Don Quixote, de Pablo Picasso
Tomadas
essas providências, não quis esperar mais tempo para pôr seus
planos em prática, incitando-o a falta que pensava que fazia no
mundo com sua demora, por causa das afrontas que queria reparar,
erros que corrigir, injustiças que emendar, abusos que sanar e
dívidas que cobrar. Assim, sem avisar pessoa alguma de sua intenção
e sem que ninguém o visse, bem cedinho, antes que nascesse um dos
dias mais quentes do mês de julho, vestiu a armadura e montou em
Rocinante; posto o mal composto elmo, enfiou o braço na adarga,
empunhou a lança e saiu para o campo pela porta dos fundos do
quintal, com enorme contentamento e alvoroço por ver com que
facilidade havia começado seu bom desejo. Contudo, mal se viu no
campo, assaltou-lhe um pensamento terrível, que por pouco não o fez
abandonar a empresa: veio-lhe à memória que não era armado
cavaleiro e que, conforme a lei da cavalaria, nem podia nem devia
pegar em armas contra nenhum cavaleiro; e, mesmo que o fosse, tinha
de levar armas brancas, 1 como cavaleiro estreante, sem divisa no
escudo, até que com sua coragem a ganhasse. Esses pensamentos o
fizeram vacilar em seu propósito, mas, podendo mais sua loucura que
qualquer outra razão, lembrou de se fazer armar cavaleiro pelo
primeiro com que topasse, como muitos outros que assim fizeram,
conforme havia lido nos livros que o deixaram nesse estado. Quanto às
armas, pensava limpá-las de tal maneira, tendo oportunidade, que
ficariam mais brancas que um arminho. Com isso se tranquilizou e
prosseguiu seu caminho, sem ir por outro que não aquele que seu
cavalo queria, achando que nisso consistia a força das aventuras.
Enquanto
caminhava, nosso flamante aventureiro dizia consigo mesmo:
— Quem
duvida que, nos tempos futuros, quando sair à luz a história
verídica de meus famosos feitos, o mago que os escrever não o faça
desta maneira, quando contar esta minha primeira saída tão cedo?:
“Mal o rubicundo Apolo havia estendido pela face da ampla e vasta
terra as douradas madeixas de seus formosos cabelos, e mal os
pequenos e coloridos passarinhos com suas línguas afinadas haviam
saudado com doce e melíflua harmonia a vinda da rosada aurora, que,
deixando a macia cama do ciumento marido, pelas portas e varandas do
horizonte da Mancha aos mortais se mostrava, quando o famoso
cavaleiro dom Quixote de la Mancha, abandonando seu ocioso colchão
de penas, montou em seu famoso cavalo Rocinante e começou a andar
pelo antigo e conhecido campo de Montiel”.
E
era verdade que caminhava por ele. E continuou dizendo:
—
Afortunada época e século afortunado
aquele em que sairão à luz minhas famosas façanhas, dignas de se
moldar em bronze, de se esculpir em mármores e se pintar em telas,
para lembrança no futuro. Oh, tu, velho mago, quem quer que sejas, a
quem há de tocar ser o cronista desta incrível história, rogo-te
que não te esqueças de meu bom Rocinante, companheiro eterno em
todos os meus caminhos e carreiras!
Depois
continuava dizendo, como se realmente estivesse apaixonado:
— Oh,
princesa Dulcineia, senhora deste cativo coração! Muito me
ultrajastes ao despedir-me e reprovar-me com a rigorosa obstinação
de mandar-me não aparecer diante de vossa formosura. Comprazei-vos,
senhora, recordar deste vosso subjugado coração, que tantas penas
padece por vosso amor.
Com
esses ia alinhavando outros disparates, todos da maneira que seus
livros haviam lhe ensinado, imitando sua linguagem o quanto podia.
Por isso caminhava devagar — e o sol subia tão rápido e tão
ardente que poderia derreter os miolos dele, se tivesse alguns.
Andou
quase todo aquele dia sem que acontecesse coisa alguma digna de se
contar, o que o desesperava, porque gostaria de topar de uma vez com
alguém que lhe permitisse experimentar o valor e a força de seu
braço. Há autores que dizem que sua primeira aventura foi a de
Puerto Lápice, outros dizem que a dos moinhos de vento, mas o que
pude averiguar nesse caso e encontrei escrito nos anais da Mancha é
que andou todo aquele dia até a noite, quando ele e seu pangaré se
encontraram cansados e mortos de fome. Olhando para todos os lados
para ver se descobria algum castelo ou refúgio de pastores onde se
recolher e remediar suas grandes necessidades, o cavaleiro viu uma
estalagem, não longe da estrada por onde ia, e foi como se visse uma
estrela que o encaminhasse, não aos portais, mas aos palácios de
sua redenção. Apressou-se, então, chegando a ela ao anoitecer.
