terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Leitura de imagens


Numa tarde de verão de 1978, um pacote volumoso chegou no escritório do editor Franco Maria Ricci, em Milão, onde eu estava trabalhando como editor de línguas estrangeiras.
Ao abri-lo, vimos que continha, em vez de um manuscrito, uma grande coleção de páginas ilustradas representando vários objetos estranhos e operações detalhadas, porém bizarras, todas com legendas numa escrita que ninguém conhecia. A carta anexa explicava que o autor, Luigi Serafini, tinha criado uma enciclopédia de um mundo imaginário, no estilo de um compêndio científico medieval: cada página representava precisamente um verbete específico, e as anotações, num alfabeto absurdo que Serafini também inventara durante dois longos anos em um pequeno apartamento de Roma, destinavam-se a explicar as complexidades das ilustrações. Diga-se a favor de Ricci que publicou a obra em dois volumes luxuosos, com uma deliciosa introdução de Italo Calvino; eles constituem um dos exemplos mais curiosos de livro ilustrado que conheço. Feito inteiramente de figuras e palavras inventadas, o Codex Seraphinianus deve ser lido sem a ajuda de uma língua comum, mediante signos para os quais não há significados, exceto aqueles fornecidos por um leitor bem-disposto e inventivo.
Trata-se, evidentemente, de uma corajosa exceção. Na maior parte do tempo, uma sequencia de signos segue um código estabelecido, e somente minha ignorância desse código torna-me impossível lê-la. Ainda assim, eu percorro uma exposição, no museu Rietberg de Zurique, de miniaturas indianas que representam cenas mitológicas de histórias que não me são familiares e tento reconstruir suas sagas; sento-me diante das pinturas pré-históricas nas rochas do platô de Tessali, no Saara argelino, e tento imaginar que ameaça persegue aquelas criaturas semelhantes a girafas em fuga; folheio uma revista em quadrinhos japonesa no aeroporto de Narita e invento uma narrativa para as personagens que falam numa escrita que nunca aprendi. Tentar ler um livro numa língua que não conheço  grego, russo, sânscrito  evidentemente não me revela nada. Mas, se o livro é ilustrado, mesmo não conseguindo ler as legendas posso em geral atribuir um sentido, embora não necessariamente o explicado no texto. Serafini contava com a capacidade criativa de seus leitores.
Serafini teve um precursor relutante. Nos últimos anos do século IV, são Nilo de Ancira (hoje Ancara, capital da Turquia) fundou um mosteiro perto de sua cidade natal. Sobre ele sabemos quase nada: que é festejado a 12 de novembro, que morreu por volta do ano de 430, que foi autor de vários tratados sentenciosos e ascéticos destinados aos seus monges e de mais de mil cartas aos superiores, amigos e a sua congregação, e que, em seus tempos de juventude, estudou com o famoso são João Crisóstomo em Constantinopla. Durante séculos, até que detetives eruditos reduzissem a vida do santo a esses ossos nus, são Nilo foi o herói de uma história incomum e prodigiosa. Segundo a Septem narrationes de caede monarchorum et de Theodulo filio, uma compilação do século vi outrora lida como crônica hagiográfica e agora arquivada entre romances e contos de aventura, Nilo nasceu em Constantinopla, numa família nobre, e foi nomeado oficial e prefeito junto à corte de Teodósio, o Grande. Casou-se e teve dois filhos, mas, tomado por anseios espirituais, abandonou esposa e filha e, em 390 ou 404 (as narrativas variam em sua precisão imaginativa), entrou para a congregação ascética do monte Sinai, onde ele e seu filho Teódulo levaram uma vida reclusa e devota. De acordo com as Narrationes, a virtude de são Nilo e de seu filho era tamanha que “provocou o ódio dos demônios e a inveja dos anjos”. Em consequência desse desgosto demoníaco e angelical, em 410 uma horda de bandidos sarracenos atacou a ermida, massacrou vários monges e levou outros como escravos, entre eles o jovem Teódulo. Por graça divina, Nilo escapou da espada e dos grilhões e partiu em busca do filho. Encontrou-o numa cidade em algum lugar entre a Palestina e a Arábia Pétrea, onde o bispo local, emocionado pela devoção do santo, ordenou a ambos, pai e filho. São Nilo retornou ao monte Sinai, onde morreu numa aprazível velhice, embalado por anjos envergonhados e demônios arrependidos.
