quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 34

É uma pena que o Ghost tenha perdido os mastros. Poderíamos ir embora navegando com ele. Não acha que poderíamos, Humphrey?
Levantei de um salto, alvoroçado.
Quem sabe, quem sabe — fiquei repetindo, andando de um lado a outro.
Os olhos de Maud me seguiam, brilhando de expectativa. Como era grande a fé que tinha em mim! E pensar nisso apenas intensificava o efeito. Lembrei do dito de Michelet: “Para o homem, a mulher é como foi a terra para o seu lendário filho; basta deitar-se e beijar-lhe o seio para ter sua força redobrada.”(93) Pela primeira vez, experimentei a bela verdade dessas palavras. Ora, eu as estava vivendo. Maud era tudo isso para mim, uma fonte incessante de força e coragem. Bastava olhar para ela ou pensar nela para ter minha força redobrada.
Seria possível, seria possível — fui pensando e afirmando em voz alta. — O que outros fizeram, eu posso. E, se nunca o fizeram, também posso.
O quê? Pelo amor de Deus — implorou Maud. — Tenha piedade. O que você pode fazer?
Nós podemos fazer — corrigi. — Ora, estou falando de colocar os mastros de volta no Ghost e partir.
Humphrey!
Senti orgulho de minha ideia como se fosse um fato consumado.
Mas como seria possível fazer isso? — ela perguntou.
Não sei — foi o que pude responder. — Sei apenas que, atualmente, sou capaz de tudo.
Sorri com orgulho para ela, orgulho em excesso, pois ela baixou os olhos e ficou um momento em silêncio.
Mas o capitão Larsen está lá — ela objetou.
Cego e inofensivo — respondi na mesma hora, como se ele não fosse nada além de um punhado de palha.
Mas aquelas mãos terríveis! Você mencionou o salto que ele deu por cima do buraco da despensa!
E também mencionei que dei a volta e passei por ele sem que nada acontecesse — contrapus alegremente.
E perdeu os sapatos.
Ninguém poderia esperar que escapassem de Wolf Larsen sem os meus pés dentro.
Rimos juntos e depois nos dedicamos seriamente a construir um plano para encaixar os mastros do Ghost e retornar ao mundo. Eu lembrava vagamente da física aprendida em meus tempos de colégio, e os meses recentes haviam me proporcionado experiência prática com içamentos e talhas. Preciso dizer, porém, que ao caminharmos até perto do Ghost para inspecionar mais de perto a situação a visão dos mastros principais deitados na água quase me desanimou. Por onde começar? Se pelo menos restasse um mastro em pé, algo elevado para prender talhas e moitões! Mas não havia nada. Lembrei daquela anedota sobre suspender a si mesmo pelos cadarços das botas. Eu entendia a mecânica das alavancas, mas onde encontraria um ponto de apoio?
Havia o mastro principal, com quarenta centímetros de diâmetro no que era agora o seu topo, ainda com vinte metros de comprimento e pesando, calculei por cima, quase uma tonelada e meia. Depois vinha o mastro de proa, maior em diâmetro e pesando com certeza mais de uma tonelada e meia. Por onde eu poderia começar? Maud ficou quieta ao meu lado enquanto eu desenvolvia mentalmente o mecanismo conhecido entre os marinheiros como “cabrilha”. Mas, apesar de conhecido entre os marinheiros, eu o inventei ali mesmo em Endeavour Island. Se eu cruzasse duas vergas, amarrasse as pontas e as elevasse no ar como um “V” invertido, obteria um ponto acima do convés para fixar minha talha de içar. A essa talha de içar eu poderia, se necessário, fixar uma segunda. E ainda por cima havia o cabrestante!
Maud percebeu que eu havia encontrado uma solução e seus olhos se enterneceram em solidariedade.
O que vai fazer? — perguntou.
Limpar aquela bagunça — respondi, apontando para os destroços emaranhados ao lado do barco.
Ah, a determinação e o próprio som das palavras soavam bem a meus ouvidos. “Limpar aquela bagunça!” Imagine uma frase tão pungente saindo da boca de Humphrey van Weyden alguns meses antes!
Devia haver um toque melodramático em minha postura e voz, pois Maud abriu um sorriso. Sua capacidade de valorizar o ridículo era aguda, e em tudo ela via e sentia, caso estivessem presentes, o toque de fingimento, a sombra em excesso, o tom exagerado. Era isso que havia conferido equilíbrio e penetração à sua obra, tornando-a valiosa para o mundo todo. O crítico sério, com senso de humor e capacidade de expressão, acaba inevitavelmente sendo ouvido pelo mundo. Ela tinha merecido essa atenção. Seu senso de humor era, na verdade, o instinto de proporção de uma artista.
Tenho certeza de que já li isso em algum livro — ela murmurou em tom de galhofa.
Eu também tinha um instinto de proporção e desmoronei de imediato, despencando da pose dominante de um mestre no assunto a um estado de confusão humilde que era, para dizer o mínimo, bastante desagradável.
Sua mão procurou a minha no mesmo instante.
Por favor, me desculpe — ela disse.
Não é necessário — engoli em seco. — Isso me faz bem. Em muitos sentidos, ainda sou um colegial. O que no fundo é irrelevante. O que precisamos fazer, literalmente, é limpar aquela bagunça. Se fizer a gentileza de me acompanhar até o barco, podemos iniciar o trabalho e começar a arrumar tudo.
— “Quando o marujo limpa a bagunça com a adaga entre os dentes” —94 ela citou olhando para mim, e passamos o resto da tarde gracejando.
