domingo, 17 de dezembro de 2017

II - que trata da primeira saída que o engenhoso dom quixote fez de sua terra

Don Quixote, de Pablo Picasso

Tomadas essas providências, não quis esperar mais tempo para pôr seus planos em prática, incitando-o a falta que pensava que fazia no mundo com sua demora, por causa das afrontas que queria reparar, erros que corrigir, injustiças que emendar, abusos que sanar e dívidas que cobrar. Assim, sem avisar pessoa alguma de sua intenção e sem que ninguém o visse, bem cedinho, antes que nascesse um dos dias mais quentes do mês de julho, vestiu a armadura e montou em Rocinante; posto o mal composto elmo, enfiou o braço na adarga, empunhou a lança e saiu para o campo pela porta dos fundos do quintal, com enorme contentamento e alvoroço por ver com que facilidade havia começado seu bom desejo. Contudo, mal se viu no campo, assaltou-lhe um pensamento terrível, que por pouco não o fez abandonar a empresa: veio-lhe à memória que não era armado cavaleiro e que, conforme a lei da cavalaria, nem podia nem devia pegar em armas contra nenhum cavaleiro; e, mesmo que o fosse, tinha de levar armas brancas, 1 como cavaleiro estreante, sem divisa no escudo, até que com sua coragem a ganhasse. Esses pensamentos o fizeram vacilar em seu propósito, mas, podendo mais sua loucura que qualquer outra razão, lembrou de se fazer armar cavaleiro pelo primeiro com que topasse, como muitos outros que assim fizeram, conforme havia lido nos livros que o deixaram nesse estado. Quanto às armas, pensava limpá-las de tal maneira, tendo oportunidade, que ficariam mais brancas que um arminho. Com isso se tranquilizou e prosseguiu seu caminho, sem ir por outro que não aquele que seu cavalo queria, achando que nisso consistia a força das aventuras.
Enquanto caminhava, nosso flamante aventureiro dizia consigo mesmo:
Quem duvida que, nos tempos futuros, quando sair à luz a história verídica de meus famosos feitos, o mago que os escrever não o faça desta maneira, quando contar esta minha primeira saída tão cedo?: “Mal o rubicundo Apolo havia estendido pela face da ampla e vasta terra as douradas madeixas de seus formosos cabelos, e mal os pequenos e coloridos passarinhos com suas línguas afinadas haviam saudado com doce e melíflua harmonia a vinda da rosada aurora, que, deixando a macia cama do ciumento marido, pelas portas e varandas do horizonte da Mancha aos mortais se mostrava, quando o famoso cavaleiro dom Quixote de la Mancha, abandonando seu ocioso colchão de penas, montou em seu famoso cavalo Rocinante e começou a andar pelo antigo e conhecido campo de Montiel”.
E era verdade que caminhava por ele. E continuou dizendo:
Afortunada época e século afortunado aquele em que sairão à luz minhas famosas façanhas, dignas de se moldar em bronze, de se esculpir em mármores e se pintar em telas, para lembrança no futuro. Oh, tu, velho mago, quem quer que sejas, a quem há de tocar ser o cronista desta incrível história, rogo-te que não te esqueças de meu bom Rocinante, companheiro eterno em todos os meus caminhos e carreiras!
Depois continuava dizendo, como se realmente estivesse apaixonado:
Oh, princesa Dulcineia, senhora deste cativo coração! Muito me ultrajastes ao despedir-me e reprovar-me com a rigorosa obstinação de mandar-me não aparecer diante de vossa formosura. Comprazei-vos, senhora, recordar deste vosso subjugado coração, que tantas penas padece por vosso amor.
Com esses ia alinhavando outros disparates, todos da maneira que seus livros haviam lhe ensinado, imitando sua linguagem o quanto podia. Por isso caminhava devagar — e o sol subia tão rápido e tão ardente que poderia derreter os miolos dele, se tivesse alguns.
