quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O dia de São Nunca (trecho)


Quanta gente malvada neste mundo — dizia a mãe do menino, na sua eterna lamuriação de rezadeira. — Como se pode ofender um inocente, como alguém pode se aproveitar de uma criaturinha inocente. Não posso me conformar.
Se acalme, Donana. Deus está vendo.
É verdade, este é o meu consolo. Deus está vendo. Eles haverão de acabar nas profundezas dos infernos.
A vida de Donana era aquilo mesmo que o menino disse. Plantar feijão na roça dos outros, quando o inverno chegava, e rezar os outros, sempre que houvesse algum ser vivente necessitado de uma reza. Uma vida miserável, vivida a troco de litros de feijão e de farinha, qualquer coisa para comer. E uma queixa, uma queixa do tamanho do mundo contra Deus, que lhe deu um filho assim, um menino entrevado num catre desde pequeno e condenado a continuar deste jeito até o fim de seus dias. Se Deus olhava por todos, não olhava por ela? Olhava. Havia sempre um trabalho ou outro, nunca tinha passado fome. Dava graças a Deus por isso. Essa boa gente sertaneja era gente de Deus, sempre tinha piedade dela. Todos compartilhavam da sua dor. No entanto havia uma dor maior, e essa ninguém podia tirar. Era a mágoa que sofria do finado seu marido, aquela espinha atravessada na garganta, ferindo, aferroando. Nunca pôde se livrar disso e já não podia acreditar mais que o tempo cura tudo. Esse tormento era como uma pancada na memória, aquela lembrança tão dolorosa dos seus piores dias. O marido era um bêbado e um bêbado é um tonto: não sabe o que diz. Sabia muito bem que ele tinha se desgraçado na cachaça, se esbagaçado até morrer, porque não suportava olhar para o filho, não aguentava vê-lo naquelas condições. E era caindo de bêbado que ele dava para inventar coisas, umas maluquices que mais pareciam inventadas pelo próprio diabo.
Mulher, tu é uma excomungada — o marido costumava dizer. — Porque só uma criatura excomungada pode parir uma infelicidade destas.
A voz do povo tentava conformá-la, pedia-lhe caridade para com seu desorientado marido:
Ele perdeu o juízo, Donana. Reze por ele, Donana. Tenha compaixão. Neste dia, porém, ao saber do acontecido — a história dos três forasteiros —, ela saiu para a rua, arrancando os cabelos. Perdeu a paciência. Agora ela praguejava, urrava, xingava Deus e o mundo:
Deste jeito não dá para se acreditar em nada.
E uma dúvida começou a se formar na cabeça de muitos:
Será que ela também perdeu o juízo?
Mas foi a partir de seus berros que todo o lugar entrou em pé de guerra. Donana abotoou o delegado pela gola:
Onde estava você, onde estava você? — Cuspiu na cara dos soldados: — E vocês, seus bananas? Xeretando os fazendeiros, tomando conta do gado alheio? Vocês entregaram meu filho aos cães. Pensam que ele é um cão sem dono?
Donana já não era mais uma mulher, muito menos uma rezadeira: era um desaforo. Sua boca vomitava pedra.
E você, seu miserável, também não viu nada? — era o que ela ia atirando a esmo, na cara de qualquer um, até se cansar e se render e começar a explicar as coisas direito. Ninguém sabia de nada, eis a verdade. Agora todos queriam saber mesmo como foi que tudo se passou.
Antônio Torres, in Meninos, eu conto

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