quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

O realismo de Franz Kafka

Quando visitava uma exposição de pintura francesa numa galeria de Praga, Franz Kafka ficou diante de várias obras de Picasso, naturezas-mortas cubistas e alguns quadros pós-cubistas. Estava acompanhado na ocasião pelo jovem Gustav Janouch, escritor de quem foi mentor na adolescência e que deixou um dos mais importantes depoimentos sobre o poeta tcheco — Conversas com Kafka(1). Janouch comentou que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e as coisas. Kafka respondeu que Picasso não pensava desse modo: “Ele apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”. Com uma pontaria de mestre, acrescentou que “a arte é um espelho que adianta, como um relógio”, sugerindo que Picasso refletia algo que um dia se tornaria lugar-comum da percepção — “não as nossas formas, mas as nossas deformidades”.
A observação do grande prosador do século XX coincidia, por antecipação, com a famosa análise de Walter Benjamin, de 1934, no sentido de que em Kafka “as deformações são precisas”. Isso não desmente, antes confirma, o senso estético avançado do autor de Praga, que — para dizer o mínimo — tinha uma noção exata do que estava fazendo.
Mas quando alguém bate na tecla do “realismo kafkiano” — que é o caso dos maiores analistas de sua obra, como Wilhelm Emrich, Günther Anders, o próprio Benjamin e Theodor Adorno(2) — a reação é de estranhamento, quando não de descrença. O cavalo de batalha, nessa hora, é A metamorfose, na qual o ficcionista transforma o personagem Gregor Samsa, já na primeira linha — onde está enterrada a chave da interpretação da novela —, num “inseto monstruoso” (ungeheueres Ungeziefer, que não passa por “barata” sem agredir brutalmente o original). Já discutimos essa questão* na Sociedade Brasileira de Psicanálise, por ocasião do centenário de nascimento de Franz Kafka, ensaio que deve ser publicado no começo do ano pela revista Literatura e Sociedade, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Não vale a pena insistir no tema. É preferível tentar mostrar como o realismo kafkiano (sem dúvida “problemático”, uma vez que colide com a expectativa do leitor sobre o que é o realismo — mimese ou imitação da realidade, para simplificar as coisas) se materializa num conto incluído no volume Um médico rural.
O conto — na verdade um poema em prosa — é “Na galeria” (“Auf der Galerie”) e consta de apenas dois parágrafos. Para as finalidades desta exposição, eles precisam ser reproduzidos na íntegra:

Se alguma amazona frágil e tísica fosse impelida meses sem interrupção em círculos ao redor do picadeiro sobre o cavalo oscilante diante de um público infatigável pelo diretor de circo impiedoso de chicote na mão, sibilando em cima do cavalo, atirando beijos, equilibrando-se na cintura, e se esse espetáculo prosseguisse pelo futuro que se vai abrindo à frente sempre cinzento sob o bramido incessante da orquestra e dos ventiladores, acompanhado pelo aplauso que se esvai e outra vez se avoluma das mãos que na verdade são martelos a vapor — talvez então um jovem espectador da galeria descesse às pressas a longa escada através de todas as filas, se arrojasse no picadeiro e bradasse o basta! em meio às fanfarras da orquestra sempre pronta a se ajustar às situações.
Mas uma vez que não é assim, uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela; o diretor, buscando abnegadamente os seus olhos respira voltado para ela numa postura de animal fiel; ergue-a cauteloso sobre o alazão como se fosse a neta amada acima de tudo que parte para uma viagem perigosa; não consegue se decidir a dar o sinal com o chicote; afinal dominando-se ele o dá com um estalo; corre de boca aberta ao lado do cavalo; segue com olhar agudo os saltos da amazona; mal pode entender sua destreza; procura adverti-la com exclamações em inglês; furioso exorta os palafreneiros que seguram os arcos à atenção mais minuciosa; as mãos levantadas, implora à orquestra para que faça silêncio antes do grande salto-mortal; finalmente alça a pequena do cavalo trêmulo, beija-a nas duas faces e não considera suficiente nenhuma homenagem do público; enquanto ela própria, sustentada por ele, na ponta dos pés, envolta pela poeira, de braços estendidos, a cabecinha inclinada para trás, quer partilhar sua felicidade com o circo inteiro — uma vez que é assim o espectador da galeria apoia o rosto sobre o parapeito e, afundando na marcha final como num sonho pesado, chora sem o saber.**