Andou quase todo aquele dia sem que acontecesse coisa alguma digna de se contar, o que o desesperava, porque gostaria de topar de uma vez com alguém que lhe permitisse experimentar o valor e a força de seu braço. Há autores que dizem que sua primeira aventura foi a de Puerto Lápice, outros dizem que a dos moinhos de vento, mas o que pude averiguar nesse caso e encontrei escrito nos anais da Mancha é que andou todo aquele dia até a noite, quando ele e seu pangaré se encontraram cansados e mortos de fome. Olhando para todos os lados para ver se descobria algum castelo ou refúgio de pastores onde se recolher e remediar suas grandes necessidades, o cavaleiro viu uma estalagem, não longe da estrada por onde ia, e foi como se visse uma estrela que o encaminhasse, não aos portais, mas aos palácios de sua redenção. Apressou-se, então, chegando a ela ao anoitecer.
Por acaso estavam à porta duas mulheres jovens, dessas que chamam da vida, que iam a Sevilha com uns tropeiros que naquela noite combinaram pousar na estalagem; e como ao nosso aventureiro tudo quanto pensava, via ou imaginava parecia ser feito e acontecer da maneira como havia lido, logo que avistou a estalagem pensou que era um castelo com suas quatro torres de telhados cônicos de prata cintilante, sem faltar a ponte levadiça e o fosso profundo, com todos aqueles acessórios que se pintam em semelhantes construções. Foi se aproximando da estalagem que a ele parecia castelo e, quando estava perto, puxou as rédeas de Rocinante, à espera de que algum anão se pusesse entre as ameias para anunciar com uma trombeta que chegava um cavaleiro. Mas, como viu que demorava e que Rocinante se apressava para chegar à estrebaria, foi até a porta da estalagem e viu as duas jovens cortesãs, que a ele pareceram duas formosas donzelas ou duas graciosas damas que se entretinham diante da porta do castelo. Por acaso aconteceu que um guardador de porcos (que, sem perdão, assim se chamam) que andava recolhendo seus animais de uns restolhos tocou uma trompa, a cujo sinal eles obedeciam. No mesmo instante pareceu a dom Quixote o que desejava: que algum anão o anunciava. E assim, com singular contentamento, chegou à estalagem e às damas, que, ao verem se aproximar um homem daquele tipo, de armadura, lança e adarga, cheias de medo iam entrar; mas dom Quixote, percebendo pela fuga o medo delas, levantou a viseira de papelão e, descobrindo o rosto seco e empoeirado, com tom gentil e voz calma disse:
Não se esquivem vossas mercês nem temam algum desaguisado, cá à ordem de cavalaria que professo não pertence nem tange agravar ninguém, muito menos a tão nobres donzelas como vossos feitios demonstram.
As moças olhavam-no, buscando o rosto que a péssima viseira encobria; mas, como ouviram ser chamadas de donzelas, coisa tão alheia a sua profissão, não puderam conter o riso, que foi tanto que dom Quixote chegou a se irritar e lhes dizer:
Bem parece a mesura nas fermosas e, ademais, é sandice o riso que procede de causa acanhada. Mas não vos profiro isso para que vos acabrunheis nem mostreis mau talante, que o meu não é outro que vos servir.
A linguagem, não entendida pelas senhoras, e o mau porte de nosso cavaleiro aumentavam nelas o riso, o que aumentava nele a irritação, e a coisa teria ido adiante se naquele ponto não saísse o estalajadeiro, homem que, por ser muito gordo, era muito pacífico, e que vendo aquela figura despropositada, munida de armas tão desiguais como eram a brida, a lança, a adarga e o corselete, não esteve longe de acompanhar as donzelas nas mostras de sua alegria. Mas, na verdade, com medo de todos aqueles apetrechos, resolveu falar comedidamente, dizendo então:
Se vossa mercê, senhor cavaleiro, procura pousada, tudo achará nesta estalagem em grande abundância, exceto o leito, porque não há nenhum.
Dom Quixote, vendo a humildade do alcaide da fortaleza, que isso lhe pareceu o estalajadeiro e a estalagem, respondeu:
Para mim, senhor castelão, qualquer coisa serve, “porque meus adornos são as armas, meu descanso, lutar” etc.
O hospedeiro achou que fora chamado de castelão porque dom Quixote pensou que ele era de Castela, embora fosse andaluz, e daqueles da praia de Sanlúcar, não menos ladrão que Caco nem menos meliante que um pajem experiente, e respondeu:
Então, “as camas de vossa mercê serão duras rochas, e seu dormir, sempre velar”. Assim sendo, pode apear, com a certeza de achar nesta choça muitas oportunidades para não dormir um ano todo, quanto mais uma noite.
