Quando
visitava uma exposição de pintura francesa numa galeria de Praga,
Franz Kafka ficou diante de várias obras de Picasso,
naturezas-mortas cubistas e alguns quadros pós-cubistas. Estava
acompanhado na ocasião pelo jovem Gustav Janouch, escritor de quem
foi mentor na adolescência e que deixou um dos mais importantes
depoimentos sobre o poeta tcheco — Conversas com Kafka(1).
Janouch comentou que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os
seres e as coisas. Kafka respondeu que Picasso não pensava desse
modo: “Ele apenas registra as deformidades que ainda não
penetraram em nossa consciência”. Com uma pontaria de mestre,
acrescentou que “a arte é um espelho que adianta, como um
relógio”, sugerindo que Picasso refletia algo que um dia se
tornaria lugar-comum da percepção — “não as nossas formas, mas
as nossas deformidades”.
A
observação do grande prosador do século XX coincidia, por
antecipação, com a famosa análise de Walter Benjamin, de 1934, no
sentido de que em Kafka “as deformações são precisas”. Isso
não desmente, antes confirma, o senso estético avançado do autor
de Praga, que — para dizer o mínimo — tinha uma noção exata do
que estava fazendo.
Mas
quando alguém bate na tecla do “realismo kafkiano” — que é o
caso dos maiores analistas de sua obra, como Wilhelm Emrich, Günther
Anders, o próprio Benjamin e Theodor Adorno(2) — a reação é de
estranhamento, quando não de descrença. O cavalo de batalha, nessa
hora, é A metamorfose, na qual o ficcionista transforma o
personagem Gregor Samsa, já na primeira linha — onde está
enterrada a chave da interpretação da novela —, num “inseto
monstruoso” (ungeheueres Ungeziefer, que não passa por
“barata” sem agredir brutalmente o original). Já discutimos essa
questão* na Sociedade Brasileira de Psicanálise, por ocasião do
centenário de nascimento de Franz Kafka, ensaio que deve ser
publicado no começo do ano pela revista Literatura e Sociedade,
do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP.
Não vale a pena insistir no tema. É preferível tentar mostrar como
o realismo kafkiano (sem dúvida “problemático”, uma vez que
colide com a expectativa do leitor sobre o que é o realismo —
mimese ou imitação da realidade, para simplificar as coisas) se
materializa num conto incluído no volume Um médico rural.
O
conto — na verdade um poema em prosa — é “Na galeria” (“Auf
der Galerie”) e consta de apenas dois parágrafos. Para as
finalidades desta exposição, eles precisam ser reproduzidos na
íntegra:
Se
alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção
em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de
um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote
na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos,
equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo
futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido
incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso
que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são
martelos a vapor — talvez então um jovem espectador da galeria
descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se
arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às fanfarras da
orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.
Mas
uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra
voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré
abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos
respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a
cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo
que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o
sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo;
corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os
saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la
com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que
seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas,
implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande
salto-mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a
nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do
público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos
pés, envolta pela poeira, de braços estendidos, a cabecinha
inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo
inteiro — uma vez que é assim o espectador da galeria apoia o
rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho
pesado, chora sem o saber.**
Tanto
o primeiro como o segundo parágrafo têm o mesmo cenário e no fundo
narram o mesmo acontecimento, embora as perspectivas sejam diferentes
e a atmosfera dos dois não seja a mesma. No primeiro, a atividade
circense da “amazona” se dá sob a coação de um chefe
impiedoso e de um público infatigável; no segundo, é apresentado
um espetáculo edificante de destreza artística de uma cavaleira
jovem e bela, bafejada pela sorte, pelo amor abnegado do diretor
e pelas homenagens do público.
A
leitura indica que no primeiro movimento do conto-poema é aventada a
possibilidade de um espectador da galeria interromper, por meio de
uma intervenção física, esse show infernal. No segundo,
porém, o mesmo espectador não se mostra satisfeito (nem feliz) com
o que se desenvolve no picadeiro; pelo contrário, ele desvia o olhar
da arena e chora sobre o parapeito da galeria.
