sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 32


Acordei oprimido por uma sensação misteriosa. Algo parecia fazer falta em meu redor. Mas o mistério e a opressão sumiram logo que percebi que era o vento. Eu havia adormecido naquele estado de tensão nervosa que acompanha os sobressaltos contínuos de som ou movimento e acordado ainda tenso, preparado para encontrar a pressão de algo que já não me afetava.
Como era a primeira noite em muitos meses que eu passava abrigado, cometi a extravagância de me demorar alguns minutos embaixo dos cobertores (que não estavam molhados com a neblina ou os espirros das ondas), analisando, primeiro, o efeito que a interrupção do vento exercia sobre mim, e em seguida o deleite que era estar deitado no colchão que Maud tinha feito com as próprias mãos. Depois de me vestir e abrir a porta, ouvi as ondas ainda batendo na praia em uma ladainha que atestava a fúria da noite anterior. O dia estava limpo e o sol brilhava. Eu havia dormido até tarde e agora experimentava uma súbita explosão de energia que me impelia a recuperar o tempo perdido, como cabia bem a um morador de Endeavour Island.
Botei os pés fora da cabana e estaquei. Eu acreditava piamente em meus olhos, mas o que eles me mostraram me atordoou. Bem ali na praia, a menos de vinte metros, com a proa virada para a frente, desmastreada, havia uma embarcação de casco negro. Os mastros e retrancas, enroscados em enxárcias, velas e lonas rasgadas, boiavam rente às laterais. Por pouco não esfreguei os olhos. Ali estava a cozinha que havíamos construído, o conhecido degrau do tombadilho, a cabine baixa que mal passava da altura da amurada. Era o Ghost.
Que aberração do destino o trouxera até aqui, justamente aqui? Qual a chance entre todas as chances? Vi o paredão sombrio e inacessível às minhas costas e mergulhei nas profundezas do desespero. Uma fuga seria impossível, estava fora de questão. Pensei em Maud, adormecida na cabana que tínhamos erguido juntos; lembrei-me do “Boa noite, Humphrey”; “minha mulher, minha parceira” soou em minha memória, mas era um sino fúnebre que tocava. E então tudo escureceu.
Pode ter durado uma fração de segundo, mas voltei a mim sem fazer a menor ideia de quanto tempo havia passado. Ali estava o Ghost com a proa apontada para a praia, o gurupés quebrado se projetando sobre a areia e as vergas emaranhadas roçando no costado ao sabor das ondas murmurantes. Algo precisava ser feito.
De repente comecei a estranhar o fato de que nada se movia a bordo. Todos os marujos deviam estar dormindo após uma noite inteira de esforços e estragos. Meu primeiro pensamento foi que talvez eu e Maud ainda tivéssemos alguma chance de escapar. E se pegássemos o bote e contornássemos o promontório antes de eles acordarem? Eu precisava chamá-la. Já tinha erguido a mão para bater em sua porta quando me lembrei das pequenas dimensões da ilha. Jamais conseguiríamos nos esconder nela. Não nos restava nada, a não ser o oceano vasto e hostil. Pensei em nossas cabaninhas aconchegantes e em nossos estoques de carne, óleo, líquen e madeira, e soube na hora que jamais sobreviveríamos ao mar do inverno e às grandes tempestades que vinham pela frente.
Então fiquei em frente à porta, hesitando em bater. Era impossível, impossível. A ideia desvairada de entrar e matá-la enquanto dormia atravessou minha mente. Mas de repente a melhor solução me veio num clarão. Todos os marinheiros estavam dormindo. Por que não me infiltrar a bordo do Ghost, seguir o caminho conhecido até a cama de Wolf Larsen e matá-lo enquanto dormia? Depois disso, bem… depois veríamos. Uma vez que ele estivesse morto, haveria tempo e espaço para planejar os próximos passos, e além disso a situação que viria depois, fosse qual fosse, não poderia ser pior que a atual.
Minha faca estava na cintura. Voltei à cabana para buscar a espingarda, me certifiquei de que estava carregada e caminhei até o Ghost. Com alguma dificuldade, entrando na água até a barriga, consegui subir a bordo. A escotilha do castelo de proa estava aberta. Fiquei imóvel para ouvir a respiração dos marujos, mas não havia respiração alguma. Quase me engasguei quando o pensamento me ocorreu: e se o Ghost estivesse abandonado? Escutei com mais atenção. Não havia ruído. Desci a escada com cautela. O lugar tinha aquele cheiro vazio e mofado de uma residência desabitada. Por toda parte havia uma camada grossa de vestimentas rasgadas e descartadas, velhas botinas, capas impermeáveis furadas, toda a bagagem do castelo de proa que fica inutilizada numa longa viagem.
