4
de Setembro
Às
vezes, entra-me a vontade de içar a bandeira branca, subir às
ameias e dizer: “Rendo-me.” Não que eu me veja como uma
fortaleza, bem pelo contrário, mas sei, como se ela fosse ou nela
estivesse, que me andam cercando dois cercos: um, já se sabe, é o
dos ódios, invejas e mesquinhices que vou aguentando; o outro, que
se vai sabendo, é o dos afectos de muitos que me leem, e esse é o
que me derrota. Se este tempo da minha vida tivesse de levar um
título, bem poderia ser o do filme de Pedro Almodovar: “Que fiz eu
para merecer isto?” Dir-me-ão os mais simpáticos: “Bom, alguma
coisa fizeste...” Mas isso, uns quantos livros, valerá tanto que
mereça a quadra que me foi dedicada por um pastor de ovelhas
(seiscentas parece que tem o rebanho) do Alentejo? Esta, lida ontem
na Festa do Avante! e que reza assim:
Tem
em conta a luz da mente.
Cada
um é como é.
E
não pode ser toda a gente
Aquilo
que cada um é.
E,
como se não fosse bastante, como se não transbordasse já, estava
eu depois a assinar livros (três horas ininterruptas de
dedicatórias...), aproximam-se duas pessoas, marido e mulher, que
colocam diante de mim, com o livro que tinham comprado, um
caderninho, um corta-papel e uma nota onde um e outro estavam
explicados... O livrinho, feito de papel de sacas de cimento, havia
sido escrito por Silvino Leitão Fernandes Costa no campo de
concentração do Tarrafal e estava dedicado nestes termos: “Ofereço,
ao camarada e amigo T., como prova de consideração.” “T.” era
a abreviatura de Teixeira, apelido do homem que estava na minha
frente, de seu nome completo José de Sousa Teixeira, preso também,
como ele, no Tarrafal. Quanto ao corta-papel, fizera-o Hermínio
Martins, ex-marinheiro de um dos barcos que se revoltaram em 8 de
Setembro de 1936. Foi ajudante de serralharia do Bento António
Gonçalves e morreu antes do 25 de Abril, num sanatório da
metrópole. Pensei que tudo isto estava simplesmente a ser-me
mostrado, e, ao devolver o livro assinado, restituí também os
objectos. Que não, disseram-me, que eram para mim, como lembrança e
prova de amizade... Imagine-se como fiquei eu. Agradeci como pude,
rodeado pelas dezenas de pessoas que esperavam a sua vez para me
pedirem uma assinatura e, com palavras ou sem elas, dizerem que me
querem bem.
O
livrinho tem dois títulos e compõe-se de quatro partes. O primeiro
título, na capa, é “O que será? ...”, o segundo título, na
folha seguinte, anuncia “Coisas da vida e próprias dos homens”.
A primeira parte transcrevo-a hoje, as outras nos próximos dias (é
o mínimo que posso fazer em sinal de gratidão e para que não se
perca — se algum dia estes cadernos vierem a ser publicados — a
lembrança de um conflito entre amigos e a sua algo extraordinária
resolução). Actualizo a ortografia e a pontuação:
“Os
livros são coisas preciosas tanto por aquilo que dizem como pelo
esforço de raciocínio necessário para os fazer.
“Depois
de feitos, servem de auxílio ao desenvolvimento cerebral do homem.
“Conclui-se,
pois, que é nos livros onde nós aprendemos tudo quanto desejamos.
Tudo depende daquilo que mais nos interessar.
“São
ainda eles que trazem até nós, duma forma concreta e abreviada,
toda a experiência vivida pelos nossos antepassados, da qual nos
servimos e serviremos sempre para encarar o futuro.
“Quando
possuímos um ou mais livros, significa isso que se encontram ao
nosso dispor e certamente lê-los-emos tantas quantas vezes quisermos
ou necessitarmos para a compreensão do sentido que encerram.
“Entretanto,
mesmo àqueles que às vezes lemos, embora o seu conteúdo pouco nos
interesse, — quer dizer, romances de 4.50 a dúzia, ou coisa
semelhante, — alguma coisa nos fica gravada na mente, apesar disso.
“Todos
nós sabemos que é verdade tal facto.
“Bem,
mas já vai sendo tempo de mudar de “disco”. “O meu objectivo
não é falar sobre livros. Nem sequer fazê-los ou ainda discutir.
“Até
aqui, simplesmente, pretendo salientar o valor das coisas escritas.
“Porém,
para melhor concretização, farei um paralelo entre a escrita e a
palavra.
“Supõe
que eu percebo de electricidade a “Potes” e estive durante duas
horas a falar-te do assunto. De certo não poderias ter apreendido
tudo quanto disse. Mas se escrevesse ficaria ao teu alcance o assunto
e dar-lhe-ias as voltas que precisasses.
“Agora
dirás tu:
“— Mas
a que propósito vem isto, não me dizem?
“Depois
acrescentarás:
“Sempre
há cada maduro!...
“Que
mal fiz eu?...
“Calma...
o resto vai já a seguir.”
José Saramago, em Cadernos de Lanzarote
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