quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O mascarado

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O homem que acaba de entrar lembra-me alguém. Não consigo, todavia, acertar com quem. Alto, elegante, bem vestido. O cabelo grisalho, cortado rente, dá-lhe um ar de nobreza que o rosto largo, um tanto rude, logo desmente. Vejo-o atravessar como um tigre a luz dormente da tarde. Ignora a mão que Félix lhe estende, e depois, parecendo ligeiramente enfastiado, senta-se de pernas traçadas no sofá de couro. Suspira fundo. Batuca com os dedos nos braços do sofá.
Vou-lhe contar uma história inverossímil. Vou contá-la porque sei que você não acreditará em mim. Quero trocar esta história inverossímil, a história da minha vida, por outra simples e sólida. A história de um homem comum. Eu dou-lhe uma verdade impossível, você dá-me uma mentira vulgar e convincente – aceita?
Começou bem. Félix Ventura senta-se, interessado.
Vê este rosto? – O homem indica com ambas as mãos o próprio rosto.
Pois não é meu.
Faz uma longa pausa. Hesita. Por fim começa:
Roubaram-me o rosto. Aliás, como explicar-lhe?, roubaram-me de mim. Um dia acordei e descobri que me tinham feito uma operação plástica. Deixaram-me numa clínica com uma pasta cheia de dólares e um postal. Gratos pelos serviços prestados. Considere-se dispensado . Isto era o que dizia o postal. Podiam ter-me morto. Não sei porque não me mataram. Talvez pensem que estou mais morto assim. Ou então, ao princípio julguei que fosse isso, querem ver-me sofrer. Nos primeiros dias, realmente, sofri. Pensei em denunciar a situação. Procurei amigos. Alguns não acreditaram em mim. Outros acreditaram, apesar desta máscara que trago agora, porque, enfim, sei certas coisas, mas fingiram não acreditar. Insistir pareceu-me perigoso. Depois, numa tarde como esta, sozinho na esplanada de um bar, na ponta da Ilha, comecei a desfrutar de uma sensação maravilhosa. Não sabia que nome lhe dar. Agora sei – liberdade! Esta situação transformou-me num homem livre. Tenho meios. Tenho acesso a contas, lá fora, que me permitem viver tranquilo até ao último dos meus dias. Em contrapartida não me pesam as responsabilidades, as críticas, os remorsos, as invejas, os ódios, os rancores, as intrigas da corte, menos ainda o terror de que um dia alguém me traia.
Félix Ventura abana a cabeça, transtornado:
Conheci um sujeito, um maluco, um desses infelizes que andam por aí, pela cidade, a atrapalhar o trânsito, que defendia uma estranha tese. Ele achava que o Presidente foi substituído por um duplo. A sua história lembra-me essa...
O homem olha-o com curiosidade. A voz dele torna-se mais suave. Quase sonhadora:
Todas as histórias estão ligadas. No fim tudo se liga. Suspira: – Mas só alguns loucos, muito poucos e muito loucos, são capazes de compreender isso. Enfim, o que pretendo é que me consiga o contrário daquilo para que habitualmente o contratam. Quero que me dê um passado humilde. Um nome sem brilho. Uma genealogia obscura e irrefutável. Deve haver tipos ricos, sem família e sem glória, não? Gostaria de ser um deles…
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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