Esse
comportamento contraditório do espectador só parece incompreensível
na medida em que o leitor não consegue atribuir um sentido
aos matizes do entrecho. Tudo indica que ele só pode se aproximar da
explicação se relacionar o conteúdo do que é narrado com o
recorte concreto da composição. Pois é apenas nesse momento que se
manifesta o teor de verdade estético-crítico da peça.
Em
relação à forma verbal do texto, a primeira impressão que
se tem é a de sua disposição em duas camadas solidárias e opostas
que, no caso, correspondem ao conteúdo duplamente articulado do
texto. A partir desse reconhecimento, é possível examinar os traços
que coincidem e discrepam uns dos outros.
Os
dois longos períodos que compõem os parágrafos têm uma construção
praticamente idêntica, uma vez que ambos consistem — os termos
aqui usados são obviamente um empréstimo — de uma premissa,
ou parte introdutória minuciosa, e de uma conclusão, ou
parte final, sintética e separada da primeira por um travessão. Na
premissa de cada parágrafo, o assunto de que se trata é o que
ocorre no picadeiro, e na conclusão o tema é o comportamento do
espectador da galeria.
Entretanto,
ao passo que o primeiro parágrafo tem um caráter hipotético,
possível mas não factual, dado pela conjunção “se”, pelo
indefinido “alguma” (irgendeine, “uma qualquer”), pelo
verbo no subjuntivo — que em alemão, tanto quanto em português,
designa mais a “irrealidade” do que o “real” — e pelo
“talvez” da conclusão ou parte final, o segundo parágrafo,
veiculado no modo indicativo (ou da “realidade” consensual),
começa com a declaração categórica “mas uma vez que não é
assim”, que desautoriza tudo o que foi dito antes no primeiro.
Portanto,
o segundo parágrafo entra em movimento com uma definição —
que vai receber o reforço de uma repetição no início da
parte final ou conclusão. O gerúndio como preferência verbal do
autor escora essa afirmação. É visível que a principal
característica do primeiro parágrafo é seu emprego abundante:
“sibilando sobre o cavalo”, “atirando beijos”,
“equilibrando-se na cintura” etc. Sabe-se que esse tempo do verbo
(pouco usado em alemão) tem a faculdade de exprimir algo não
acabado, aberto, flutuante — “irreal” — que aponta para outra
direção.3 É a vocação do gerúndio que potencia o aspecto de
irrealidade expresso pelo subjuntivo. (Vale lembrar que, para alguns
especialistas, Kafka desrealiza o real e realiza o irreal — mas é
justamente aí que ele desmascara a ideologia, visto que esta,
enquanto fachada, tende a contrabandear a aparência como realidade.)
Voltando
ao conto: em contraste com o primeiro, o segundo parágrafo só
aparece no modo indicativo, que é o espaço afirmativo da
realidade. Mas não só isso como também se caracteriza por
particípios passados, adjetivos, e não por gerúndios. Uma das
exceções é representada pela conclusão, na qual se anuncia —
agora em relação ao espectador da galeria e não ao que evolui no
picadeiro — que ele “apoia o rosto no parapeito, afundando
na marcha final como num sonho pesado” etc. Nessa frase, como o que
se observou na parte introdutória do primeiro parágrafo, o gerúndio
fortalece a tendência do subjuntivo para o reino aberto do não real
e do “sonho”(4).
A
articulação sintática dos dois parágrafos mantém estreita
relação com o ritmo dos períodos, marcado pela pontuação.
Mais especificamente: os ingredientes verbais da primeira premissa
estão separados, no máximo, por vírgulas, e os da segunda, quase
todos, por ponto e vírgula. Essa circunstância assinala que a
leitura interessada no sentido da segunda premissa exige pausas mais
longas para o encadeamento temporal de suas imagens. Assim é que no
primeiro parágrafo a “corrida” do período — que diagrama a
corrida da amazona na arena — tem a gesticulação verbal de uma
marcha irresistível, que vai em frente, como se os
acontecimentos narrados fossem quase simultâneos. Prova disso é a
existência, aqui, do advérbio “finalmente”, que sugere não um
encavalamento, mas uma sequência particularmente rápida.