E, dizendo isso, foi segurar o estribo para dom Quixote, que apeou com muita dificuldade e trabalho, porque não tinha comido nada durante todo aquele dia.
Em seguida, disse ao hospedeiro que tivesse muito cuidado com seu cavalo, porque era a melhor joia que pastava no mundo. O estalajadeiro olhou para ele e não o achou tão bom como dom Quixote dizia, nem mesmo a metade, mas, acomodando-o na estrebaria, voltou para ver o que o hóspede ordenava. As donzelas, que já haviam se reconciliado com ele, estavam lhe tirando a armadura. Embora houvessem sacado o peitilho e as costas do corselete, jamais souberam nem puderam lhe desencaixar o gorjal nem lhe tirar o elmo mal-ajambrado, preso com umas fitas verdes, que era preciso cortar por causa dos nós, coisa que dom Quixote não consentiu de jeito nenhum, ficando assim toda aquela noite com o elmo posto — a mais engraçada e estranha figura que se podia imaginar. E, enquanto o ajudavam, como ele pensava que aquelas pobres que passaram de mão em mão eram algumas das grandes senhoras e damas do castelo, disse com muita elegância:
Nunca fora cavaleiro
de damas tão bem servido
como fora dom Quixote
quando de sua aldeia veio:
donzelas tratavam dele;
princesas, de seu pangaré,
ou Rocinante, que esse é o nome de meu cavalo, minhas senhoras, e dom Quixote de la Mancha, o meu. Embora eu não quisesse me apresentar até que as façanhas feitas a vosso serviço e proveito me revelassem, a necessidade de adaptar ao propósito presente esse velho romance de Lancelot foi a causa de que viésseis a saber meu nome antes do tempo. Mas dia virá em que vossas senhorias me ordenem e eu obedeça, e o valor de meu braço mostre o desejo que tenho de vos servir.
As moças, que não tinham sido feitas para ouvir semelhantes retóricas, não diziam uma palavra; só perguntaram se ele queria comer alguma coisa.
Qualquer coisa seria um manjar — respondeu dom Quixote —, porque, pelo visto, qualquer uma me calharia bem.
Casualmente aquele dia era uma sexta-feira e em toda a estalagem só havia um pouco de um peixe que em Castela chamam badejo, bacalhau na Andaluzia e peixe seco, ou truchuela, em outros lugares. Perguntaram ao cavaleiro se por acaso sua mercê comeria truchuela, já que não havia outro peixe para lhe oferecer.
Se houver muitas trutinhas — respondeu dom Quixote —, poderão valer uma truta, porque para mim tanto faz se me dão oito reais inteiros ou trocados. Sem falar que pode ser que essas trutinhas sejam como a vitela, que é melhor que a vaca, ou o cabrito, que é melhor que o bode. Mas, seja lá o que for, venha logo, porque não se pode levar o trabalho e o peso das armas sem o governo das tripas.
Puseram-lhe a mesa à porta da estalagem, por ser mais fresco, e o hospedeiro trouxe uma porção do bacalhau que mal tinha ficado de molho e fora mais mal cozido ainda, e um pão tão negro e imundo como sua armadura. Agora, era coisa muito engraçada vê-lo comer, porque, como tinha o elmo posto e a viseira erguida com as mãos, não podia pôr nada na boca se outro não o fizesse, o que levou uma daquelas senhoras a fazer esse trabalho. Mas dar de beber a ele não foi possível, nem o seria, se o estalajadeiro não houvesse furado uma taquara e posto uma ponta em sua boca, derramando vinho pela outra. Dom Quixote aceitava tudo com paciência, em troca de não arrebentar as fitas do elmo. Então chegou um castrador de porcos que, mal entrou, soprou sua flauta de taquaras quatro ou cinco vezes, o que acabou de confirmar a dom Quixote que estava em algum famoso castelo e que lhe serviam com música, que o peixe seco eram trutas, o pão do melhor, as meretrizes damas, o estalajadeiro castelão — e assim dava por bem empregada sua decisão e saída. Mas o que mais o incomodava era não se ver armado cavaleiro, por lhe parecer que não poderia legitimamente se lançar na aventura sem receber a ordem de cavalaria.
Miguel de Cervantes, in Dom Quixote

Nenhum comentário:

Postar um comentário