segunda-feira, 31 de março de 2025

Vontade de içar a bandeira branca

4 de Setembro

Às vezes, entra-me a vontade de içar a bandeira branca, subir às ameias e dizer: “Rendo-me.” Não que eu me veja como uma fortaleza, bem pelo contrário, mas sei, como se ela fosse ou nela estivesse, que me andam cercando dois cercos: um, já se sabe, é o dos ódios, invejas e mesquinhices que vou aguentando; o outro, que se vai sabendo, é o dos afectos de muitos que me leem, e esse é o que me derrota. Se este tempo da minha vida tivesse de levar um título, bem poderia ser o do filme de Pedro Almodovar: “Que fiz eu para merecer isto?” Dir-me-ão os mais simpáticos: “Bom, alguma coisa fizeste...” Mas isso, uns quantos livros, valerá tanto que mereça a quadra que me foi dedicada por um pastor de ovelhas (seiscentas parece que tem o rebanho) do Alentejo? Esta, lida ontem na Festa do Avante! e que reza assim:

Tem em conta a luz da mente.
Cada um é como é.
E não pode ser toda a gente
Aquilo que cada um é.

E, como se não fosse bastante, como se não transbordasse já, estava eu depois a assinar livros (três horas ininterruptas de dedicatórias...), aproximam-se duas pessoas, marido e mulher, que colocam diante de mim, com o livro que tinham comprado, um caderninho, um corta-papel e uma nota onde um e outro estavam explicados... O livrinho, feito de papel de sacas de cimento, havia sido escrito por Silvino Leitão Fernandes Costa no campo de concentração do Tarrafal e estava dedicado nestes termos: “Ofereço, ao camarada e amigo T., como prova de consideração.” “T.” era a abreviatura de Teixeira, apelido do homem que estava na minha frente, de seu nome completo José de Sousa Teixeira, preso também, como ele, no Tarrafal. Quanto ao corta-papel, fizera-o Hermínio Martins, ex-marinheiro de um dos barcos que se revoltaram em 8 de Setembro de 1936. Foi ajudante de serralharia do Bento António Gonçalves e morreu antes do 25 de Abril, num sanatório da metrópole. Pensei que tudo isto estava simplesmente a ser-me mostrado, e, ao devolver o livro assinado, restituí também os objectos. Que não, disseram-me, que eram para mim, como lembrança e prova de amizade... Imagine-se como fiquei eu. Agradeci como pude, rodeado pelas dezenas de pessoas que esperavam a sua vez para me pedirem uma assinatura e, com palavras ou sem elas, dizerem que me querem bem.
O livrinho tem dois títulos e compõe-se de quatro partes. O primeiro título, na capa, é “O que será? ...”, o segundo título, na folha seguinte, anuncia “Coisas da vida e próprias dos homens”. A primeira parte transcrevo-a hoje, as outras nos próximos dias (é o mínimo que posso fazer em sinal de gratidão e para que não se perca — se algum dia estes cadernos vierem a ser publicados — a lembrança de um conflito entre amigos e a sua algo extraordinária resolução). Actualizo a ortografia e a pontuação:

Os livros são coisas preciosas tanto por aquilo que dizem como pelo esforço de raciocínio necessário para os fazer.
Depois de feitos, servem de auxílio ao desenvolvimento cerebral do homem.
Conclui-se, pois, que é nos livros onde nós aprendemos tudo quanto desejamos. Tudo depende daquilo que mais nos interessar.
São ainda eles que trazem até nós, duma forma concreta e abreviada, toda a experiência vivida pelos nossos antepassados, da qual nos servimos e serviremos sempre para encarar o futuro.
Quando possuímos um ou mais livros, significa isso que se encontram ao nosso dispor e certamente lê-los-emos tantas quantas vezes quisermos ou necessitarmos para a compreensão do sentido que encerram.
Entretanto, mesmo àqueles que às vezes lemos, embora o seu conteúdo pouco nos interesse, — quer dizer, romances de 4.50 a dúzia, ou coisa semelhante, — alguma coisa nos fica gravada na mente, apesar disso.
Todos nós sabemos que é verdade tal facto.
Bem, mas já vai sendo tempo de mudar de “disco”. “O meu objectivo não é falar sobre livros. Nem sequer fazê-los ou ainda discutir.
Até aqui, simplesmente, pretendo salientar o valor das coisas escritas.
Porém, para melhor concretização, farei um paralelo entre a escrita e a palavra.
Supõe que eu percebo de electricidade a “Potes” e estive durante duas horas a falar-te do assunto. De certo não poderias ter apreendido tudo quanto disse. Mas se escrevesse ficaria ao teu alcance o assunto e dar-lhe-ias as voltas que precisasses.
Agora dirás tu:
“— Mas a que propósito vem isto, não me dizem?
Depois acrescentarás:
Sempre há cada maduro!...
Que mal fiz eu?...
Calma... o resto vai já a seguir.”

José Saramago, em Cadernos de Lanzarote

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