A função dela era manter o bote no lugar enquanto eu cuidava daquele emaranhado. E que emaranhado: adriças, velas, patarrases, carregadeiras, brandais e estais, espalhados para tudo que é lado, enrolados e enroscados pelo mar. Cortei apenas o necessário e logo fiquei todo encharcado passando cordas compridas por baixo e ao redor dos mastros e paus de carga ou enrolando-as no bote e depois desfazendo os rolos para passar outro nó pelo seio do cabo.
Foi necessário cortar algumas velas, e a lona pesada de água desafiou minhas forças, mas antes do anoitecer consegui abri-las todas na areia para secar. Estávamos os dois muito cansados quando fomos jantar, mas tínhamos feito um belo trabalho, por mais que parecesse insignificante ao olhar.
Na manhã seguinte, com a competente assistência de Maud, desci ao porão do Ghost para preparar os encaixes dos mastros. Mal tínhamos começado a trabalhar quando o barulho das minhas pancadas e marteladas atraiu Wolf Larsen.
Ei, você aí embaixo! — ele gritou pela escotilha aberta.
O som de sua voz fez Maud se jogar para perto de mim em busca de proteção, e ela manteve a mão em meu braço no decorrer da conversa.
Ei, você no convés — respondi. — Bom dia.
O que está fazendo aí? — ele inquiriu. — Tentando afundar meu navio?
Muito pelo contrário. Estou tentando consertá-lo.
Mas que diabos você está consertando?
Havia perplexidade em sua voz.
Ora, estou preparando tudo para reinstalar os mastros — respondi casualmente, como se fosse o projeto mais simples de se imaginar.
Parece que você finalmente está andando com as próprias pernas, Hump — ouvimos ele dizer. Depois ele ficou algum tempo em silêncio. — Mas me ouça, Hump. Você não pode fazer isso.
Posso sim — retruquei. — É o que estou fazendo agora mesmo.
Mas esta é minha embarcação, minha propriedade particular. E se eu o proibir?
Você esquece de uma coisa — respondi. — Você já não é o fermento mais forte. Podia me devorar antes, como fazia questão de dizer, mas sua força diminuiu e agora eu posso devorá-lo. O levedo estragou.
Ele soltou uma risada curta e desagradável.
Percebo que está voltando a minha filosofia contra mim e tirando o máximo proveito dela. Mas não cometa o erro de me subestimar. Estou avisando para seu próprio bem.
Desde quando você se tornou um filantropo? — perguntei. — Muito coerente da sua parte, me avisar para o meu próprio bem.
Ele ignorou meu sarcasmo e disse:
E se eu trancasse a tampa agora? Você não vai me enganar de novo, como fez na despensa.
Wolf Larsen — eu disse com firmeza, me dirigindo a ele pela primeira vez por sua famosa alcunha —, sou incapaz de atirar num homem indefeso e que não oferece resistência. Você provou isso, para nossa mútua satisfação. Mas quem avisa agora sou eu, e não pelo seu bem, mas pelo meu próprio, que vou atirar no instante em que você cometer qualquer gesto hostil. Posso atirar em você agora mesmo, de onde estou, e se realmente faz questão, vá em frente e tente fechar a tampa.
De todo modo, eu o proíbo terminantemente de mexer no meu navio.
Homem, ouça! — adverti. — Você menciona que o navio é seu como se fosse um direito moral. Você nunca levou direitos morais em consideração ao tratar com outras pessoas. Espero que não sonhe que eu vá levá-los em consideração ao tratar com você.
Eu tinha me posicionado bem embaixo da escotilha aberta para vê-lo melhor. A ausência de expressão em seu rosto, tão diferente de quando eu o observei sem ser percebido, era exacerbada agora por olhos fixos e arregalados. Não era um rosto agradável de ver.
E ninguém é pobre demais, nem mesmo Hump, para prestar-lhe reverência — ele desdenhou.(95)
Sua voz era puro desdém. Seu rosto continuava sem exibir qualquer expressão.
Como vai, srta. Brewster? — ele falou de repente, após uma pausa.
Tive um sobressalto. Ela não tinha feito barulho algum, não tinha nem se mexido. Será que ainda lhe restava um átimo de visão? Ou será que sua visão estava retornando?
Como vai o senhor, capitão Larsen — ela respondeu. — Por favor, se importaria de dizer como sabe que estou aqui?
Escutei sua respiração, é claro. Mas, como eu dizia, Hump está melhorando bastante, não acha?
Não sei — ela respondeu, sorrindo para mim. — Nunca o vi diferente.
Devia ter visto como ele era antes, então.
Doses altas de Wolf Larsen — murmurei —, veja o antes e o depois.
Quero lhe dizer mais uma vez, Hump — ele afirmou em tom ameaçador —, que é melhor deixar as coisas como estão.
Mas você também não tem interesse em sair daqui? — perguntei, incrédulo.
Não — ele respondeu. — Pretendo morrer aqui.
Pois bem, nós não — encerrei em tom desafiador, e voltei a bater e a martelar.

(93) Paráfrase de observações feitas por Jules Michelet em suas obras L’Amour (1858) e La Femme (1859).
(94) Verso do poema “The Galley-Slave”, de Rudyard Kipling, publicado em 1890 em Departmental Ditties and Other Verses. No original: “When the topmen clear the raffle with their clasp-knives in their teeth.”
(95) London alude aqui a um discurso de Antônio em Júlio César (Ato 3, Cena 2), de Shakespeare: “But yesterday the word of Caesar might/ Have stood against the world. Now lies he there,/ And none so poor to do him reverence.”

Jack London, in O Lobo do Mar 

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