Tanto o primeiro como o segundo parágrafo têm o mesmo cenário e no fundo narram o mesmo acontecimento, embora as perspectivas sejam diferentes e a atmosfera dos dois não seja a mesma. No primeiro, a atividade circense da “amazona” se dá sob a coação de um chefe impiedoso e de um público infatigável; no segundo, é apresentado um espetáculo edificante de destreza artística de uma cavaleira jovem e bela, bafejada pela sorte, pelo amor abnegado do diretor e pelas homenagens do público.
A leitura indica que no primeiro movimento do conto-poema é aventada a possibilidade de um espectador da galeria interromper, por meio de uma intervenção física, esse show infernal. No segundo, porém, o mesmo espectador não se mostra satisfeito (nem feliz) com o que se desenvolve no picadeiro; pelo contrário, ele desvia o olhar da arena e chora sobre o parapeito da galeria.
Esse comportamento contraditório do espectador só parece incompreensível na medida em que o leitor não consegue atribuir um sentido aos matizes do entrecho. Tudo indica que ele só pode se aproximar da explicação se relacionar o conteúdo do que é narrado com o recorte concreto da composição. Pois é apenas nesse momento que se manifesta o teor de verdade estético-crítico da peça.
Em relação à forma verbal do texto, a primeira impressão que se tem é a de sua disposição em duas camadas solidárias e opostas que, no caso, correspondem ao conteúdo duplamente articulado do texto. A partir desse reconhecimento, é possível examinar os traços que coincidem e discrepam uns dos outros.
Os dois longos períodos que compõem os parágrafos têm uma construção praticamente idêntica, uma vez que ambos consistem — os termos aqui usados são obviamente um empréstimo — de uma premissa, ou parte introdutória minuciosa, e de uma conclusão, ou parte final, sintética e separada da primeira por um travessão. Na premissa de cada parágrafo, o assunto de que se trata é o que ocorre no picadeiro, e na conclusão o tema é o comportamento do espectador da galeria.
Entretanto, ao passo que o primeiro parágrafo tem um caráter hipotético, possível mas não factual, dado pela conjunção “se”, pelo indefinido “alguma” (irgendeine, “uma qualquer”), pelo verbo no subjuntivo — que em alemão, tanto quanto em português, designa mais a “irrealidade” do que o “real” — e pelo “talvez” da conclusão ou parte final, o segundo parágrafo, veiculado no modo indicativo (ou da “realidade” consensual), começa com a declaração categórica “mas uma vez que não é assim”, que desautoriza tudo o que foi dito antes no primeiro.
Portanto, o segundo parágrafo entra em movimento com uma definição — que vai receber o reforço de uma repetição no início da parte final ou conclusão. O gerúndio como preferência verbal do autor escora essa afirmação. É visível que a principal característica do primeiro parágrafo é seu emprego abundante: “sibilando sobre o cavalo”, “atirando beijos”, “equilibrando-se na cintura” etc. Sabe-se que esse tempo do verbo (pouco usado em alemão) tem a faculdade de exprimir algo não acabado, aberto, flutuante — “irreal” — que aponta para outra direção.3 É a vocação do gerúndio que potencia o aspecto de irrealidade expresso pelo subjuntivo. (Vale lembrar que, para alguns especialistas, Kafka desrealiza o real e realiza o irreal — mas é justamente aí que ele desmascara a ideologia, visto que esta, enquanto fachada, tende a contrabandear a aparência como realidade.)
Voltando ao conto: em contraste com o primeiro, o segundo parágrafo só aparece no modo indicativo, que é o espaço afirmativo da realidade. Mas não só isso como também se caracteriza por particípios passados, adjetivos, e não por gerúndios. Uma das exceções é representada pela conclusão, na qual se anuncia — agora em relação ao espectador da galeria e não ao que evolui no picadeiro — que ele “apoia o rosto no parapeito, afundando na marcha final como num sonho pesado” etc. Nessa frase, como o que se observou na parte introdutória do primeiro parágrafo, o gerúndio fortalece a tendência do subjuntivo para o reino aberto do não real e do “sonho”(4).
A articulação sintática dos dois parágrafos mantém estreita relação com o ritmo dos períodos, marcado pela pontuação. Mais especificamente: os ingredientes verbais da primeira premissa estão separados, no máximo, por vírgulas, e os da segunda, quase todos, por ponto e vírgula. Essa circunstância assinala que a leitura interessada no sentido da segunda premissa exige pausas mais longas para o encadeamento temporal de suas imagens. Assim é que no primeiro parágrafo a “corrida” do período — que diagrama a corrida da amazona na arena — tem a gesticulação verbal de uma marcha irresistível, que vai em frente, como se os acontecimentos narrados fossem quase simultâneos. Prova disso é a existência, aqui, do advérbio “finalmente”, que sugere não um encavalamento, mas uma sequência particularmente rápida.
Em suma, o ritmo irresistível e flutuante da primeira premissa contrasta com o que há de segmentado e “truncado” na segunda. Mas é exatamente o oposto que sucede na conclusão das duas passagens — a ponto de alguém imaginar que Kafka as trocou de lugar por algum motivo. Pois a conclusão da primeira premissa está como que cortada ao meio pela exclamação “basta!”, e a da segunda desliza sem tropeços até o fim.
Na dialética armada pelo texto, porém — ou na tática de inversão típica de Kafka —, o mundo real, o mundo propriamente dito, se manifesta na hipótese do primeiro parágrafo. Veja-se que nela o narrador não nomeado, à la Flaubert, afirma que as mãos são, na verdade, “martelos a vapor” (bate-estacas). É por meio dessa metáfora violenta que a realidade do segundo parágrafo é abalada, suspensa ou negada pela irrealidade apresentada no subjuntivo do primeiro, pois as mãos que batem palmas não são propriamente, na verdade, martelos a vapor.
