domingo, 12 de janeiro de 2025

De stella et adventu magorum



No presépio onde tudo se perfazia estático — simultâneo repetir-se de matérias belas, retidas em arte de pequena eternidade — os Três Reis introduziam o tempo. O mais parava ali, desde a véspera da Noite, sob o fino brilho suspenso das bolas de cores e ao vivo cheiro de ananás, musgo, cera nobre e serragens: o Menino na manjedoura, José e a Virgem, o burrinho e o boi, os pastores com seus surrões, dentro da gruta; e avessa gente e objetos, confusas faunas, floras, provendo a muitíssima paisagem, geografia miudamente construída, que deslumbrava, à alma, os olhos do menino míope.
Em coisa alguma podia tocar-se, que Vovó Chiquinha, de coração exato e austera, e Chiquitinha, mamãe, proibiam. Eles, porém, regulavam-se à parte, com a duração de personagens: o idoso e em barbas Melchior, Gaspar menos avelhado e ruivo, Baltasar o preto — diversos mesmo naquele extraordinário orbe, com túnicas e turbantes e sobraçando as dádivas — um atrás do outro. Dia em dia, deviam avançar um tanto, em sua estrada, branca na montanha. Cada um de nós, pequenos, queria o direito de pegar neles e mudá-los dos quotidianos centímetros; a tarefa tinha de ser repartida. Então, à uma, preferíamos todos o Negro, ou o ancião Brechó, ou el-rei Galgalaad; preferíamos era a briga. Mas Vovó Chiquinha ralhava que não nós, por nossas mãos, os mexíamos, senão a luz da estrela, o cometa ignoto ou milagroso meteoro, rastro sideral dos movimentos de Deus. E Chiquitinha, para restituir-nos à paz dos homens concordiosos, mostrava a fita com a frase em douradas letras — Gloria in excelsis... — clara de campainhas no latim assurdado e umbroso.
No prazo de seu dia, à Lapinha iam chegar, o que nos alvoroçava, como todas as chegadas — escalas para o último enfim, a que se aspira. Mas, de repente, muito antes, apareciam e eram outros, com acompanhamento de vozes em falsete:

Boa noite, oh de casa,
a quem nesta casa mora…

A Folia de Reis — bando exótico de homens, que sempre se apresentavam engraçadamente sérios e excessivamente magros, tinham o imprevisto decoro dos pedintes das estradas, a impressiva hombridade esmoler. Alguns traziam instrumentos: rabecas, sanfonas, caixa-de-bater, violas. Entravam, mantinham-se de pé, em roda, unidos, mais altos, não atentavam para as pessoas, mas apenas à sua função, de venerar em festa o Menino-Deus. Pareciam-me todos cegos. Será, só eles veriam ainda a Estrela? Porém, no centro, para nossa raptada admiração, dançavam os dois Máscaras, vestidos de alegria e pompa, ao enquanto das vozes dos companheiros vindos só para cantar:

Eis chegados a esta casa
os Três Reis do Oriente...

