— É
uma pena que o Ghost tenha perdido os mastros. Poderíamos ir
embora navegando com ele. Não acha que poderíamos, Humphrey?
Levantei
de um salto, alvoroçado.
— Quem
sabe, quem sabe — fiquei repetindo, andando de um lado a outro.
Os
olhos de Maud me seguiam, brilhando de expectativa. Como era grande a
fé que tinha em mim! E pensar nisso apenas intensificava o efeito.
Lembrei do dito de Michelet: “Para o homem, a mulher é como foi a
terra para o seu lendário filho; basta deitar-se e beijar-lhe o seio
para ter sua força redobrada.”(93) Pela primeira vez, experimentei
a bela verdade dessas palavras. Ora, eu as estava vivendo. Maud era
tudo isso para mim, uma fonte incessante de força e coragem. Bastava
olhar para ela ou pensar nela para ter minha força redobrada.
— Seria
possível, seria possível — fui pensando e afirmando em voz alta.
— O que outros fizeram, eu posso. E, se nunca o fizeram, também
posso.
— O
quê? Pelo amor de Deus — implorou Maud. — Tenha piedade. O que
você pode fazer?
— Nós
podemos fazer — corrigi. — Ora, estou falando de colocar os
mastros de volta no Ghost e partir.
— Humphrey!
Senti
orgulho de minha ideia como se fosse um fato consumado.
— Mas
como seria possível fazer isso? — ela perguntou.
— Não
sei — foi o que pude responder. — Sei apenas que, atualmente, sou
capaz de tudo.
Sorri
com orgulho para ela, orgulho em excesso, pois ela baixou os olhos e
ficou um momento em silêncio.
— Mas
o capitão Larsen está lá — ela objetou.
— Cego
e inofensivo — respondi na mesma hora, como se ele não fosse nada
além de um punhado de palha.
— Mas
aquelas mãos terríveis! Você mencionou o salto que ele deu por
cima do buraco da despensa!
— E
também mencionei que dei a volta e passei por ele sem que nada
acontecesse — contrapus alegremente.
— E
perdeu os sapatos.
— Ninguém
poderia esperar que escapassem de Wolf Larsen sem os meus pés
dentro.
Rimos
juntos e depois nos dedicamos seriamente a construir um plano para
encaixar os mastros do Ghost e retornar ao mundo. Eu lembrava
vagamente da física aprendida em meus tempos de colégio, e os meses
recentes haviam me proporcionado experiência prática com içamentos
e talhas. Preciso dizer, porém, que ao caminharmos até perto do
Ghost para inspecionar mais de perto a situação a visão dos
mastros principais deitados na água quase me desanimou. Por onde
começar? Se pelo menos restasse um mastro em pé, algo elevado para
prender talhas e moitões! Mas não havia nada. Lembrei daquela
anedota sobre suspender a si mesmo pelos cadarços das botas. Eu
entendia a mecânica das alavancas, mas onde encontraria um ponto de
apoio?
Havia
o mastro principal, com quarenta centímetros de diâmetro no que era
agora o seu topo, ainda com vinte metros de comprimento e pesando,
calculei por cima, quase uma tonelada e meia. Depois vinha o mastro
de proa, maior em diâmetro e pesando com certeza mais de uma
tonelada e meia. Por onde eu poderia começar? Maud ficou quieta ao
meu lado enquanto eu desenvolvia mentalmente o mecanismo conhecido
entre os marinheiros como “cabrilha”. Mas, apesar de conhecido
entre os marinheiros, eu o inventei ali mesmo em Endeavour Island. Se
eu cruzasse duas vergas, amarrasse as pontas e as elevasse no ar como
um “V” invertido, obteria um ponto acima do convés para fixar
minha talha de içar. A essa talha de içar eu poderia, se
necessário, fixar uma segunda. E ainda por cima havia o cabrestante!
Maud
percebeu que eu havia encontrado uma solução e seus olhos se
enterneceram em solidariedade.