Em
suma, o ritmo irresistível e flutuante da primeira premissa
contrasta com o que há de segmentado e “truncado” na segunda.
Mas é exatamente o oposto que sucede na conclusão das duas
passagens — a ponto de alguém imaginar que Kafka as trocou de
lugar por algum motivo. Pois a conclusão da primeira premissa está
como que cortada ao meio pela exclamação “basta!”, e a da
segunda desliza sem tropeços até o fim.
Na
dialética armada pelo texto, porém — ou na tática de inversão
típica de Kafka —, o mundo real, o mundo propriamente
dito, se manifesta na hipótese do primeiro parágrafo. Veja-se
que nela o narrador não nomeado, à la Flaubert, afirma que
as mãos são, na verdade, “martelos a vapor”
(bate-estacas). É por meio dessa metáfora violenta que a realidade
do segundo parágrafo é abalada, suspensa ou negada pela irrealidade
apresentada no subjuntivo do primeiro, pois as mãos que batem palmas
não são propriamente, na verdade, martelos a vapor.
Além
disso, é nesse primeiro parágrafo do conto que se abre o campo para
a técnica, assinalada pelo bramido dos ventiladores e pelo
ruído das fanfarras. É possível que ela se infiltre até na
maneira como a amazona fica entregue à lei impiedosa de um mecanismo
impessoal: “durante meses sem interrupção” ela permanece
girando — como a cavaleira no quadro Le Cirque, de Georges
Seurat, que Kafka certamente viu, no Louvre, numa de suas duas únicas
viagens a Paris — “pelo futuro cinzento que adiante se abre sem
parar”. Esse inferno do movimento automático e incessante é
sustentado pelo ritmo da premissa do primeiro parágrafo, que
também não sofre interrupção.
Seja
como for, a evolução verbal e as imagens do segundo parágrafo
despertam no leitor, por meio da submissão canina e do
sentimentalismo cor-de-rosa do diretor, a impressão de algo falso e
inautêntico: “Uma bela dama em branco e vermelho entra voando por
entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante
dela” — enquanto o diretor, que busca abnegadamente seus olhos,
suspira ao seu encontro e ergue-a cuidadosamente, como se ela fosse a
neta amada acima de tudo, que parte para uma viagem perigosa etc.
Não
é exagero dizer que muita coisa aqui lembra as apresentações
suntuosas e ordinárias dos auditórios de tevê dominados tanto
pelas câmeras e refletores como pelas divas da mídia, que
caem como uma luva nesse deletério “paraíso artificial”. A esta
altura é plausível arrematar que os dois parágrafos, integrados
num regime de oposição, só se iluminam quando confrontados um com
o outro, já que é da montagem de ambos que pode sair, como
de um casulo, o sentido da narrativa.
Um
passo adiante, se o leitor é capaz de vislumbrar, no mundo do circo,
um símile do próprio mundo em que vive, então a realidade
“propriamente dita” do primeiro parágrafo, em comparação
com a realidade “aparente” do segundo, expõe sibilinamente a
ferida da alienação contemporânea, vincada pelo atropelo e
crueldade que ou não são captados pelo público (pois é dele o
ponto de vista de tudo) ou então se veem despachados com um
artifício que nada tem a ver com a verdade e que por isso mesmo
invoca, aqui, o modo subjuntivo da irrealidade. “O gênero humano/
não pode suportar tanta realidade”(5), escreve T. S. Eliot. Seria
possível até assumir que, neste caso, se trata de uma Grande Recusa
de caráter regressivo.
É
viável, ainda, supor que a imagem do circo kafkiano aponta para o
mundo da arte (no original, a palavra “amazona” ou “artista a
cavalo” é designada pelo composto Kunstreiterin. Kunst
significa “arte” e reiterin, “cavaleira”). Dentro
desse quadro a figura “frágil” e “tísica”, vista pelo
público (que a rejeita), pode representar a atividade artística,
que prefere o imaginário ao que é falso. A atitude básica do
público, aliás, se distingue pela falta de “visão” (que o
espectador da galeria tem, do seu lugar privilegiado no alto do
circo) — tanto no que diz respeito ao embotamento como no martelar
mecânico do seu aplauso “bate-estacas”.
