Pouco
depois de ver o convite para o enterro do Vidigal no jornal e
comentar com a mulher “acho que esse Vidigal eu conheci”, Rubens
recebeu um telefonema. Da viúva do Vidigal. Enquanto Rubens fazia
uma careta de espanto para a mulher, a viúva do Vidigal se
identificava, dizia que o Vidigal falava muito nele, e perguntava se
podia lhe pedir um favor.
—
Claro, claro.
A
viúva então disse que um dos últimos pedidos do Vidigal fora que
ele, Rubens, cantasse no seu enterro.
— Que
eu?
—
Cantasse no enterro dele.
— Mas
eu...
— Ele
disse que você saberia o que cantar. Que era só dizer “aquela
música” e você saberia.
— Bom,
eu...
— Posso
contar com você? O enterro é às cinco.
Depois
de saber qual era o pedido da viúva do Vidigal, a mulher do Rubens
perguntou, incrédula:
— E
você disse “sim”?!
— O
que eu podia dizer? Foi o último pedido do Vidigal!
— E
que música é essa?
— Não
me lembro. Mal me lembro do Vidigal!
— Mas
Rubens, você não sabe cantar. Você desafina no Samba de uma
nota só. No Parabéns a você!
— Eu
sei. Eu sei!
— E
você vai assim mesmo?
— Agora
está prometido.
No
carro a caminho do cemitério, Rubens tentava se lembrar. Qual seria
“aquela música”? Se ao menos se lembrasse da época em que
andara com o Vidigal. Sabendo a época, localizaria a música. Ou
improvisaria uma na hora. Talvez Samba de uma nota só, só a
primeira parte? Não, não ficaria bem. Parabéns a você
muito menos. Qual era a música? Qual era a música? E Rubens se
aproximava do cemitério como um kamikaze se aproximando do alvo.
Ela
se enganou, pensou Rubens. Ou o Vidigal se enganou. Não era eu que
cantava a música. Era outro. Mas quem? Não se lembrava de ninguém
cantando, na época em que ele andava com o Vidigal e a turma se
reunia no...no... Esquecera até o nome do bar! Ninguém daquela
turma cantava. Devia ser outra turma. Era isso. O Vidigal, à beira
da morte, confundira as coisas. O cantor era de outra turma.
O
cemitério cada vez mais perto. Não vou, pensou Rubens. Não preciso
ir. Foi um engano. Dou meia-volta agora, depois invento uma desculpa
se a viúva do Vidigal me cobrar. O carro quebrou. Fiquei afônico.
Fui sequestrado. Mas não. Não podia deixar o Vidigal sem a sua
música, fosse ela qual fosse. A viúva contava com ele. Devia aquilo
ao Vidigal. Amigo é amigo, mesmo quando a gente mal se lembra quem
era. E estava prometido.
O
velório cheio. A viúva o recebeu com um beijo agradecido. Aquilo
significaria muito para o Vidigal. E perguntou, baixinho:
— Não
trouxe o violão?
Rubens
estava tomado por uma espécie de frenesi suicida. Tinha certeza de
uma coisa: nunca, em toda a história do mundo, alguém pagara um
mico como aquele. Mas agora não podia recuar. Limpou a garganta e
disse:
— Não.
Vai a capella mesmo.
Luís
Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis
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