— O
que vai fazer? — perguntou.
— Limpar
aquela bagunça — respondi, apontando para os destroços
emaranhados ao lado do barco.
Ah,
a determinação e o próprio som das palavras soavam bem a meus
ouvidos. “Limpar aquela bagunça!” Imagine uma frase tão
pungente saindo da boca de Humphrey van Weyden alguns meses antes!
Devia
haver um toque melodramático em minha postura e voz, pois Maud abriu
um sorriso. Sua capacidade de valorizar o ridículo era aguda, e em
tudo ela via e sentia, caso estivessem presentes, o toque de
fingimento, a sombra em excesso, o tom exagerado. Era isso que havia
conferido equilíbrio e penetração à sua obra, tornando-a valiosa
para o mundo todo. O crítico sério, com senso de humor e capacidade
de expressão, acaba inevitavelmente sendo ouvido pelo mundo. Ela
tinha merecido essa atenção. Seu senso de humor era, na verdade, o
instinto de proporção de uma artista.
— Tenho
certeza de que já li isso em algum livro — ela murmurou em tom de
galhofa.
Eu
também tinha um instinto de proporção e desmoronei de imediato,
despencando da pose dominante de um mestre no assunto a um estado de
confusão humilde que era, para dizer o mínimo, bastante
desagradável.
Sua
mão procurou a minha no mesmo instante.
— Por
favor, me desculpe — ela disse.
— Não
é necessário — engoli em seco. — Isso me faz bem. Em muitos
sentidos, ainda sou um colegial. O que no fundo é irrelevante. O que
precisamos fazer, literalmente, é limpar aquela bagunça. Se fizer a
gentileza de me acompanhar até o barco, podemos iniciar o trabalho e
começar a arrumar tudo.
— “Quando
o marujo limpa a bagunça com a adaga entre os dentes” —94 ela
citou olhando para mim, e passamos o resto da tarde gracejando.
A
função dela era manter o bote no lugar enquanto eu cuidava daquele
emaranhado. E que emaranhado: adriças, velas, patarrases,
carregadeiras, brandais e estais, espalhados para tudo que é lado,
enrolados e enroscados pelo mar. Cortei apenas o necessário e logo
fiquei todo encharcado passando cordas compridas por baixo e ao redor
dos mastros e paus de carga ou enrolando-as no bote e depois
desfazendo os rolos para passar outro nó pelo seio do cabo.
Foi
necessário cortar algumas velas, e a lona pesada de água desafiou
minhas forças, mas antes do anoitecer consegui abri-las todas na
areia para secar. Estávamos os dois muito cansados quando fomos
jantar, mas tínhamos feito um belo trabalho, por mais que parecesse
insignificante ao olhar.
Na
manhã seguinte, com a competente assistência de Maud, desci ao
porão do Ghost para preparar os encaixes dos mastros. Mal
tínhamos começado a trabalhar quando o barulho das minhas pancadas
e marteladas atraiu Wolf Larsen.
— Ei,
você aí embaixo! — ele gritou pela escotilha aberta.
O
som de sua voz fez Maud se jogar para perto de mim em busca de
proteção, e ela manteve a mão em meu braço no decorrer da
conversa.
— Ei,
você no convés — respondi. — Bom dia.
— O
que está fazendo aí? — ele inquiriu. — Tentando afundar meu
navio?
— Muito
pelo contrário. Estou tentando consertá-lo.
— Mas
que diabos você está consertando?
Havia
perplexidade em sua voz.
— Ora,
estou preparando tudo para reinstalar os mastros — respondi
casualmente, como se fosse o projeto mais simples de se imaginar.
— Parece
que você finalmente está andando com as próprias pernas, Hump —
ouvimos ele dizer. Depois ele ficou algum tempo em silêncio. — Mas
me ouça, Hump. Você não pode fazer isso.
— Posso
sim — retruquei. — É o que estou fazendo agora mesmo.
— Mas
esta é minha embarcação, minha propriedade particular. E se eu o
proibir?