Além disso, é nesse primeiro parágrafo do conto que se abre o campo para a técnica, assinalada pelo bramido dos ventiladores e pelo ruído das fanfarras. É possível que ela se infiltre até na maneira como a amazona fica entregue à lei impiedosa de um mecanismo impessoal: “durante meses sem interrupção” ela permanece girando — como a cavaleira no quadro Le Cirque, de Georges Seurat, que Kafka certamente viu, no Louvre, numa de suas duas únicas viagens a Paris — “pelo futuro cinzento que adiante se abre sem parar”. Esse inferno do movimento automático e incessante é sustentado pelo ritmo da premissa do primeiro parágrafo, que também não sofre interrupção.
Seja como for, a evolução verbal e as imagens do segundo parágrafo despertam no leitor, por meio da submissão canina e do sentimentalismo cor-de-rosa do diretor, a impressão de algo falso e inautêntico: “Uma bela dama em branco e vermelho entra voando por entre as cortinas que os orgulhosos criados de libré abrem diante dela” — enquanto o diretor, que busca abnegadamente seus olhos, suspira ao seu encontro e ergue-a cuidadosamente, como se ela fosse a neta amada acima de tudo, que parte para uma viagem perigosa etc.
Não é exagero dizer que muita coisa aqui lembra as apresentações suntuosas e ordinárias dos auditórios de tevê dominados tanto pelas câmeras e refletores como pelas divas da mídia, que caem como uma luva nesse deletério “paraíso artificial”. A esta altura é plausível arrematar que os dois parágrafos, integrados num regime de oposição, só se iluminam quando confrontados um com o outro, já que é da montagem de ambos que pode sair, como de um casulo, o sentido da narrativa.
Um passo adiante, se o leitor é capaz de vislumbrar, no mundo do circo, um símile do próprio mundo em que vive, então a realidade “propriamente dita” do primeiro parágrafo, em comparação com a realidade “aparente” do segundo, expõe sibilinamente a ferida da alienação contemporânea, vincada pelo atropelo e crueldade que ou não são captados pelo público (pois é dele o ponto de vista de tudo) ou então se veem despachados com um artifício que nada tem a ver com a verdade e que por isso mesmo invoca, aqui, o modo subjuntivo da irrealidade. “O gênero humano/ não pode suportar tanta realidade”(5), escreve T. S. Eliot. Seria possível até assumir que, neste caso, se trata de uma Grande Recusa de caráter regressivo.
É viável, ainda, supor que a imagem do circo kafkiano aponta para o mundo da arte (no original, a palavra “amazona” ou “artista a cavalo” é designada pelo composto Kunstreiterin. Kunst significa “arte” e reiterin, “cavaleira”). Dentro desse quadro a figura “frágil” e “tísica”, vista pelo público (que a rejeita), pode representar a atividade artística, que prefere o imaginário ao que é falso. A atitude básica do público, aliás, se distingue pela falta de “visão” (que o espectador da galeria tem, do seu lugar privilegiado no alto do circo) — tanto no que diz respeito ao embotamento como no martelar mecânico do seu aplauso “bate-estacas”.
Por outro lado, a realidade “propriamente dita” (na contracorrente do modo subjuntivo), que informa o primeiro período, é encoberta pela “aparência” do segundo, que o público-massa não consegue penetrar (como se disse dos quadros de Picasso) e que, por isso mesmo, toma como sendo verdadeira. É esse o motivo pelo qual Kafka usou aqui o modo indicativo. Claro que, por esse prisma, a miséria aparece forçosamente como felicidade, a fragilidade e a doença como beleza, a crueldade como cuidado amoroso.
O único “personagem” que se descola do comportamento do público é o jovem espectador da galeria. Kafka indica que ele poderia interromper o desatino que se repete ao infinito na arena do circo. Mas diante da bela ilusão (ou fantasmagoria, para a teoria social) que aí prevalece, ele afunda no sono e “chora sem o saber”. Uma reação como essa torna evidente que ele não é engolido pelo entusiasmo manipulado (e aceito pela multidão), mas sim tocado pela tragédia anônima da amazona proletária, embora já não tenha forças nem para enfrentar a própria sensibilidade diante do que sabe que é feroz e veraz.
A conclusão do primeiro parágrafo, por sinal, diz que ele “talvez” se arrojasse ao picadeiro e bradasse o basta! àquele show de degradação. Se não o faz, é porque é incapaz de impedir o sofrimento do mundo reificado, que esconde a verdade atrás de uma fachada que a “imitação” muitas vezes duplica para não “deformar”.
Mas o autor-narrador está empenhado em abrir os olhos do leitor para o que interessa, dando-lhe a medida de sua responsabilidade e para que grite o basta! no picadeiro em que o mundo-espetáculo se transformou e se consolida. Com certeza é nisso que residem o realismo de Kafka e sua capacidade de intervenção: ele mostra, no próprio corpo de obras-primas como essa, as coisas como elas são e as coisas como elas são percebidas pelo olhar alienado.
Evidentemente não se trata do realismo dos grandes mestres do século XIX, embora Kafka se considerasse “parente de sangue” de Flaubert e Kleist. O século XX já era um outro mundo, e os moldes de um Balzac ou de um Tolstói, por exemplo, não podiam dar conta dele, sob pena de um acomodado anacronismo estético-histórico. Sendo assim, era preciso criar novos modos de olhar e narrar, e Kafka criou o dele — inconfundível —, que, por ser novo e renovador, aberto às ocorrências que surgiam em estado de casulo, causou espanto e estranheza quando foi chamado de “realista”.

