Porque
se a trombeta der um som confuso, quem se preparará para a batalha?
(Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, XIV, 8)
Alexandre
Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar
da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem
vencidos. Dez.
Não
demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma
resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um
longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável
aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas
não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.
Parou
diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase,
escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão
esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a
girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não
conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que
usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela
veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro
de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada
numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os
móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis
voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um
biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada.
Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito
imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de
cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver.
Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se
afastasse.
Também
a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a
oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e
logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho.
Deles emergia uma penosa tonalidade azul.
Naquela
sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as
esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:
—
Estava à sua espera — disse, com uma
voz macia.
Alexandre
não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu
interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas
palavras duras, num vão de escada.
O
outro teve que insistir:
—
Afinal, você veio. Subtraído
bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não
demonstrar espanto:
— Ah,
esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como
se de repente viesse à tona uma irritação antiga:
—
Impossível! Nunca você poderia calcular
que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está
informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau
farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu
encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando,
mudando de lugar e nome.
— Não
sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.
—
Então, como fez para adivinhar a data da
minha chegada?
— Nada
adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, desta cadeira,
na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você
viria.
Por
instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para
desvendar o jogo em que se empenhavam.
Alexandre
pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente
assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto,
percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:
— Antes
que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me —
quero saber o que aconteceu com Ema.
— Nada
— respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.
— Nada?
Alexandre
percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação.
Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranquilidade
que iam no rosto do outro venceram-no.
—
Abandonou-me — deixou escapar,
constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um
resto de altivez, acrescentou:
— Disso
você não sabia!
Um
leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:
—
Calculava, porém desejava ter certeza.
Começava
a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para
certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os
ligariam.
O
velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico
que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou
em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria desnecessária.
Alexandre impediu que a fizesse. Gesticulando, nervoso, aproximara-se
da mesa:
— Seu
caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo?
Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.
— Não,
além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.
— O
que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!
— Não
posso.
— Não
pode ou não quer?
— Estou
impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa
espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.
Alexandre
olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos
poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu
para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a
atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu
desmaiado no chão.
Ao
levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo
dela, iria jogar a chave.
Lançou-se
na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já
concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do
adversário:
— Eu
esperava que você tentaria o suicídio e tomei a precaução de
colocar telas de aço nas janelas.
A
fúria de Alexandre chegara ao auge:
—
Arrombarei a porta. Jamais me prenderão
aqui!
—
Inútil. Se tivesse reparado nela,
saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.
—
Gritarei, berrarei!
— Não
lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os
empregados, despejei os inquilinos.
E
concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:
— Aqui
ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.
Murilo
Rubião, in Obra completa
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