— Você
esquece de uma coisa — respondi. — Você já não é o fermento
mais forte. Podia me devorar antes, como fazia questão de dizer, mas
sua força diminuiu e agora eu posso devorá-lo. O levedo estragou.
Ele
soltou uma risada curta e desagradável.
— Percebo
que está voltando a minha filosofia contra mim e tirando o máximo
proveito dela. Mas não cometa o erro de me subestimar. Estou
avisando para seu próprio bem.
— Desde
quando você se tornou um filantropo? — perguntei. — Muito
coerente da sua parte, me avisar para o meu próprio bem.
Ele
ignorou meu sarcasmo e disse:
— E
se eu trancasse a tampa agora? Você não vai me enganar de novo,
como fez na despensa.
— Wolf
Larsen — eu disse com firmeza, me dirigindo a ele pela primeira vez
por sua famosa alcunha —, sou incapaz de atirar num homem indefeso
e que não oferece resistência. Você provou isso, para nossa mútua
satisfação. Mas quem avisa agora sou eu, e não pelo seu bem, mas
pelo meu próprio, que vou atirar no instante em que você cometer
qualquer gesto hostil. Posso atirar em você agora mesmo, de onde
estou, e se realmente faz questão, vá em frente e tente fechar a
tampa.
— De
todo modo, eu o proíbo terminantemente de mexer no meu navio.
— Homem,
ouça! — adverti. — Você menciona que o navio é seu como se
fosse um direito moral. Você nunca levou direitos morais em
consideração ao tratar com outras pessoas. Espero que não sonhe
que eu vá levá-los em consideração ao tratar com você.
Eu
tinha me posicionado bem embaixo da escotilha aberta para vê-lo
melhor. A ausência de expressão em seu rosto, tão diferente de
quando eu o observei sem ser percebido, era exacerbada agora por
olhos fixos e arregalados. Não era um rosto agradável de ver.
— E
ninguém é pobre demais, nem mesmo Hump, para prestar-lhe reverência
— ele desdenhou.(95)
Sua
voz era puro desdém. Seu rosto continuava sem exibir qualquer
expressão.
— Como
vai, srta. Brewster? — ele falou de repente, após uma pausa.
Tive
um sobressalto. Ela não tinha feito barulho algum, não tinha nem se
mexido. Será que ainda lhe restava um átimo de visão? Ou será que
sua visão estava retornando?
— Como
vai o senhor, capitão Larsen — ela respondeu. — Por favor, se
importaria de dizer como sabe que estou aqui?
— Escutei
sua respiração, é claro. Mas, como eu dizia, Hump está melhorando
bastante, não acha?
— Não
sei — ela respondeu, sorrindo para mim. — Nunca o vi diferente.
— Devia
ter visto como ele era antes, então.
— Doses
altas de Wolf Larsen — murmurei —, veja o antes e o depois.
— Quero
lhe dizer mais uma vez, Hump — ele afirmou em tom ameaçador —,
que é melhor deixar as coisas como estão.
— Mas
você também não tem interesse em sair daqui? — perguntei,
incrédulo.
— Não
— ele respondeu. — Pretendo morrer aqui.
— Pois
bem, nós não — encerrei em tom desafiador, e voltei a bater e a
martelar.
(93)
Paráfrase de observações feitas por Jules Michelet em suas obras
L’Amour (1858) e La Femme (1859).
(94)
Verso do poema “The Galley-Slave”, de Rudyard Kipling, publicado
em 1890 em Departmental Ditties and Other Verses. No original:
“When the topmen clear the raffle with their clasp-knives in
their teeth.”
(95)
London alude aqui a um discurso de Antônio em Júlio César
(Ato 3, Cena 2), de Shakespeare: “But yesterday the word of
Caesar might/ Have stood against the world. Now lies he there,/ And
none so poor to do him reverence.”
Jack London, in O Lobo do Mar
Nenhum comentário:
Postar um comentário