Foi abandonado às pressas, concluí enquanto subia para o convés. A esperança ganhou vida em meu peito e olhei em volta com mais calma. Reparei que os botes não estavam mais lá. A baiuca contava a mesma história que o castelo de proa. Os caçadores haviam separado a bagagem com a mesma pressa. O Ghost estava abandonado. Pertencia a mim e a Maud. Lembrei dos depósitos do navio e da despensa que ficava embaixo da cabine e tive a ideia de surpreender Maud com um belo café da manhã.
A reação que sucedeu o medo, somada à consciência de que o ato terrível que eu viera cometer não era mais necessário, me deixou em um estado pueril e excitado. Subi a escada da escotilha da baiuca pulando degraus, trazendo na mente apenas a alegria e a esperança de que Maud continuasse dormindo até que a surpresa do café da manhã estivesse pronta. Ao me aproximar da cozinha, pensei nos maravilhosos utensílios que havia lá dentro e minha satisfação redobrou. Subi pelo acesso ao tombadilho com um salto — e me deparei com Wolf Larsen. O ímpeto de minha chegada e o espanto causado pela surpresa me fizeram tropeçar mais uns três ou quatro passos pelo convés antes de conseguir parar. Ele estava em pé na escada da escotilha, apenas com a cabeça e os ombros visíveis, me olhando bem de frente. Seus braços estavam apoiados na tampa parcialmente aberta. Não fez movimento algum. Ficou ali me encarando.
Comecei a tremer. Aquele velho enjoo no estômago me atacou. Apoiei uma das mãos na parede para me equilibrar. Meus lábios secaram de repente e eu os umedeci para poder falar quando chegasse a hora. Não tirei os olhos dele nem por um instante. Nenhum de nós falou. Havia algo de agourento em seu silêncio, em sua imobilidade. Todo o medo antigo que eu tinha dele retornou e foi multiplicado por cem. E ainda assim continuamos ali parados, encarando um ao outro.
Alguém precisava agir e eu esperava, dominado por minha velha impotência, que ele tomasse a iniciativa. Passados alguns momentos, me dei conta de que havia uma analogia entre a presente situação e minha aproximação da foca de juba longa, quando minha intenção de acertá-la com o porrete foi obscurecida pelo medo e acabou se transformando no desejo de afugentá-la. Finalmente, entendi que eu não estava ali para deixar Wolf Larsen tomar a iniciativa, e sim para tomá-la.
Armei o gatilho dos dois canos e apontei a espingarda. Eu atiraria caso ele se movesse ou tentasse descer pela escada da escotilha. Mas ele continuou parado, me olhando. Enquanto o encarava, com a espingarda apontada tremendo em minhas mãos, tive tempo de notar que seu rosto apresentava uma aparência exausta e combalida. Um rosto arruinado por uma enorme ansiedade. As faces estavam encovadas e sua fronte exibia uma expressão enrugada e cansada. E tive a impressão de que havia algo estranho em seus olhos, não apenas na expressão, mas no aspecto físico, como se os nervos ópticos e a musculatura de sustentação tivessem sofrido algum desgaste e desviado levemente os globos oculares.
Vi tudo isso com um cérebro que já funcionava rápido e pensei uma profusão de coisas, mas ainda assim não fui capaz de puxar o gatilho. Baixei a espingarda e dei um passo para o canto da cabine, principalmente para aliviar a tensão dos nervos e começar de novo, mas também para ficar mais perto dele. Levantei a espingarda de novo. Ele estava quase ao alcance das mãos. Não havia qualquer esperança para ele. Eu tinha tomado uma decisão. Seria impossível errar, por pior que fosse a minha mira. Mesmo assim, entrei em conflito comigo mesmo e não consegui puxar o gatilho.
E então? — ele disse com impaciência.
Lutei em vão para contrair meus dedos nos gatilhos e lutei em vão para dizer alguma coisa.
Por que não atira? — ele perguntou.
Limpei a garganta de algo que me obstruía a fala.
