O
homem que acaba de entrar lembra-me alguém. Não consigo, todavia,
acertar com quem. Alto, elegante, bem vestido. O cabelo grisalho,
cortado rente, dá-lhe um ar de nobreza que o rosto largo, um tanto
rude, logo desmente. Vejo-o atravessar como um tigre a luz dormente
da tarde. Ignora a mão que Félix lhe estende, e depois, parecendo
ligeiramente enfastiado, senta-se de pernas traçadas no sofá de
couro. Suspira fundo. Batuca com os dedos nos braços do sofá.
–
Vou-lhe contar uma história
inverossímil. Vou contá-la porque sei que você não acreditará em
mim. Quero trocar esta história inverossímil, a história da minha
vida, por outra simples e sólida. A história de um homem comum. Eu
dou-lhe uma verdade impossível, você dá-me uma mentira vulgar e
convincente – aceita?
Começou
bem. Félix Ventura senta-se, interessado.
– Vê
este rosto? – O homem indica com ambas as mãos o próprio rosto.
– Pois
não é meu.
Faz
uma longa pausa. Hesita. Por fim começa:
–
Roubaram-me o rosto. Aliás, como
explicar-lhe?, roubaram-me de mim. Um dia acordei e descobri que me
tinham feito uma operação plástica. Deixaram-me numa clínica com
uma pasta cheia de dólares e um postal. Gratos pelos serviços
prestados. Considere-se dispensado . Isto era o que dizia o postal.
Podiam ter-me morto. Não sei porque não me mataram. Talvez pensem
que estou mais morto assim. Ou então, ao princípio julguei que
fosse isso, querem ver-me sofrer. Nos primeiros dias, realmente,
sofri. Pensei em denunciar a situação. Procurei amigos. Alguns não
acreditaram em mim. Outros acreditaram, apesar desta máscara que
trago agora, porque, enfim, sei certas coisas, mas fingiram não
acreditar. Insistir pareceu-me perigoso. Depois, numa tarde como
esta, sozinho na esplanada de um bar, na ponta da Ilha, comecei a
desfrutar de uma sensação maravilhosa. Não sabia que nome lhe dar.
Agora sei – liberdade! Esta situação transformou-me num homem
livre. Tenho meios. Tenho acesso a contas, lá fora, que me permitem
viver tranquilo até ao último dos meus dias. Em contrapartida não
me pesam as responsabilidades, as críticas, os remorsos, as invejas,
os ódios, os rancores, as intrigas da corte, menos ainda o terror de
que um dia alguém me traia.
Félix
Ventura abana a cabeça, transtornado:
–
Conheci um sujeito, um maluco, um desses
infelizes que andam por aí, pela cidade, a atrapalhar o trânsito,
que defendia uma estranha tese. Ele achava que o Presidente foi
substituído por um duplo. A sua história lembra-me essa...
O
homem olha-o com curiosidade. A voz dele torna-se mais suave. Quase
sonhadora:
– Todas
as histórias estão ligadas. No fim tudo se liga. Suspira: – Mas
só alguns loucos, muito poucos e muito loucos, são capazes de
compreender isso. Enfim, o que pretendo é que me consiga o contrário
daquilo para que habitualmente o contratam. Quero que me dê um
passado humilde. Um nome sem brilho. Uma genealogia obscura e
irrefutável. Deve haver tipos ricos, sem família e sem glória,
não? Gostaria de ser um deles…
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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