terça-feira, 5 de maio de 2020

O rei e o feno

O rei Nabucodonosor, castigado por Deus, e conforme o predito por voz misteriosa, começou a alimentar-se de feno, como os bois. Isto não é novidade, e consta dos livros santos. Estes, contudo, omitiram pormenor transmitido por velho pedreiro de Babilônia a seus filhos e, de geração a geração, chegado oralmente aos dias de hoje.
A princípio o feno tinha gosto de mel e muito aprazia ao paladar do monarca. Assim como assim, era punição leve, e podia considerar-se gentileza do Altíssimo. Nabucodonosor não se queixava, até mesmo lambia os beiços. Mas depois o feno foi perdendo a doçura e recuperando sua natureza. Era feno mesmo. O rei decaído surpreendeu-se um dia emitindo mugidos de vaca.
Os doutores babilônicos reunidos para analisar o fenômeno dividiram-se em dois grupos. Este entendia que algum anjo complacente, encarregado de cumprir a ordem divina, operara a transmutação de gosto, mas, roído de escrúpulos, acabara por executá-la à risca. O outro opinou que a ordem era aquela mesma, e pretendia iludir o rei por algum tempo, para tornar mais rude a sentença. Houve empate na votação.
Nabucodonosor terminou assumindo forma bovina. Completamente.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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