Hump — ele disse em voz baixa —, você não consegue. Não está exatamente com medo. Está impotente. Sua moralidade convencional é mais forte que você. Você é um escravo das opiniões que merecem credibilidade entre as pessoas que conheceu ou sobre as quais leu. Esse código foi inculcado em sua cabeça desde que você balbuciou as primeiras sílabas, e, apesar de sua filosofia e de tudo que eu lhe ensinei, esse código impedirá que você atire num homem desarmado que não oferece resistência.
Eu sei — respondi com a voz rouca.
E você sabe que eu mataria um homem desarmado com a mesma naturalidade com que fumo um charuto — ele continuou. — Você sabe como eu sou, sabe qual é o meu valor no mundo pelos seus padrões. Você me chamou de cobra, tigre, tubarão, monstro e Calibã. E ainda assim, seu bonequinho de pano, sua maquininha de ecos, você é incapaz de me matar, como faria com uma cobra ou um tubarão, porque eu tenho mãos, pés e um corpo mais ou menos com o mesmo formato do seu. Pff! Eu esperava coisa melhor de você, Hump.
Ele saiu da entrada da escotilha e veio em minha direção.
Baixe essa espingarda. Quero lhe fazer algumas perguntas. Ainda não tive oportunidade de examinar os arredores. Que lugar é esse? Em que situação se encontra o Ghost? Como você se molhou? Onde está Maud? Perdão, a srta. Brewster. Ou talvez eu devesse dizer sra. Van Weyden?
Eu tinha recuado, estava quase chorando diante de minha incapacidade de atirar, mas não era tolo o bastante para baixar a espingarda. Torcia desesperadamente para que ele realizasse algum gesto hostil, uma tentativa de bater em mim ou me sufocar, pois sabia que somente assim conseguiria atirar nele.
Estamos em Endeavour Island — falei.
Nunca ouvi falar — ele interrompeu.
Ou pelo menos é assim que a chamamos — emendei.
Quem a chama assim?
Eu e a srta. Brewster. E o Ghost, como pode ver, está encalhado com a proa apontando para a praia.
Há focas aqui — ele disse. — Os berros me despertaram, do contrário eu ainda estaria dormindo. Eu as ouvi quando me aproximei ontem à noite. Foram o primeiro sinal de que me encontrava numa praia a sotavento. É uma colônia, o tipo de coisa que procuro há anos. Graças a meu irmão Death, topei com uma fortuna. É uma mina de ouro. Qual a posição da ilha?
Não faço a menor ideia — falei. — Mas você deve saber com precisão. Quais foram suas últimas observações?
Ele deu um sorriso inescrutável, mas não respondeu.
Bem, e onde estão os marinheiros? — perguntei. — Como foi que acabou sozinho?
Eu estava pronto para que ele ignorasse outra vez minha pergunta, e me surpreendi com a prontidão da resposta.
Meu irmão me apanhou em quarenta e oito horas, não por descuido meu. Me abordou à noite, quando somente a vigia estava no convés. Os caçadores se voltaram contra mim. Ele ofereceu a eles uma parte maior nos lucros. Ouvi quando ele fez a oferta. Foi bem na minha frente. É claro que a tripulação me deu as costas. Era de se esperar. Todos os marinheiros trocaram de lado e eu fiquei lá, abandonado em minha própria embarcação. Era a vez de Death, e é assim mesmo, é de família.
Mas como perdeu os mastros?
Chegue mais perto e examine os rizes — ele disse, apontando para o local em que deveria estar o cordame do mastro de ré.
Foram cortados a faca! — exclamei.
Não foi bem isso — ele riu. — Foi um trabalho mais caprichado. Olhe de novo.
Olhei. Os rizes haviam sido cortados quase até o fim, deixando restar apenas o suficiente para segurar os brandais até que fossem submetidos a uma tensão extrema.
Foi o Mestre-Cuca — ele riu de novo. — Tenho certeza, embora não o tenha flagrado. Ficamos empatados, de certa forma.
Bom para Mugridge! — exclamei.
Sim, foi o que pensei quando veio tudo abaixo. Mas me expressei de um ponto de vista diferente.
Mas o que você estava fazendo enquanto tudo isso acontecia? — perguntei.
O melhor que podia, tenha certeza, o que nas circunstâncias não era muita coisa.
Me virei para examinar de novo a obra de Mugridge.
