segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O ciclo


Claro que o western clássico não representou para a imaginação norte-americana o mesmo que representou para a nossa. Lá a trajetória glorificada do herói desbravador codificava, ao mesmo tempo que absolvia, a violência da conquista. Primeiro na literatura popular e depois no cinema, o western elevado à categoria de mito consagrou-se como a alegoria oficial para a grande e brutal aventura americana. Com ligeiras modificações, o herói do Oeste adaptava-se a qualquer cenário, à Chicago dos anos 20 tanto quanto ao Pacífico da Segunda Guerra ou — em Os boinas verdes, certamente o último western clássico da história do cinema — ao Vietnã. Para nós, o desbravador assumia todos os riscos e toda a culpa da conquista, e no fim nos presenteava, não com um continente, pois o nosso continuava virgem, mas com uma estética da conquista. Em vez de uma alegoria da ação, nascida da necessidade de legitimar em termos universais a violência da história norte-americana, uma cultura prêt-à-porter que nos eximia de fazer história.
Até pouco tempo, mesmo a melhor crítica de cinema dos Estados Unidos espantava-se com a importância que no resto do mundo se dava ao western e a diretores como Hathaway etc. É lógico. Lá o mito diluíra-se num ritual rotineiro, tão vital para a conservação de um ethos coletivo, mas ao mesmo tempo tão banal quanto, por exemplo, a missa de todos os domingos. Já para a crítica europeia — a nossa inclusive — o mito conservava seu fascínio antropológico e sua função como metáfora daquilo que é, afinal, o cerne de toda a experiência do Novo Mundo: o encontro da civilização ocidental com os seus limites, o sangrento rompimento desses limites e a sobrevivência ou a transformação dos seus valores depois do rompimento.
Se o herói clássico do Oeste tinha significados diferentes para eles e para nós, é claro que sua decadência também tem. Os norte-americanos estavam muito ocupados fazendo a história do Novo Mundo para compreendê-la. Nós, com efeito, antecipamos a sua desilusão. Os semi-heróis dos primeiros filmes de Peckinpah estavam apenas cansados, mas nós já identificávamos por trás do seu desânimo uma ponta de remorso pela participação no crime da conquista. É muito recente, a súbita descoberta nos Estados Unidos da calhordice do seu passado e da hipocrisia dos seus métodos. O desgosto geral com a guerra no Vietnã teve muito a ver com isso, mas a ascendência da linha revisionista marxista entre os novos historiadores americanos teve mais. Para nós, bastou crescermos um pouco e descobrirmos os heróis da infância sob novo ângulo. Um leve reajustamento do enfoque estético. Para o norte-americano, a revisão da sua história imaginária chega às beiras da autoflagelação. A violência aparentemente gratuita de Meu ódio será sua herança deve ser vista como um ato de contrição. Nós nunca fomos mais do que isto, dizem finalmente os velhos desbravadores. Homens sedentos de lucro e sangue. No fim não fica nada. Nem a glória nem os espólios da conquista. Nem ideal. Nem história. Fica a mística do grupo, que antecede a todas as culturas. Fica o amor ascético entre homens. Fica o prazer de matar. Fica a morte, que lava toda a culpa.
Outra coisa, para mim a mais curiosa. Meu ódio será sua herança é o mais recente de uma série de westerns que se intrometem na história do México — violenta como poucas outras — e assumem por tabela um pouco da sua relevância política. É como se no fim das suas carreiras inglórias nossos heróis desiludidos quisessem pôr sua violência a um uso que os redimisse, ajudando a revolução. E assim nós, americanos imaginários, descobrimos nossos antigos ídolos transformados em latinos imaginários. O ciclo se fecha. É a nossa vez de subir ao palco e fazer história. O Novo Mundo está conquistado. Falta ajustá-lo.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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