio, de outros
estudiosos e do seu rei. Para as crianças e os animais, levados
contra a vontade, ao contrário, tudo aquilo era um rasgo profundo,
inflamado. Gritos aflitos pareciam ecoar nos trovões que despencavam
bolas impossíveis de fogo e água por sobre a embarcação.
Adoeciam. Passavam fome e sede. Por ordens expressas do capitão,
toda água e toda ração eram restritas a porções ínfimas, muito
embora as provisões dos cientistas tivessem sido pagas e levadas por
eles mesmos para seu próprio consumo, das crianças, dos animais
vivos e das plantas.
O
capitão, um bruto. Homem ruim. Yurupari o cegue com o seu raio,
Yurupari o devore e o vomite, desejava a menina, e não apenas ela.
O
capitão gritava com Martius, que reclamava do severo racionamento.
Martius gritava com o capitão e teria ímpetos de matá-lo, se isso
não custasse a sua própria vida. Com Spix mais enfraquecido do que
ele, era seu o dissabor do embate com aquele sujeito tosco, que
definitivamente não alcançava a importância de preservar o tesouro
que tinha sob seus cuidados. Ao capitão, por feroz e desalmado que
fosse, e era, só interessava chegar, sem motins, sem homens com
facão em seu pescoço ou sua carne dada de comer aos monstros do
mar. Se para isso fosse necessário deitar fora o que considerasse
excedente, paciência. Entre dedos e anéis, preferia os dedos.
Os
bichos foram os primeiros a morrer. Em seguida, as crianças. O
caminho do mar transformado em uma vala comum e inconstante. Crianças
e bichos, todos tombados na água sem nenhum ritual, como duras
tábuas de madeira despencadas em túmulo semovente. Longe de suas
famílias, nunca encontrariam o caminho para qualquer terra sem males
onde pudessem se reunir com seus ancestrais.
Yurupari
encontraria seus espíritos e os resgataria daquelas águas estranhas
e vorazes? Iñe-e não sabia responder àquilo, apenas esperava o dia
em que fosse também jogada já sem vida àquele pasto de peixes e
criaturas assombrosas, e sentia que morria em cada morte que
testemunhava. Perdia o chão deste mundo, aquele chão instável do
assoalho do navio, em cada companheiro seu que expirava. Morreu com a
menina pequena que murchou em dois dias, o sangue saindo em jatos de
sua boca. Morreu também com o menino do seu tamanho que se foi
agarrado ao irmão menorzinho, os dois gemendo e se contorcendo de
dor por toda a noite até que, mal raiando o dia, se fez silêncio e
frio dentro e fora deles. Morreu com todos, porque lhe faltava a
palavra. E embora respirasse e sentisse o tum-tum do coração dentro
da caixa do peito, a certeza era de que morta estava. E uma a uma as
crianças foram falecendo, até que sobrassem de pé apenas ela e o
menino Juri. E, ao sobreviverem, tanto ela quanto ele sabiam que
estava lançada a sua falta de futuro e esperavam, desse modo, apenas
a sua hora de também tombar e serem jogados na impiedosa e voraz
boca da grande água.
O
que, no entanto, só ela sabia, é que no momento em que crianças e
bichos morriam, seus espíritos começavam a se desprender dos
corpos, como uma lagarta que lentamente deixava para trás o casulo
que até pouco tempo antes a continha. Mas, diferente das borboletas,
que, tão logo secam suas asas, partem para sua vida de borboleta, os
espíritos dos mortos daquelas embarcações passaram a pairar no
alto, azulados, como pandorgas que estivessem de algum modo presas
aos mastros. Ou como os balões de gás que, atados a fios muito
finos e delicados, eram impedidos de ganhar o céu. E assim os
espíritos continuaram acompanhando o comboio. Não eram
Desencantados, porque neles não havia rigidez, imobilidade; eram
matéria fina, inflada, com olhos enormes e a tudo atentos. Muito
embora parecesse, não era aos barcos, galeras e escunas que aqueles
espíritos estavam presos. Eles estavam mesmo atados aos cientistas,
que, sem saber, arrastavam os fios daquelas almas aonde quer que
fossem ou estivessem. Iñe-e não os via, mas os pressentia
espreitando os dias dos vivos, se esforçando para pedir alguma coisa
que ela não sabia o que era ao certo, mas imaginava.
Quando
a caravana aportou em Lisboa, os espíritos dos mortos continuaram a
segui-los, e se alguém pudesse de fato vê-los talvez se espantasse
de que acima do adormecido Spix, que descansava em uma cama de
madeira escura, em um quarto cheio de móveis e bibelôs, na noite do
dia 6 de outubro de 1820, havia ao menos uma menina, um menino, três
serpentes e um macaco a observar seu sono, todos colados ao teto,
todos com seus grandes olhos que nunca se fechavam.
Sobre
Martius pairavam uns outros tantos, como se dividissem entre si a
função de vigiá-los. E assim seguiam, mortos e vivos dia após
dia, noite após noite, pelos corredores, pelas salas de jantar dos
palacetes, pelos gabinetes, pelas ruas da cidade, os espíritos
observando os modos como aqueles homens andavam, como se despiam,
como suavam à noite entre febres por baixo das cobertas.
Incansáveis, não abandonavam seus postos, e continuaram atados aos
homens quando a caravana seguiu seu rumo, saindo da capital
portuguesa para Madri, de lá para Valência, Tarragona, Barcelona,
por entre os Pirineus, Perpignan, Lyon, Alsácia, entrando em
Estrasburgo pelo Reno até que chegassem, finalmente, à capital da
Baviera, a cidade dos monges.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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