Acho que vou me sentar um pouco ao sol — ouvi Wolf Larsen dizer.
Havia um indício, somente um indício, de debilidade física em sua voz, e aquilo foi tão estranho que olhei para ele na mesma hora. Ele estava passando a mão no rosto nervosamente, como se limpasse teias de aranha. Fiquei intrigado. Aquilo não correspondia ao Wolf Larsen que eu conhecia.
Como estão as dores de cabeça? — perguntei.
Ainda me incomodam — ele respondeu. — Acho que uma delas está começando agora.
Ele foi escorregando aos poucos até se deitar no convés. Depois virou de lado e apoiou a cabeça no bíceps do braço que estava por baixo, usando ao mesmo tempo o antebraço para proteger os olhos do sol. Fiquei em pé ao lado dele, tentando entender.
Esta é a sua chance, Hump — ele disse.
Não entendi — menti, pois havia entendido perfeitamente.
Ah, nada — ele acrescentou em voz baixa, como se estivesse caindo no sono —, só quis dizer que estou bem onde você queria.
Não está — redargui —, pois quero vê-lo a milhares de quilômetros daqui.
Ele soltou uma risadinha e não disse mais nada. Não moveu um dedo quando passei perto dele para entrar na cabine. Levantei o alçapão, mas permaneci alguns instantes indeciso, mirando a escuridão da despensa abaixo. Hesitei em descer. E se ele tivesse deitado apenas para me ludibriar? Que beleza, ser capturado ali dentro como um rato. Subi a escada da escotilha na ponta dos pés e espiei. Ele estava deitado no mesmo lugar. Desci novamente, mas antes de descer à despensa tomei a precaução de levar a tampa comigo. Pelo menos não haveria tampa na armadilha. Mas foi desnecessário. Voltei para a cabine trazendo um suprimento de geleias, biscoitos, carnes enlatadas e coisas do tipo, tudo que podia carregar, e fechei de novo o alçapão.
Outra espiadinha revelou que Wolf Larsen não havia se movido. Uma ideia luminosa me ocorreu. Me infiltrei em seu camarote e me apossei de seus revólveres. Depois de vasculhar os três camarotes restantes, averiguei que não havia outras armas de fogo. Para ter certeza, voltei e inspecionei a baiuca e o castelo de proa, depois fui à cozinha e recolhi todas as facas afiadas de cortar carne e vegetais. Então me lembrei da grande faca de velejador que ele sempre levava consigo. Cheguei perto e me dirigi a ele primeiro em voz baixa, depois alta. Ele não se moveu. Me debrucei e retirei a faca de seu bolso. Consegui respirar mais à vontade. Agora ele já não tinha armas para me atacar à distância, e eu, que estava armado, poderia me antecipar caso ele tentasse me agarrar com seus braços terríveis de gorila.
Depois de encher um bule de café e uma frigideira com parte do meu butim e pegar algumas porcelanas na copa da cabine, deixei Wolf Larsen deitado no sol e voltei à praia.
Maud continuava dormindo. Soprei as brasas (ainda não tínhamos montado uma cozinha para o inverno) e me dediquei avidamente a preparar o café da manhã. Estava quase terminando quando escutei Maud se movimentando dentro da cabana, fazendo a toalete. Bem no momento em que tudo ficou pronto e terminei de servir o café, ela abriu a porta e veio.
Não é justo — ela foi logo dizendo. — Você está usurpando uma de minhas prerrogativas. Combinamos que eu me encarregaria dos assuntos culinários e…
Só essa vez, por favor — pedi.
Se prometer não fazer de novo… — ela sorriu. — A não ser, é claro, que já esteja farto da minha péssima comida.
Para minha alegria, ela não olhou uma única vez em direção à praia. Consegui manter a brincadeira com tanto sucesso que ela não reparou que estava bebendo café numa xícara de porcelana, comendo batatas desidratadas e espalhando geleia no biscoito. Mas isso não podia durar muito. Vi a surpresa aparecer. Ela percebeu que estava comendo num prato de porcelana. A partir daí, começou a reparar em cada detalhe do café da manhã. Olhou para mim, e depois seu rosto virou lentamente em direção à praia.
Humphrey! — ela disse.
Aquele velho terror inominável assomou em seu olhos.
Ele…? — ela estremeceu.
Fiz que sim com a cabeça.

Jack London, in O Lobo do Mar

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