Notas:
1. Janouch, g. Conversas com Kafka. Trad. Celina Luz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
2. Emrich, w. Franz Kafka, a Critical Study of his writings. New York: Frederic Ungar Publ. Co., 1968; anders, g. Kafka: pró e contra. Tradução e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Cosacnaify, 2007; adorno, t. w. “Anotações sobre Kafka”. In: Prismas — crítica cultural e sociedade. Trad. A. Wernet e J. de Almeida. São Paulo: Ática, 1998; e idem. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: Notas de literatura I. Trad. J. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2003.
3. Cf. Cunha, Celso. Nova gramática do português contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 481: “O aspecto inacabado do gerúndio permite-lhe exprimir a ideia de progressão infinita, naturalmente mais acentuado se a forma vier repetida”.
4. Ibidem, p. 453: “Quando nos servimos do modo indicativo, consideramos o fato expresso como certo, real, seja no presente, seja no passado, seja no futuro. Ao empregarmos o modo subjuntivo, é completamente diversa a nossa atitude. Encaramos então a existência do fato como uma coisa incerta, duvidosa, ou, mesmo, irreal”. Cf. também a nota anterior.
5. “Quatro quartetos”. In: Poemas. Trad. Ivan Junqueira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 200.
**kafka, f. Um médico rural [Ein Landarzt]. Trad. Modesto Carone. 2ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 22-3.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

Nenhum comentário:

Postar um comentário