Não sabemos como era o mosteiro de são Nilo nem onde se localizava exatamente, mas em uma de suas muitas cartas, ele descreve certos traços ideais da decoração eclesiástica que, podemos supor, foram usadas em sua própria capela. O bispo Olimpidoro consultara-o sobre a construção de uma igreja que desejava decorar com imagens de santos, cenas de caça, pássaros e animais. São Nilo aprovava a representação de santos, mas condenava as cenas de caçada e de animais como “frívolas e indignas de uma alma cristã viril”, sugerindo, em vez disso, cenas do Velho e do Novo Testamento, “pintadas pela mão de um artista bem-dotado”. Tais cenas, argumentava, dispostas em ambos os lados da Santa Cruz, serviriam “como livros para os iletrados, ensinando-lhes a história bíblica e incutindo neles a crônica da misericórdia de Deus”.
São Nilo imaginava os crentes analfabetos aproximando-se dessas cenas em sua igreja funcional e lendo-as como se fossem as palavras de um livro. Imaginava-os olhando a decoração não mais constituída de “adornos frívolos”; imaginava-os identificando as imagens preciosas, ligando-as mentalmente umas às outras, inventando histórias para elas ou associando as imagens familiares associações com os sermões que tinham ouvido, ou então se não fossem totalmente “iletrados”, com exegeses das Escrituras. Dois séculos depois, o papa Gregório, o Grande, faria eco às ideias de Nilo: “Uma coisa é adorar imagens, outra é aprender em profundidade, por meio de imagens, uma história venerável. Pois o que a escrita toma presente para o leitor, as imagens tomam presente para o analfabeto, para aqueles que só percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes veem a história que têm de seguir, e aqueles que não sabem as letras descobrem que podem, de certo modo, ler. Portanto, especialmente para a gente comum, as imagens são equivalentes à leitura”. Em 1025, o sínodo de Arras declarou que “aquilo que a gente simples não podia apreender lendo as escrituras poderia ser aprendido por meio da contemplação de imagens”.
Embora o segundo mandamento dado por Deus a Moisés proíba especificamente a feitura de imagens gravadas, bem como de toda “figura do que está em cima nos céus, ou embaixo sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra”, artistas judeus decoravam locais e objetos religiosos já na época do templo de Salomão, em Jerusalém. Em certas épocas, porém, a proibição prevalecia e os artistas judeus recorriam a meios-termos inventivos, tais como dar às figuras humanas proibidas rostos de pássaros para não representar a face humana. A controvérsia foi ressuscitada na Bizâncio cristã dos séculos VIII e IX, quando o imperador Leão III e, depois, os imperadores iconoclastas Constantino v e Teófilo proibiram a representação de imagens em todo o império.
Para os antigos romanos, o símbolo de um deus (a águia para Júpiter, por exemplo) era um substituto do próprio deus. Nos raros casos em que Júpiter é representado junto com sua águia, ela não é uma repetição da presença do deus, mas torna-se seu atributo, tal como o raio. Para os cristãos primitivos, os símbolos tinham essa dupla qualidade, não representando apenas os temas (a ovelha como Cristo, a pomba como o Espírito Santo), mas também aspectos específicos do tema (a ovelha como o Cristo sacrificado, a pomba como a promessa de libertação do Espírito Santo). Não se destinavam a ser lidos como sinônimos dos conceitos ou meras duplicatas das divindades. Em vez disso, expandiam Graficamente certas qualidades da imagem central, comentavam-nas, sublinhavam-nas, tornavam-nas temas por si mesmos.
Com o tempo, os símbolos básicos da cristandade primitiva parecem ter perdido algumas de suas funções simbólicas e se tornado pouco mais que ideogramas: a coroa de espinhos representando a Paixão de Cristo, a pomba, o Espírito Santo. Essas imagens elementares foram gradualmente complementadas por outras mais vastas e complexas, de tal forma que episódios inteiros da Bíblia se tornaram símbolos de vários aspectos de Cristo, do Espírito Santo, da vida da Virgem, bem como ilustrações de certas leituras de outros episódios sagrados. Talvez fosse essa riqueza de significados que são Nilo tivesse em mente quando sugeriu contrapor o Novo e o Velho Testamento, representando-os de ambos os lados da Santa Cruz.
O fato de que imagens dos dois Testamentos poderiam complementar-se e dar continuidade à narrativa uma das outras, ensinando “aos iletrados” a palavra de Deus, já havia sido sugerido pelos próprios evangelistas. Em seu evangelho, Mateus ligou explicitamente o Velho ao Novo Testamento pelo menos oito vezes: “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta”. E o próprio Cristo disse que “era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos salmos”. Há 275 citações literais do Velho Testamento no Novo, mais 235 referências específicas. Esse conceito de uma continuidade espiritual não era novidade nem mesmo naquela época: um contemporâneo de Cristo, o filósofo judeu Filo de Alexandria, desenvolvera a ideia de uma mente que permeava tudo e manifestava-se ao longo das eras. Esse espírito simples e onisciente está presente nas palavras de Cristo, que o descreveu como um vento que “sopra para onde quer” e liga o presente ao futuro.
