terça-feira, 5 de maio de 2020

Golpe de Estado

Essas bizantinices e complicações estão a pedir um golpe de Estado. Por causa delas é que alguns estudantes acham “difícil” o português, isto é, a língua em que eles, com toda a facilidade, acabam de me fazer essa estranha confissão. Mas se o português é tão difícil assim, retruco-lhes, como é que vocês o estão falando? Aí eles arregalam os olhos, como se tivessem descoberto a pólvora.
Embora não tão assustadoramente como hoje, também no meu tempo o português era “difícil” — uma espécie de casuística, e por isso mesmo pervertia a alma e o gosto, como acontecia aos que costumavam então assistir aos debates no júri; tanto assim que li com supremo gozo a Réplica de Rui Barbosa e, até os dezessete anos, procurei como um louco, mas em vão, a Tréplica de Carneiro Ribeiro...
Por essas e outras coisas, confesso que aprendi a gramática francesa com mais facilidade do que a gramática da minha língua. É que a gramática francesa não tinha gramatiquices. Era pão pão, queijo queijo. Agora que infelizmente não mais se aprende nem se lê francês, aqueles mesmos estudantes acham que o inglês, este sim, é uma língua fácil. Pudera não! Como está tão codificado como o francês, o inglês não dá ensejo a hesitações. Não se extravia perplexo, entre a Virtude e o Pecado, quero dizer, entre “o certo” e “o errado”. O inglês não tem casos de consciência.
Diante disto, o golpe de Estado que prego e preconizo é a decretação de uma Gramática Oficial.
Ora, direis, mas os gramáticos...? Ah, sim, os gramáticos! Mas desde que façam voto de simplicidade e portanto de clareza. E elaborem em conjunto um manual básico, acessível a todos, nada mais que com as regras essenciais da nossa língua — essas poucas mas sagradas regras cuja transgressão é verdadeiramente um ato subversivo.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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