Por
outro lado, a realidade “propriamente dita” (na contracorrente do
modo subjuntivo), que informa o primeiro período, é encoberta pela
“aparência” do segundo, que o público-massa não consegue
penetrar (como se disse dos quadros de Picasso) e que, por isso
mesmo, toma como sendo verdadeira. É esse o motivo pelo qual
Kafka usou aqui o modo indicativo. Claro que, por esse prisma, a
miséria aparece forçosamente como felicidade, a fragilidade e a
doença como beleza, a crueldade como cuidado amoroso.
O
único “personagem” que se descola do comportamento do público é
o jovem espectador da galeria. Kafka indica que ele poderia
interromper o desatino que se repete ao infinito na arena do circo.
Mas diante da bela ilusão (ou fantasmagoria, para a teoria
social) que aí prevalece, ele afunda no sono e “chora sem o
saber”. Uma reação como essa torna evidente que ele não é
engolido pelo entusiasmo manipulado (e aceito pela multidão), mas
sim tocado pela tragédia anônima da amazona proletária, embora já
não tenha forças nem para enfrentar a própria sensibilidade diante
do que sabe que é feroz e veraz.
A
conclusão do primeiro parágrafo, por sinal, diz que ele “talvez”
se arrojasse ao picadeiro e bradasse o basta! àquele show de
degradação. Se não o faz, é porque é incapaz de impedir o
sofrimento do mundo reificado, que esconde a verdade atrás de uma
fachada que a “imitação” muitas vezes duplica para não
“deformar”.
Mas
o autor-narrador está empenhado em abrir os olhos do leitor para o
que interessa, dando-lhe a medida de sua responsabilidade e para que
grite o basta! no picadeiro em que o mundo-espetáculo se
transformou e se consolida. Com certeza é nisso que residem o
realismo de Kafka e sua capacidade de intervenção: ele mostra,
no próprio corpo de obras-primas como essa, as coisas como elas são
e as coisas como elas são percebidas pelo olhar alienado.
Evidentemente
não se trata do realismo dos grandes mestres do século XIX, embora
Kafka se considerasse “parente de sangue” de Flaubert e Kleist. O
século XX já era um outro mundo, e os moldes de um Balzac ou de um
Tolstói, por exemplo, não podiam dar conta dele, sob pena de um
acomodado anacronismo estético-histórico. Sendo assim, era preciso
criar novos modos de olhar e narrar, e Kafka criou o dele —
inconfundível —, que, por ser novo e renovador, aberto às
ocorrências que surgiam em estado de casulo, causou espanto e
estranheza quando foi chamado de “realista”.
Notas:
1.
Janouch, g. Conversas com Kafka. Trad. Celina Luz. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.
2.
Emrich, w. Franz Kafka, a Critical Study of his writings. New York:
Frederic Ungar Publ. Co., 1968; anders, g. Kafka: pró e contra.
Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Cosacnaify,
2007; adorno, t. w. “Anotações sobre Kafka”. In: Prismas —
crítica cultural e sociedade. Trad. A. Wernet e J. de Almeida. São
Paulo: Ática, 1998; e idem. “Posição do narrador no romance
contemporâneo”. In: Notas de literatura I. Trad. J. de Almeida.
São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003.
3.
Cf. Cunha, Celso. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 481: “O aspecto
inacabado do gerúndio permite-lhe exprimir a ideia de progressão
infinita, naturalmente mais acentuado se a forma vier repetida”.
4.
Ibidem, p. 453: “Quando nos servimos do modo indicativo,
consideramos o fato expresso como certo, real, seja no presente, seja
no passado, seja no futuro. Ao empregarmos o modo subjuntivo, é
completamente diversa a nossa atitude. Encaramos então a existência
do fato como uma coisa incerta, duvidosa, ou, mesmo, irreal”. Cf.
também a nota anterior.
5.
“Quatro quartetos”. In: Poemas. Trad. Ivan Junqueira. 4ª ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 200.
**kafka,
f. Um médico rural [Ein Landarzt]. Trad. Modesto Carone. 2ª reimpr.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 22-3.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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