Orígenes, Tertuliano, são Gregório de Níssa e santo Ambrósio, todos escreveram criativamente sobre as imagens comuns a ambos os testamentos e elaboraram explicações complexas e poéticas nas quais nenhum elemento da Bíblia passou despercebido ou permaneceu inexplicado. Em um dístico muito citado. escreveu santo Agostinho: “O Novo Testamento está escondido no Velho, enquanto o Velho se revela no Novo”. E Eusébio de Cesaréia, que morreu em 340, proclamava que “cada profeta, cada escritor antigo, cada revolução do estado, cada lei, cada cerimônia do Velho Testamento aponta somente para Cristo, anuncia somente Ele, representa somente Ele.[...] Ele estava no Pai Adão, progenitor dos santos; Ele era inocente e virginal como um mártir em Abel, um renovador da palavra em Noé. abençoado em Abraão, o alto sacerdote em Melquisedeque, um sacrifício voluntário em lsaac, chefe dos eleitos em Jacó, vendido por Seus irmãos em José, poderoso no trabalho no Egito, um doador de leis em Moisés, sofredor e abandonado em Jó, odiado e perseguido na maioria dos profetas”.
Na época da recomendação de são Nilo, a iconografia da Igreja cristã já estava desenvolvendo imagens convencionais da ubiquidade do Espírito. Um dos primeiros exemplos pode ser visto numa porta de duas almofadas esculpida em Roma no século IV e instalada na igreja de Santa Sabina. Nas almofadas encontram-se cenas correspondentes do Velho e do Novo Testamento que podem ser lidas simultaneamente.
O trabalho é um tanto rústico e os detalhes foram apagados pelos dedos de gerações de peregrinos, mas as cenas podem ser facilmente identificadas. De um lado estão três dos milagres atribuídos a Moisés: o adoçamento das águas do Mara, a provisão de maná durante a fuga do Egito (representada em duas seções) e a retirada de água de um rochedo. No outro, estão três dos milagres de Cristo: a restauração da visão de um cego, a multiplicação dos pães e dos peixes e a transformação da água em vinho para o casamento em Canã.
O que teria lido um cristão, olhando as portas de Santa Sabina, na metade do século V? A árvore com que Moisés adoçou as águas amargas do Mara seria reconhecida como a Cruz, símbolo do próprio Cristo. A fonte, tal como Cristo, era uma fonte de água viva dando vida ao rebanho cristão. O rochedo do deserto em que Moisés foi bater também seria lido como uma imagem de Cristo, o Salvador, de cujo flanco escorrem o sangue e a água. O maná prenuncia o alimento de Canã e da Última Ceia. Um incréu, no entanto, não instruído na fé cristã, leria as imagens na porta de Santa Sabina de forma semelhante à que Serafini pretendia que seus leitores entendessem sua enciclopédia fantástica: criando, a partir dos elementos representados, uma história e um vocabulário próprios.
Evidentemente, não era isso que são Nilo tinha em mente. Em 787, o Sétimo Concílio da Igreja, em Nicéia, deixou claro que a congregação não tinha liberdade para interpretar as figuras mostradas na igreja, nem o pintor estava livre para dar ao seu trabalho qualquer significado ou solução particular: “A execução de pinturas não é uma invenção do pintor, mas uma proclamação reconhecida das leis e da tradição de toda a Igreja. Os padres antigos fizeram com que fossem executadas nas paredes das igrejas; é o pensamento e a tradição deles que vemos, não os do pintor. Ao pintor cabe a arte, mas a disposição pertence aos Pais da Igreja”.
No século XIII, quando a arte gótica começou a florescer e a pintura nas paredes da igreja foi abandonada em favor de janelas pictóricas e colunas esculpidas, a iconografia bíblica transferiu-se do estuque para vitrais, madeira e pedra. As lições das Escrituras passaram a brilhar e a surgir em formas arredondadas, narrando ao devoto histórias nas quais o Velho e o Novo Testamento espelhavam-se sutilmente.
Então, em algum momento do começo do século XIV, as imagens que são Nilo pretendia que os fiéis lessem nas paredes foram reduzidas e reunidas em forma de livro. Nas regiões do baixo Reno, vários iluminadores e gravadores começaram a representar as imagens em pergaminho e papel. Os livros que criaram eram feitos quase exclusivamente de cenas justapostas, com poucas palavras, às vezes como legendas nas margens da página, às vezes saindo da boca das personagens em cártulas semelhantes a bandeiras, como os balões das histórias em quadrinhos de hoje.
No final do século XIV, esses livros de imagens já tinham se tornado muito populares e assim continuariam pelo restante da Idade Média, em vários formatos: volumes de desenhos de página inteira miniaturas meticulosas, gravuras em madeira e, finalmente, no século XV, tomos impressos. O primeiro desses volumes que possuímos data de 1462.
