Claro
que o western clássico não representou para a imaginação
norte-americana o mesmo que representou para a nossa. Lá a
trajetória glorificada do herói desbravador codificava, ao mesmo
tempo que absolvia, a violência da conquista. Primeiro na literatura
popular e depois no cinema, o western elevado à categoria de
mito consagrou-se como a alegoria oficial para a grande e brutal
aventura americana. Com ligeiras modificações, o herói do Oeste
adaptava-se a qualquer cenário, à Chicago dos anos 20 tanto quanto
ao Pacífico da Segunda Guerra ou — em Os boinas verdes,
certamente o último western clássico da história do cinema
— ao Vietnã. Para nós, o desbravador assumia todos os riscos e
toda a culpa da conquista, e no fim nos presenteava, não com um
continente, pois o nosso continuava virgem, mas com uma estética da
conquista. Em vez de uma alegoria da ação, nascida da necessidade
de legitimar em termos universais a violência da história
norte-americana, uma cultura prêt-à-porter que nos eximia de fazer
história.
Até
pouco tempo, mesmo a melhor crítica de cinema dos Estados Unidos
espantava-se com a importância que no resto do mundo se dava ao
western e a diretores como Hathaway etc. É lógico. Lá o mito
diluíra-se num ritual rotineiro, tão vital para a conservação de
um ethos coletivo, mas ao mesmo tempo tão banal quanto, por exemplo,
a missa de todos os domingos. Já para a crítica europeia — a
nossa inclusive — o mito conservava seu fascínio antropológico e
sua função como metáfora daquilo que é, afinal, o cerne de toda a
experiência do Novo Mundo: o encontro da civilização ocidental com
os seus limites, o sangrento rompimento desses limites e a
sobrevivência ou a transformação dos seus valores depois do
rompimento.
Se
o herói clássico do Oeste tinha significados diferentes para eles e
para nós, é claro que sua decadência também tem. Os
norte-americanos estavam muito ocupados fazendo a história do Novo
Mundo para compreendê-la. Nós, com efeito, antecipamos a sua
desilusão. Os semi-heróis dos primeiros filmes de Peckinpah estavam
apenas cansados, mas nós já identificávamos por trás do seu
desânimo uma ponta de remorso pela participação no crime da
conquista. É muito recente, a súbita descoberta nos Estados Unidos
da calhordice do seu passado e da hipocrisia dos seus métodos. O
desgosto geral com a guerra no Vietnã teve muito a ver com isso, mas
a ascendência da linha revisionista marxista entre os novos
historiadores americanos teve mais. Para nós, bastou crescermos um
pouco e descobrirmos os heróis da infância sob novo ângulo. Um
leve reajustamento do enfoque estético. Para o norte-americano, a
revisão da sua história imaginária chega às beiras da
autoflagelação. A violência aparentemente gratuita de Meu ódio
será sua herança deve ser vista como um ato de contrição. Nós
nunca fomos mais do que isto, dizem finalmente os velhos
desbravadores. Homens sedentos de lucro e sangue. No fim não fica
nada. Nem a glória nem os espólios da conquista. Nem ideal. Nem
história. Fica a mística do grupo, que antecede a todas as
culturas. Fica o amor ascético entre homens. Fica o prazer de matar.
Fica a morte, que lava toda a culpa.
Outra
coisa, para mim a mais curiosa. Meu ódio será sua herança é
o mais recente de uma série de westerns que se intrometem na
história do México — violenta como poucas outras — e assumem
por tabela um pouco da sua relevância política. É como se no fim
das suas carreiras inglórias nossos heróis desiludidos quisessem
pôr sua violência a um uso que os redimisse, ajudando a revolução.
E assim nós, americanos imaginários, descobrimos nossos antigos
ídolos transformados em latinos imaginários. O ciclo se fecha. É a
nossa vez de subir ao palco e fazer história. O Novo Mundo está
conquistado. Falta ajustá-lo.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
Nenhum comentário:
Postar um comentário