Vou
ao banheiro, ela disse. Ele piscou o olho pra ela e continuou a
conversa.
Eram
casados havia alguns anos, nem ricos nem pobres, dois filhos, um
cachorro, todos os sábados saíam com os amigos. Formavam um casal
feliz. Até aquele sábado, pelo menos. Mas ela foi ao banheiro e
então se deu a tragédia. Foi o destino. Tinha que acontecer.
Ninguém está livre de precisar ir ao banheiro. Ela precisou. E,
quando ia voltando para a mesa, percebeu como tinha se enganado com
aquele homem durante esses anos todos e viu uma vida inteira desabar
sobre sua cabeça.
Imagine
você que ele estava conversando normalmente, como se nada tivesse
acontecido, sem demonstrar nenhuma dificuldade em continuar
conversando normalmente, apesar da ausência dela. Pior ainda. Ele
estava feliz. Tão feliz que ela até se assustou, parou na porta do
banheiro e ficou observando a distância.
Ele
falava alto, enquanto derramava mais cerveja no copo, e ria como não
ria havia muito tempo. Até aí tudo bem. Admite-se. Mas então ele
disse, às gargalhadas, “vocês sabem como eu odeio piadas, não
é?”, uma inverdade, aliás, uma grande mentira. Ele sempre gostou
de piadas. Ou seja, tratava-se de um mentiroso. Uma pessoa que mentia
sem a menor necessidade só pra impressionar os outros. Uma pessoa
que gostava de impressionar os outros, principalmente as mulheres,
provavelmente. Mas a desgraça ainda estava por vir, e veio, quando
ele se levantou da cadeira e continuou a frase, “aí o Luís Afonso
chegou andando assim, daquele jeito dele...”, e então, veja a que
ponto chegamos, ele imitou o Luís Afonso andando. Com as pernas
abertas. Sem a menor vergonha. Imitou igualzinho. Era um excelente
imitador, quem diria. Longe dela ele parecia outro homem.
Longe
dela ele era outro homem, essa é que é a verdade.
Um
mentiroso, um imitador, um falso, um homem capaz até de imitar o
Luís Afonso andando com as pernas abertas e, portanto, capaz de
tudo. Olha só o perigo que ela estava correndo. Tinha dois filhos
com um indivíduo altamente periculoso, um cara capaz de fazer
qualquer coisa para agradar os amigos, principalmente as mulheres,
numa mesa de bar, até imitar o Luís Afonso andando. Logo o Luís
Afonso. O melhor amigo dele. Ele não tinha mesmo a menor
consideração por ninguém, muito menos por ela, tanto é que
continuou conversando normalmente, como se nada tivesse acontecido,
“... e o Luís Afonso pediu um uísque e começou a contar piada”.
Quer dizer que o Luís Afonso pediu um uísque, não é? Quando?
Onde? Com quem? Fazia meses que ela não via o Luís Afonso. É claro
que os dois deviam estar em alguma farra que ela não era besta nem
nada. Se fosse coisa sem importância, ele teria contado, “tomei um
uísque com o Luís Afonso hoje”. Se não contou, então é porque
tinha coisa no meio. Tinha coisa no meio sim. O Luís Afonso e
uísque? Aí tinha coisa.
Então
ela começou a tremer sem saber se era de raiva ou de surpresa,
pensou em ir embora dali correndo e abandonar aquele homem pra
sempre, mas preferiu ficar ouvindo a conversa. Ele contava a piada
que o Luís Afonso contou pra ele, numa noite de sexo, uísque,
rock’n’roll e sabe-se lá mais o que, muito possivelmente,
e se comportava como se contar uma piada fosse a coisa mais natural
do mundo, quando de repente aconteceu, fim, acabou, ele morreu pra
ela ali, naquela hora.
Não
que contar uma piada seja crime.
A
pessoa tem todo o direito de contar uma piada.
O
problema é que quem tinha contado aquela piada pra ele foi ela, na
noite passada; ele não tinha achado graça nenhuma, e agora estava
ali morrendo de rir com uma piada que o Luís Afonso nem devia
conhecer, duas mentiras em uma, um milhão de mentiras, mais
precisamente, e ela nunca imaginou que ele fosse capaz de tudo
aquilo. Continuar conversando normalmente, na ausência dela, como se
nada tivesse acontecido, afirmar de maneira falsa e leviana que não
gostava de piadas, imitar o próprio amigo descaradamente, sair com o
Luís Afonso e não contar para ela, omitir o fato de que ela havia
contado uma piada para ele na noite passada, fingir que quem contou a
piada foi o Luís Afonso, rir publicamente de uma piada sem graça
nenhuma, continuar rindo, não ligar a mínima pra demora dela,
chegando a preferir, talvez, que ela tivesse morrido afogada no
banheiro.
Pensou
mais uma vez em ir embora dali correndo e abandonar aquele homem pra
sempre, deixando pra trás um passado construído de mentiras, mas
resolveu se fazer de sonsa e voltar pra mesa. Ele parou de rir, o
impostor, ajeitou-se na cadeira, deu um beijinho nela, como é que a
pessoa pode ser tão falsa?, disse, “— vamos, meu bem?”, ela
disse que não, e aí ele ficou devidamente calado enquanto ela pedia
outra cerveja.
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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