No
presépio onde tudo se perfazia estático — simultâneo repetir-se
de matérias belas, retidas em arte de pequena eternidade — os Três
Reis introduziam o tempo. O mais parava ali, desde a véspera da
Noite, sob o fino brilho suspenso das bolas de cores e ao vivo cheiro
de ananás, musgo, cera nobre e serragens: o Menino na manjedoura,
José e a Virgem, o burrinho e o boi, os pastores com seus surrões,
dentro da gruta; e avessa gente e objetos, confusas faunas, floras,
provendo a muitíssima paisagem, geografia miudamente construída,
que deslumbrava, à alma, os olhos do menino míope.
Em
coisa alguma podia tocar-se, que Vovó Chiquinha, de coração exato
e austera, e Chiquitinha, mamãe, proibiam. Eles, porém,
regulavam-se à parte, com a duração de personagens: o idoso e em
barbas Melchior, Gaspar menos avelhado e ruivo, Baltasar o preto —
diversos mesmo naquele extraordinário orbe, com túnicas e turbantes
e sobraçando as dádivas — um atrás do outro. Dia em dia, deviam
avançar um tanto, em sua estrada, branca na montanha. Cada um de
nós, pequenos, queria o direito de pegar neles e mudá-los dos
quotidianos centímetros; a tarefa tinha de ser repartida. Então, à
uma, preferíamos todos o Negro, ou o ancião Brechó, ou el-rei
Galgalaad; preferíamos era a briga. Mas Vovó Chiquinha ralhava que
não nós, por nossas mãos, os mexíamos, senão a luz da estrela, o
cometa ignoto ou milagroso meteoro, rastro sideral dos movimentos de
Deus. E Chiquitinha, para restituir-nos à paz dos homens
concordiosos, mostrava a fita com a frase em douradas letras —
Gloria in excelsis... — clara de campainhas no latim
assurdado e umbroso.
No
prazo de seu dia, à Lapinha iam chegar, o que nos alvoroçava, como
todas as chegadas — escalas para o último enfim, a que se aspira.
Mas, de repente, muito antes, apareciam e eram outros, com
acompanhamento de vozes em falsete:
Boa
noite, oh de casa,
a
quem nesta casa mora…
A
Folia de Reis — bando exótico de homens, que sempre se
apresentavam engraçadamente sérios e excessivamente magros, tinham
o imprevisto decoro dos pedintes das estradas, a impressiva
hombridade esmoler. Alguns traziam instrumentos: rabecas, sanfonas,
caixa-de-bater, violas. Entravam, mantinham-se de pé, em roda,
unidos, mais altos, não atentavam para as pessoas, mas apenas à sua
função, de venerar em festa o Menino-Deus. Pareciam-me todos cegos.
Será, só eles veriam ainda a Estrela? Porém, no centro, para nossa
raptada admiração, dançavam os dois Máscaras, vestidos de alegria
e pompa, ao enquanto das vozes dos companheiros vindos só para
cantar:
Eis
chegados a esta casa
os
Três Reis do Oriente...
De
onde — oásis de Arábia, Pérsia de Zaratustra, Caldeia
astrológica — da parte do Oriente ficava sua pátria incerta, além
Jordão, descambado o morro do Bento Velho, por cujo caminho, banda
de cá, costumavam descer os viajantes do Araçá e da Lagoa, e,
sobre, na vista-alegre a gente se divertia com inteiros arco-íris,
no espaço das chuvas, seduzidamente, conforme vinham, balançando-se
em seus camelos, para adorar o Rei dos Judeus, fantasiados assim, e
Herodes a Belém os enviava: o Guarda-Mor e o Bastião.
Dois,
só? Respondiam: que por estilos de virtude, porque, os Magos, mesmo,
não remedavam de ser. E por que os chamavam, com respeito embora, de
“os palhaços”? Bastião, o acólito, de feriada roupa vermelha,
gorro, espelho na testa, e que bazofiava, curvando-se para os lados,
fazendo sempre símias e facécias, representasse de sandeu. Mas o
“mascarado velho”, o Guarda-Mor, esse trajava de truz, seu
capacete na cabeça era de papelão preto, imponente, e sérios o
enorme nariz e o bigode de pêlos de cauda de boi. Dele, a gente, a
gente teria até medo. Pulavam, batendo no chão os bastões
enfeitados de fitas e com rodelas de lata, de grave chocalhar. Um dos
outros homens alteava o pau com a bandeira, estampa em pano.