Por
acaso estavam à porta duas mulheres jovens, dessas que chamam da
vida, que iam a Sevilha com uns tropeiros que naquela noite
combinaram pousar na estalagem; e como ao nosso aventureiro tudo
quanto pensava, via ou imaginava parecia ser feito e acontecer da
maneira como havia lido, logo que avistou a estalagem pensou que era
um castelo com suas quatro torres de telhados cônicos de prata
cintilante, sem faltar a ponte levadiça e o fosso profundo, com
todos aqueles acessórios que se pintam em semelhantes construções.
Foi se aproximando da estalagem que a ele parecia castelo e, quando
estava perto, puxou as rédeas de Rocinante, à espera de que algum
anão se pusesse entre as ameias para anunciar com uma trombeta que
chegava um cavaleiro. Mas, como viu que demorava e que Rocinante se
apressava para chegar à estrebaria, foi até a porta da estalagem e
viu as duas jovens cortesãs, que a ele pareceram duas formosas
donzelas ou duas graciosas damas que se entretinham diante da porta
do castelo. Por acaso aconteceu que um guardador de porcos (que, sem
perdão, assim se chamam) que andava recolhendo seus animais de uns
restolhos tocou uma trompa, a cujo sinal eles obedeciam. No mesmo
instante pareceu a dom Quixote o que desejava: que algum anão o
anunciava. E assim, com singular contentamento, chegou à estalagem e
às damas, que, ao verem se aproximar um homem daquele tipo, de
armadura, lança e adarga, cheias de medo iam entrar; mas dom
Quixote, percebendo pela fuga o medo delas, levantou a viseira de
papelão e, descobrindo o rosto seco e empoeirado, com tom gentil e
voz calma disse:
— Não
se esquivem vossas mercês nem temam algum desaguisado, cá à ordem
de cavalaria que professo não pertence nem tange agravar ninguém,
muito menos a tão nobres donzelas como vossos feitios demonstram.
As
moças olhavam-no, buscando o rosto que a péssima viseira encobria;
mas, como ouviram ser chamadas de donzelas, coisa tão alheia a sua
profissão, não puderam conter o riso, que foi tanto que dom Quixote
chegou a se irritar e lhes dizer:
— Bem
parece a mesura nas fermosas e, ademais, é sandice o riso que
procede de causa acanhada. Mas não vos profiro isso para que vos
acabrunheis nem mostreis mau talante, que o meu não é outro que vos
servir.
A
linguagem, não entendida pelas senhoras, e o mau porte de nosso
cavaleiro aumentavam nelas o riso, o que aumentava nele a irritação,
e a coisa teria ido adiante se naquele ponto não saísse o
estalajadeiro, homem que, por ser muito gordo, era muito pacífico, e
que vendo aquela figura despropositada, munida de armas tão
desiguais como eram a brida, a lança, a adarga e o corselete, não
esteve longe de acompanhar as donzelas nas mostras de sua alegria.
Mas, na verdade, com medo de todos aqueles apetrechos, resolveu falar
comedidamente, dizendo então:
— Se
vossa mercê, senhor cavaleiro, procura pousada, tudo achará nesta
estalagem em grande abundância, exceto o leito, porque não há
nenhum.
Dom
Quixote, vendo a humildade do alcaide da fortaleza, que isso lhe
pareceu o estalajadeiro e a estalagem, respondeu:
— Para
mim, senhor castelão, qualquer coisa serve, “porque meus adornos
são as armas, meu descanso, lutar” etc.
O
hospedeiro achou que fora chamado de castelão porque dom Quixote
pensou que ele era de Castela, embora fosse andaluz, e daqueles da
praia de Sanlúcar, não menos ladrão que Caco nem menos meliante
que um pajem experiente, e respondeu:
—
Então, “as camas de vossa mercê serão
duras rochas, e seu dormir, sempre velar”. Assim sendo, pode apear,
com a certeza de achar nesta choça muitas oportunidades para não
dormir um ano todo, quanto mais uma noite.
