—
Quanta gente malvada neste mundo —
dizia a mãe do menino, na sua eterna lamuriação de rezadeira. —
Como se pode ofender um inocente, como alguém pode se aproveitar de
uma criaturinha inocente. Não posso me conformar.
— Se
acalme, Donana. Deus está vendo.
— É
verdade, este é o meu consolo. Deus está vendo. Eles haverão de
acabar nas profundezas dos infernos.
A
vida de Donana era aquilo mesmo que o menino disse. Plantar feijão
na roça dos outros, quando o inverno chegava, e rezar os outros,
sempre que houvesse algum ser vivente necessitado de uma reza. Uma
vida miserável, vivida a troco de litros de feijão e de farinha,
qualquer coisa para comer. E uma queixa, uma queixa do tamanho do
mundo contra Deus, que lhe deu um filho assim, um menino entrevado
num catre desde pequeno e condenado a continuar deste jeito até o
fim de seus dias. Se Deus olhava por todos, não olhava por ela?
Olhava. Havia sempre um trabalho ou outro, nunca tinha passado fome.
Dava graças a Deus por isso. Essa boa gente sertaneja era gente de
Deus, sempre tinha piedade dela. Todos compartilhavam da sua dor. No
entanto havia uma dor maior, e essa ninguém podia tirar. Era a mágoa
que sofria do finado seu marido, aquela espinha atravessada na
garganta, ferindo, aferroando. Nunca pôde se livrar disso e já não
podia acreditar mais que o tempo cura tudo. Esse tormento era como
uma pancada na memória, aquela lembrança tão dolorosa dos seus
piores dias. O marido era um bêbado e um bêbado é um tonto: não
sabe o que diz. Sabia muito bem que ele tinha se desgraçado na
cachaça, se esbagaçado até morrer, porque não suportava olhar
para o filho, não aguentava vê-lo naquelas condições. E era
caindo de bêbado que ele dava para inventar coisas, umas maluquices
que mais pareciam inventadas pelo próprio diabo.
—
Mulher, tu é uma excomungada — o
marido costumava dizer. — Porque só uma criatura excomungada pode
parir uma infelicidade destas.
A
voz do povo tentava conformá-la, pedia-lhe caridade para com seu
desorientado marido:
— Ele
perdeu o juízo, Donana. Reze por ele, Donana. Tenha compaixão.
Neste dia, porém, ao saber do acontecido — a história dos três
forasteiros —, ela saiu para a rua, arrancando os cabelos. Perdeu a
paciência. Agora ela praguejava, urrava, xingava Deus e o mundo:
— Deste
jeito não dá para se acreditar em nada.
E
uma dúvida começou a se formar na cabeça de muitos:
— Será
que ela também perdeu o juízo?
Mas
foi a partir de seus berros que todo o lugar entrou em pé de guerra.
Donana abotoou o delegado pela gola:
— Onde
estava você, onde estava você? — Cuspiu na cara dos soldados: —
E vocês, seus bananas? Xeretando os fazendeiros, tomando conta do
gado alheio? Vocês entregaram meu filho aos cães. Pensam que ele é
um cão sem dono?
Donana
já não era mais uma mulher, muito menos uma rezadeira: era um
desaforo. Sua boca vomitava pedra.
— E
você, seu miserável, também não viu nada? — era o que ela ia
atirando a esmo, na cara de qualquer um, até se cansar e se render e
começar a explicar as coisas direito. Ninguém sabia de nada, eis a
verdade. Agora todos queriam saber mesmo como foi que tudo se passou.
Antônio
Torres, in Meninos, eu conto
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