De onde — oásis de Arábia, Pérsia de Zaratustra, Caldeia astrológica — da parte do Oriente ficava sua pátria incerta, além Jordão, descambado o morro do Bento Velho, por cujo caminho, banda de cá, costumavam descer os viajantes do Araçá e da Lagoa, e, sobre, na vista-alegre a gente se divertia com inteiros arco-íris, no espaço das chuvas, seduzidamente, conforme vinham, balançando-se em seus camelos, para adorar o Rei dos Judeus, fantasiados assim, e Herodes a Belém os enviava: o Guarda-Mor e o Bastião.
Dois, só? Respondiam: que por estilos de virtude, porque, os Magos, mesmo, não remedavam de ser. E por que os chamavam, com respeito embora, de “os palhaços”? Bastião, o acólito, de feriada roupa vermelha, gorro, espelho na testa, e que bazofiava, curvando-se para os lados, fazendo sempre símias e facécias, representasse de sandeu. Mas o “mascarado velho”, o Guarda-Mor, esse trajava de truz, seu capacete na cabeça era de papelão preto, imponente, e sérios o enorme nariz e o bigode de pêlos de cauda de boi. Dele, a gente, a gente teria até medo. Pulavam, batendo no chão os bastões enfeitados de fitas e com rodelas de lata, de grave chocalhar. Um dos outros homens alteava o pau com a bandeira, estampa em pano. Entoavam: … “A lapinha era pequena, não cabiam todos três... Cada um por sua vez, adoraram todos três...” Prestigiava-se ao irreal o presépio, à grossa e humana homenagem, velas acesas; a dança e música e canto rezando mesmo por nós, forçoso demais, em fé acima da nossa vontade; pasmavam-nos.
Depois, recebiam uma espórtula, fino recantando agradeciam: “Deus lhe pague a bela esmola...” — e saíam, saudando sem prosa, só o sagrado visitavam. Mas a gente queria acompanhá-los era para poder ver o que se contava tanto — que, onde não lhes dessem entrada, então, de fora, bradavam cantoria torta, a de amaldiçoar: “Esta casa fede a breu...” — e, que dentro dela morava incréu, a zangação continuava. Em vão, porém, esperava-se turra de violências. Avisados por um anjo, voltavam por outro caminho, seguiam se alontanando.
Se às vezes chegavam outras, folias de maiores distâncias, sucedia-se o em tudo por tudo. Só que, os homens, mais desconhecidos, sempre, diferentes mesmo dos iguais. Nem paravam — no vindo, ido e referido. Duas folias se encontrassem, deviam disputar o uso desafio: a vencedora, de mais arte em luzimento, ganhando em paz, da outra, a sacola com o dinheiro. Os estúrdios, que agora no sertão navegavam! A gente repetia de os esquecer.
Celebrava-se o dia 6, Vovó Chiquinha desmanchava o presépio, estiava o tempo em veranico entes do São Sebastião frechado. Por quanto, tornavam a falar nos foliões, deles não sendo boas, nem de casta lembrança, as notícias aportadas. Sabia-se que, por adiante, facilitavam aos poucos de receber no grupo aparasitados e vadios, pegavam desrumo, o Canto sacro dava mais praça a poracé e lundu, perdiam o conselho. Já mal podiam trocar as fardas, vez em quando, desfeitos do suor e das poeiras e chuvaradas. Passavam fome, quando não entravam em pantagruomérico comer, dormiam irrepousadamente, bebiam do tonel das danadas; pintavam o caneco. Nem honravam mais as praxes de preceito. Uma folia topava outra, e, sem nem um mal-entendimento, em vez de avença desapoderavam-se logo, à acossa, enfrentemente: batiam à força aberta, a bastão, a pau de bandeira, a cacete, espatifavam-se nas cabeças os tampos de rabecas e violas.
Só que não podiam tão cedo parar, no ímpeto de zelo, e iam, iam, à conta inteira, de lugar em lugar, fazenda em fazenda, ultrapassavam seu prazo de cessação, a Epifania, queriam os tantos quantos são nos presépios e os meninos-de-jesus do mundo. Mas, era como se, ao passo com que se distanciavam do Natal, no tempo, fossem perdendo sua mágica realidade e a eficácia devota, o furor de fervor não dava para tanta lonjura, e de tão esticado se estragava. Assim naufragavam por aí, espandongados, adoentados, exaustos, caindo abaixo de sono, em pé mesmo se dormiam. Derrotados, recuavam então, retornando, debandando — se coitados, se danados — não raro sob ameaça e apupos, num remate da santa desordem, na matéria merencória.
A gente se entristecia, de saber, receávamos não voltassem, mais nunca, não houvesse a valente Festa de Reis, beleza de piedade, com o Bastião truão e o Guarda-Mor destronado.
— “Mas, sim, eles voltam. Para o ano, se Deus quiser, todos voltam. Sempre, mesmo. Hão de recomeçar...” Os meninos se sorriam. — “... Eles são homens de boa-vontade...” — repetia Chiquitinha.

Guimarães Rosa, em Ave, Palavra

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