Entoavam: … “A lapinha era pequena, não cabiam todos três...
Cada um por sua vez, adoraram todos três...” Prestigiava-se ao
irreal o presépio, à grossa e humana homenagem, velas acesas; a
dança e música e canto rezando mesmo por nós, forçoso demais, em
fé acima da nossa vontade; pasmavam-nos.
Depois,
recebiam uma espórtula, fino recantando agradeciam: “Deus lhe
pague a bela esmola...” — e saíam, saudando sem prosa, só o
sagrado visitavam. Mas a gente queria acompanhá-los era para poder
ver o que se contava tanto — que, onde não lhes dessem entrada,
então, de fora, bradavam cantoria torta, a de amaldiçoar: “Esta
casa fede a breu...” — e, que dentro dela morava incréu, a
zangação continuava. Em vão, porém, esperava-se turra de
violências. Avisados por um anjo, voltavam por outro caminho,
seguiam se alontanando.
Se
às vezes chegavam outras, folias de maiores distâncias, sucedia-se
o em tudo por tudo. Só que, os homens, mais desconhecidos, sempre,
diferentes mesmo dos iguais. Nem paravam — no vindo, ido e
referido. Duas folias se encontrassem, deviam disputar o uso desafio:
a vencedora, de mais arte em luzimento, ganhando em paz, da outra, a
sacola com o dinheiro. Os estúrdios, que agora no sertão navegavam!
A gente repetia de os esquecer.
Celebrava-se
o dia 6, Vovó Chiquinha desmanchava o presépio, estiava o tempo em
veranico entes do São Sebastião frechado. Por quanto, tornavam a
falar nos foliões, deles não sendo boas, nem de casta lembrança,
as notícias aportadas. Sabia-se que, por adiante, facilitavam aos
poucos de receber no grupo aparasitados e vadios, pegavam desrumo, o
Canto sacro dava mais praça a poracé e lundu, perdiam o conselho.
Já mal podiam trocar as fardas, vez em quando, desfeitos do suor e
das poeiras e chuvaradas. Passavam fome, quando não entravam em
pantagruomérico comer, dormiam irrepousadamente, bebiam do tonel das
danadas; pintavam o caneco. Nem honravam mais as praxes de preceito.
Uma folia topava outra, e, sem nem um mal-entendimento, em vez de
avença desapoderavam-se logo, à acossa, enfrentemente: batiam à
força aberta, a bastão, a pau de bandeira, a cacete, espatifavam-se
nas cabeças os tampos de rabecas e violas.
Só
que não podiam tão cedo parar, no ímpeto de zelo, e iam, iam, à
conta inteira, de lugar em lugar, fazenda em fazenda, ultrapassavam
seu prazo de cessação, a Epifania, queriam os tantos quantos são
nos presépios e os meninos-de-jesus do mundo. Mas, era como se, ao
passo com que se distanciavam do Natal, no tempo, fossem perdendo sua
mágica realidade e a eficácia devota, o furor de fervor não dava
para tanta lonjura, e de tão esticado se estragava. Assim
naufragavam por aí, espandongados, adoentados, exaustos, caindo
abaixo de sono, em pé mesmo se dormiam. Derrotados, recuavam então,
retornando, debandando — se coitados, se danados — não raro sob
ameaça e apupos, num remate da santa desordem, na matéria
merencória.
A
gente se entristecia, de saber, receávamos não voltassem, mais
nunca, não houvesse a valente Festa de Reis, beleza de piedade, com
o Bastião truão e o Guarda-Mor destronado.
— “Mas,
sim, eles voltam. Para o ano, se Deus quiser, todos voltam. Sempre,
mesmo. Hão de recomeçar...” Os meninos se sorriam. — “...
Eles são homens de boa-vontade...” — repetia Chiquitinha.
Guimarães Rosa, em Ave, Palavra
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