Ao
assistir ao novo filme de Arnaldo Jabor, A suprema felicidade,
fiquei desesperada porque não tinha uma caneta e um bloquinho. Eu
nunca ando sem uma caneta e um bloquinho. Mas assisti ao filme na
abertura do Festival de Cinema do Rio, vestida para festa e com uma
daquelas bolsas ridículas onde mal cabem o batom e o dinheiro do
táxi. Um problema quando ouvimos uma frase realmente ótima e tudo o
que encontramos para retê-la é um bastão com algum nome bizarro
como “beijo fatal”. Tive de apelar para a minha péssima memória
porque há no filme algumas frases imperdíveis. Daquele tipo
essencial, tão boas que parecem simples e até óbvias e você quer
morrer por nunca tê-las escrito. Essas frases unem as memórias do
cineasta, que vão emergindo no filme do mesmo modo que as lembramos
na vida — sem linearidade e só aparentemente descosturadas. Fiquei
repetindo-as durante toda a sessão para mim mesma. Consegui que
sobrevivessem razoavelmente ilesas. E a primeira delas é a do título
desta coluna: “Nada é só bom”.
Virou
meu mantra desde então. Vejo tanta gente sofrendo por aí, achando
que sua vida está aquém do que deveria ser, porque tudo deveria ser
só bom. Não sei quando nos enfiaram garganta abaixo essa ideia
absurda de um estado de felicidade absoluta. Uma espécie de nirvana
a ser alcançado em que nada mais nos perturbaria e que seríamos
felizes para sempre. Na verdade, só há um jeito de isso acontecer:
podemos ser felizes e mortos. Porque esse estado imperturbável,
imune à vida, só se alcança na morte.
Acho
que a grande causa atual de infelicidade é a exigência da
felicidade. É o deslocamento do lugar da felicidade para o centro da
vida, como um fim a ser alcançado e a medida de uma existência que
valha a pena. Se nos lembrarmos bem dos contos de fadas, o “e foram
felizes para sempre” era exatamente o fim da história. Era quando
o conto morria num ponto final porque não havia mais nada relevante
para ser contado. Tudo o que interessava, o que nos hipnotizava e nos
mantinha pedindo a nossos pais ou à professora ou a nós mesmos “de
novo, conta de novo”, era o que vinha antes. O desejo, as
turbulências, os avanços e recuos, os tropeços e os
arrependimentos, os erros, o frio na barriga, a busca. Tudo aquilo
que é a matéria da vida de todos. O que realmente importa.
Acho
impressionante a quantidade de adultos pedindo um final feliz para as
suas vidas, para as suas histórias de amor, para o sucesso
profissional. Não há nenhum mistério no final. Independentemente
do que cada um acredita, o fato é que no final a vida como cada um a
conhece acaba. Para viver, o que nos interessa não são os pontos
finais, mas as vírgulas. Os acontecimentos do meio, o enredo entre o
primeiro parágrafo e o último.
Escrevo
pequenas histórias de ficção num site de crônicas e alguns
leitores se manifestam, por comentários ou por e-mail, reclamando do
desfecho. Eles me ensinam sobre essa exigência da felicidade por
toda parte. Pedem, com todas as letras, “um final feliz”.
Sentem-se traídos porque não dou isso a eles. Mas voltam na semana
seguinte para se perturbarem com o desfecho do novo conto e reclamar
mais uma vez. São adultos pedindo histórias da carochinha. E
consumidores bem treinados para achar que tudo é produto de consumo.
Acham
que ofereço a eles cachorro-quente. Por favor, um pouco mais de
mostarda, duas salsichas, menos pimenta no molho. É muito
interessante. Mas, de algum modo, algo nos meus “finais infelizes”
os engata. Porque, em vez de me deixar para lá e ler algo mais
“feliz”, voltam por alguma razão. Talvez para descobrir se me
rendi à tal da felicidade.
