quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Sacramentos

Fonte: Google Imagens

Sociedades se constroem quando os homens concordam sobre coisas grandes. A amizade acontece quando os homens concordam sobre coisas pequenas. Faz tempo escrevi um artigo longo sobre um tema que esqueci. O dito artigo levou um dos meus leitores do sul de Minas a escrever-me uma carta. Escreveu-me não para comentar o artigo – irrelevante –, mas para dizer que ficara comovido porque, num certo lugar, eu falara sobre “o cheiro bom do capim-gordura”. A partir dessa imagem, a um tempo visual e nasal – pois havia a visão do campo de capim-gordura e o cheiro do capim-gordura –, ele se pôs a descrever sua experiência diária: passava, de manhãzinha, sol ainda não nascido, por um campo coberto de capim-gordura. “O silêncio verde dos campos...” E havia a névoa misteriosa que tudo envolvia. De vez em quando, o barulhinho de algum regato que corria invisível, coberto pela vegetação. E, saindo dele, como se fosse sua respiração, seu mais profundo segredo, o perfume. Mistério. Mistério, essa palavra misteriosa. Em inglês, a palavra mistério se escreve “mystery”. Pois um dia, por inspiração imediata, passei a escrevê-la de uma forma diferente: misteerie. “Mist” é neblina. E “eerie” quer dizer assombroso, que provoca medo. Acho que minha grafia, inspirada na poesia, é melhor que a grafia do dicionário, derivada da etimologia. Essa é a minha contribuição para a língua inglesa. É isso que se sente de manhãzinha, sozinho, ao caminhar pelos campos de capim-gordura. Não há igreja, templo ou santuário que se lhe compare. Essas caixas de tijolo e cimento que os empresários da religião constroem para engaiolar o sagrado, na maior parte das vezes provocam-me o sentimento oposto, de horror estético. Deus deve ter muito mau gosto... Pois é: quando li aquela carta imediatamente me descobri amigo daquele homem distante. Se não me equivoco, o seu nome era Gerson e vive em Poços de Caldas. Sempre que vejo capim-gordura me lembro dele. De todo o palavrório que escrevi naquele artigo, o que sobrou, o que valeu, foi uma imagem imobilizada num momento eterno: o capim-gordura, com o seu cheiro bom...
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Nenhum comentário:

Postar um comentário