E,
dizendo isso, foi segurar o estribo para dom Quixote, que apeou com
muita dificuldade e trabalho, porque não tinha comido nada durante
todo aquele dia.
Em
seguida, disse ao hospedeiro que tivesse muito cuidado com seu
cavalo, porque era a melhor joia que pastava no mundo. O
estalajadeiro olhou para ele e não o achou tão bom como dom Quixote
dizia, nem mesmo a metade, mas, acomodando-o na estrebaria, voltou
para ver o que o hóspede ordenava. As donzelas, que já haviam se
reconciliado com ele, estavam lhe tirando a armadura. Embora
houvessem sacado o peitilho e as costas do corselete, jamais souberam
nem puderam lhe desencaixar o gorjal nem lhe tirar o elmo
mal-ajambrado, preso com umas fitas verdes, que era preciso cortar
por causa dos nós, coisa que dom Quixote não consentiu de jeito
nenhum, ficando assim toda aquela noite com o elmo posto — a mais
engraçada e estranha figura que se podia imaginar. E, enquanto o
ajudavam, como ele pensava que aquelas pobres que passaram de mão em
mão eram algumas das grandes senhoras e damas do castelo, disse com
muita elegância:
— Nunca
fora cavaleiro
de
damas tão bem servido
como
fora dom Quixote
quando
de sua aldeia veio:
donzelas
tratavam dele;
princesas,
de seu pangaré,
ou
Rocinante, que esse é o nome de meu cavalo, minhas senhoras, e dom
Quixote de la Mancha, o meu. Embora eu não quisesse me apresentar
até que as façanhas feitas a vosso serviço e proveito me
revelassem, a necessidade de adaptar ao propósito presente esse
velho romance de Lancelot foi a causa de que viésseis a saber meu
nome antes do tempo. Mas dia virá em que vossas senhorias me ordenem
e eu obedeça, e o valor de meu braço mostre o desejo que tenho de
vos servir.
As
moças, que não tinham sido feitas para ouvir semelhantes retóricas,
não diziam uma palavra; só perguntaram se ele queria comer alguma
coisa.
—
Qualquer coisa seria um manjar —
respondeu dom Quixote —, porque, pelo visto, qualquer uma me
calharia bem.
Casualmente
aquele dia era uma sexta-feira e em toda a estalagem só havia um
pouco de um peixe que em Castela chamam badejo, bacalhau na Andaluzia
e peixe seco, ou truchuela, em outros lugares. Perguntaram ao
cavaleiro se por acaso sua mercê comeria truchuela, já que
não havia outro peixe para lhe oferecer.
— Se
houver muitas trutinhas — respondeu dom Quixote —, poderão valer
uma truta, porque para mim tanto faz se me dão oito reais inteiros
ou trocados. Sem falar que pode ser que essas trutinhas sejam como a
vitela, que é melhor que a vaca, ou o cabrito, que é melhor que o
bode. Mas, seja lá o que for, venha logo, porque não se pode levar
o trabalho e o peso das armas sem o governo das tripas.
Puseram-lhe
a mesa à porta da estalagem, por ser mais fresco, e o hospedeiro
trouxe uma porção do bacalhau que mal tinha ficado de molho e fora
mais mal cozido ainda, e um pão tão negro e imundo como sua
armadura. Agora, era coisa muito engraçada vê-lo comer, porque,
como tinha o elmo posto e a viseira erguida com as mãos, não podia
pôr nada na boca se outro não o fizesse, o que levou uma daquelas
senhoras a fazer esse trabalho. Mas dar de beber a ele não foi
possível, nem o seria, se o estalajadeiro não houvesse furado uma
taquara e posto uma ponta em sua boca, derramando vinho pela outra.
Dom Quixote aceitava tudo com paciência, em troca de não arrebentar
as fitas do elmo. Então chegou um castrador de porcos que, mal
entrou, soprou sua flauta de taquaras quatro ou cinco vezes, o que
acabou de confirmar a dom Quixote que estava em algum famoso castelo
e que lhe serviam com música, que o peixe seco eram trutas, o pão
do melhor, as meretrizes damas, o estalajadeiro castelão — e assim
dava por bem empregada sua decisão e saída. Mas o que mais o
incomodava era não se ver armado cavaleiro, por lhe parecer que não
poderia legitimamente se lançar na aventura sem receber a ordem de
cavalaria.
Miguel
de Cervantes, in Dom Quixote
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