A
ideia de felicidade como um fim em si mesma encobre e desbota tanto a
delicadeza quanto a grandeza do que vivemos hoje, faz com que olhemos
para nossas pequenas conquistas, nossos amores nem sempre tão
grandiloquentes, nosso trabalho às vezes chato, como se fosse pouco.
Apenas porque nem a conquista nem o amor nem o trabalho é só bom. E
há uma crença coletiva e alimentada pelo mundo do consumo afirmando
que tudo deveria ser só bom. E se não é só bom é porque
fracassamos.
Deixamos
então de enxergar a beleza do nosso amor imperfeito, da nossa famíli
imperfeita, do nosso trabalho imperfeito, do nosso corpo imperfeito,
dos nossos dentes imperfeitos e até das nossas taxas de colesterol
imperfeitas. Dos nossos dias imperfeitos. Escolher como olhamos para
nossa vida é um ato profundo de liberdade que temos descartado em
troca de propaganda enganosa.
Tanta
gente se esquece de viver o cotidiano, em troca dessa mercadoria
ordinária chamada de felicidade. Que, como toda mercadoria, tem
essência de fumaça. Se tivesse de escolher entre essa felicidade de
plástico que vendem por aí e a infelicidade, preferiria ser
infeliz. Pelo menos, a infelicidade me faz buscar. E a felicidade
absoluta é mortífera, ela mata o tempo presente.
Não
tenho nenhum interesse por essa pergunta corriqueira: “Você é
feliz?”. Acho uma questão irrelevante. O que me interessa
perguntar a mim mesma — e pergunto a todos a quem entrevisto é:
“Você deseja?”.
Desejar
é o contato permanente com o buraco, com a impossibilidade de ser
completo. Desejar é o que une o homem à sua vida. Une pela falta.
Tem mais a ver com um estado permanente de insatisfação. Não a
insatisfação que paralisa, aquela causada pela impossibilidade da
felicidade absoluta; mas a insatisfação que nos coloca em
movimento, carregando tudo o que somos numa busca permanente de
sentido. Desejar é estar sempre no caminho, conscientes de que o fim
não importa. O fim já está dado, todo o resto é possibilidade.
No
filme de Arnaldo Jabor, as melhores frases são de Noel, avô do
personagem principal, vivido pelo enorme Marco Nanini. Numa ocasião,
ele diz ao neto: “Ninguém é feliz. Com sorte, a gente é alegre”.
E completa: “A vida gosta de quem gosta dela”. Achei de uma
simplicidade brilhante. É isso afinal. É claro que há uns poucos
momentos de felicidade, mas, como diz Noel em seguida, eles duram no
máximo uns dez minutos e se vão para sempre.
Em
vez de ficar perdendo tempo com finais felizes ou se perguntando
sobre a felicidade ou invejando a suposta felicidade do vizinho ou se
sentindo mal porque não é um personagem de comercial de margarina,
vale mais a pena tratar de viver. Tratar de gostar da vida para que
ela goste de você.
Nada
me dá mais medo do que gente que vive como se habitasse um comercial
de margarina. Se aceitarem um conselho: corram dessas vidas de
photoshop. Elas não existem. Gente de verdade vive do jeito possível
— e tenta lembrar que o possível não é pouco. Isso não
significa se acomodar, pelo contrário. Mas abrir os olhos para a
novidade do mundo, na soma subtraída de nossos dias. Desejar a vida
que nos deseja.
É
como em outra frase, esta dita por um comprador ambulante de coisas
velhas, num momento crucial do filme. Um delirante Noel, assustado
com a proximidade da morte e disposto a retomar a alegria, sacode na
rua o personagem de Emiliano Queiroz, gritando: “Hoje é sábado,
hoje é sábado”. E o comprador de coisas que já perderam o
sentido diz a frase antológica, digna de um frasista como Nelson
Rodrigues: “O sábado é uma ilusão”.
Sim,
o sábado é uma ilusão. Então, lembre de viver também de segunda
a sexta.
27
de setembro de 2010
Ruth Manus, in A Menina Quebrada
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