quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Revelação

Vou ao banheiro, ela disse. Ele piscou o olho pra ela e continuou a conversa.
Eram casados havia alguns anos, nem ricos nem pobres, dois filhos, um cachorro, todos os sábados saíam com os amigos. Formavam um casal feliz. Até aquele sábado, pelo menos. Mas ela foi ao banheiro e então se deu a tragédia. Foi o destino. Tinha que acontecer. Ninguém está livre de precisar ir ao banheiro. Ela precisou. E, quando ia voltando para a mesa, percebeu como tinha se enganado com aquele homem durante esses anos todos e viu uma vida inteira desabar sobre sua cabeça.
Imagine você que ele estava conversando normalmente, como se nada tivesse acontecido, sem demonstrar nenhuma dificuldade em continuar conversando normalmente, apesar da ausência dela. Pior ainda. Ele estava feliz. Tão feliz que ela até se assustou, parou na porta do banheiro e ficou observando a distância.
Ele falava alto, enquanto derramava mais cerveja no copo, e ria como não ria havia muito tempo. Até aí tudo bem. Admite-se. Mas então ele disse, às gargalhadas, “vocês sabem como eu odeio piadas, não é?”, uma inverdade, aliás, uma grande mentira. Ele sempre gostou de piadas. Ou seja, tratava-se de um mentiroso. Uma pessoa que mentia sem a menor necessidade só pra impressionar os outros. Uma pessoa que gostava de impressionar os outros, principalmente as mulheres, provavelmente. Mas a desgraça ainda estava por vir, e veio, quando ele se levantou da cadeira e continuou a frase, “aí o Luís Afonso chegou andando assim, daquele jeito dele...”, e então, veja a que ponto chegamos, ele imitou o Luís Afonso andando. Com as pernas abertas. Sem a menor vergonha. Imitou igualzinho. Era um excelente imitador, quem diria. Longe dela ele parecia outro homem.
Longe dela ele era outro homem, essa é que é a verdade.
Um mentiroso, um imitador, um falso, um homem capaz até de imitar o Luís Afonso andando com as pernas abertas e, portanto, capaz de tudo. Olha só o perigo que ela estava correndo. Tinha dois filhos com um indivíduo altamente periculoso, um cara capaz de fazer qualquer coisa para agradar os amigos, principalmente as mulheres, numa mesa de bar, até imitar o Luís Afonso andando. Logo o Luís Afonso. O melhor amigo dele. Ele não tinha mesmo a menor consideração por ninguém, muito menos por ela, tanto é que continuou conversando normalmente, como se nada tivesse acontecido, “... e o Luís Afonso pediu um uísque e começou a contar piada”. Quer dizer que o Luís Afonso pediu um uísque, não é? Quando? Onde? Com quem? Fazia meses que ela não via o Luís Afonso. É claro que os dois deviam estar em alguma farra que ela não era besta nem nada. Se fosse coisa sem importância, ele teria contado, “tomei um uísque com o Luís Afonso hoje”. Se não contou, então é porque tinha coisa no meio. Tinha coisa no meio sim. O Luís Afonso e uísque? Aí tinha coisa.
Então ela começou a tremer sem saber se era de raiva ou de surpresa, pensou em ir embora dali correndo e abandonar aquele homem pra sempre, mas preferiu ficar ouvindo a conversa. Ele contava a piada que o Luís Afonso contou pra ele, numa noite de sexo, uísque, rock’n’roll e sabe-se lá mais o que, muito possivelmente, e se comportava como se contar uma piada fosse a coisa mais natural do mundo, quando de repente aconteceu, fim, acabou, ele morreu pra ela ali, naquela hora.
Não que contar uma piada seja crime.
A pessoa tem todo o direito de contar uma piada.
O problema é que quem tinha contado aquela piada pra ele foi ela, na noite passada; ele não tinha achado graça nenhuma, e agora estava ali morrendo de rir com uma piada que o Luís Afonso nem devia conhecer, duas mentiras em uma, um milhão de mentiras, mais precisamente, e ela nunca imaginou que ele fosse capaz de tudo aquilo. Continuar conversando normalmente, na ausência dela, como se nada tivesse acontecido, afirmar de maneira falsa e leviana que não gostava de piadas, imitar o próprio amigo descaradamente, sair com o Luís Afonso e não contar para ela, omitir o fato de que ela havia contado uma piada para ele na noite passada, fingir que quem contou a piada foi o Luís Afonso, rir publicamente de uma piada sem graça nenhuma, continuar rindo, não ligar a mínima pra demora dela, chegando a preferir, talvez, que ela tivesse morrido afogada no banheiro.
Pensou mais uma vez em ir embora dali correndo e abandonar aquele homem pra sempre, deixando pra trás um passado construído de mentiras, mas resolveu se fazer de sonsa e voltar pra mesa. Ele parou de rir, o impostor, ajeitou-se na cadeira, deu um beijinho nela, como é que a pessoa pode ser tão falsa?, disse, “— vamos, meu bem?”, ela disse que não, e aí ele ficou devidamente calado enquanto ela pedia outra cerveja.
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

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