Com o tempo, esses livros extraordinários ficaram conhecidos como Bibliae pauperum, ou Bíblias dos pobres.
Em essência, essas “bíblias” eram grandes livros de figuras nos quais cada página estava dividida para receber duas ou mais cenas. Por exemplo, na assim chamada Biblia pauperum de Heidelberg, do século XV, as páginas estão divididas em duas metades, a de cima e a de baixo. A metade inferior de uma das primeiras páginas representa a Anunciação e seria mostrada ao fiel naquela data litúrgica. Em torno dessa cena estão os quatro profetas do Velho Testamento que previram a vinda de Cristo: Davi, Jeremias, Isaías e Ezequiel. Acima deles, na metade superior, estão duas cenas do Velho Testamento: Deus amaldiçoando a cobra no jardim do Éden, com Adão e Eva em um canto, em posição de recato (Gênesis, 3), e o anjo chamando Gedeão à ação, enquanto este põe o cabrito no chão para saber se Deus salvará Israel (Juízes, 6).
Presa a um atril, aberta na página apropriada, a Biblia pauperum expunha suas imagens duplas aos fiéis dia após dia, mês após mês, em sequência. Muitos não seriam capazes de ler as palavras em letras góticas em torno das personagens representadas; poucos apreenderiam os vários sentidos de cada imagem em seu significado histórico, moral e alegórico. Mas a maioria das pessoas reconheceria grande parte das personagens e cenas e seria capaz de “ler” naquelas imagens uma relação entre as histórias do Velho e do Novo Testamento, graças à simples justaposição delas na página. Pregadores e padres certamente glosariam essas imagens e recontariam os eventos retratados, ligando-os de uma forma edificante, enfeitando a narrativa sagrada. E os próprios textos sacros seriam lidos, dia após dia, o ano inteiro, de tal forma que, no curso de suas vidas, as pessoas teriam provavelmente ouvido boa parte a Bíblia várias vezes. Já se sugeriu que o principal objetivo da Biblia pauperum não era oferecer leitura para o rebanho iletrado, mas dar aos padres uma espécie de ponto ou guia temático, uma referência básica para os sermões ou preces, ajudando-os a demonstrar a unidade da Bíblia. Se isso é verdade (não há documentos que confirmem tal propósito), então, a exemplo da maioria dos livros, ela servia a uma variedade de usos e usuários.
É quase certo que Biblia pauperum não era o nome pelo qual esses livros ficaram conhecidos por seus primeiros leitores. A impropriedade da denominação foi percebida no século XVIII pelo escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing, um leitor devotado para quem “os livros explicam a vida”. Em 1770, pobre e doente, Lessing aceitou o posto mal pago de bibliotecário do duque de Braunschweig, em Wolfenbüttel. Ali passou oito anos miseráveis, escreveu sua peça mais famosa, Emilia Galotti, e numa série de ensaios críticos discutiu a relação entre as diferentes formas de representação artística. Um dos livros da biblioteca do duque era uma Bíblia pauperum. Lessing descobriu, rabiscada numa das margens por uma mão tardia, a inscrição Hic incipitur bibelia [sic] pauperum.
Deduziu que o livro, a fim de ser catalogado, precisara de uma espécie de nome e que um bibliotecário antigo – inferindo, a partir da quantidade de ilustrações e da escassez de texto que ele se destinava aos analfabetos, isto é, aos pobres – dera-lhe um título que as gerações futuras tomaram por autêntico. Porém, como observou Lessing, vários exemplares dessas bíblias eram ornamentados e caros demais para se destinar aos pobres. Talvez o importante não fosse a propriedade – o que pertencia à Igreja podia ser considerado de todos –, mas o acesso; com suas páginas abertas a todos nos dias apropriados, a fortuitamente chamada Biblia pauperum escapou do confinamento entre os letrados e tornou-se popular entre os fiéis famintos por histórias.
Lessing também chamou a atenção para as semelhanças entre a iconografia paralela do livro e a dos vitrais das janelas do mosteiro de Hirschau. Sugeriu que as ilustrações do livro eram cópias dos vitrais e datou as janelas do tempo do abade Johan von Calw (1503 a 1524), quase meio século antes da feitura da Bíblia pauperum de Wolfenbüttel. A pesquisa moderna indica que não se tratou de cópia, mas é impossível dizer se a iconografia do livro e das janelas apenas seguia um modelo que se estabelecera gradualmente ao longo de vários séculos. Entretanto, Lessing tinha razão ao observar que a “leitura” das imagens da Biblia pauperum e dos vitrais constituía essencialmente um mesmo ato e que ambos eram diferentes de ler uma descrição em palavras numa página.
Para o cristão alfabetizado do século XIV, qualquer página de uma Bíblia comum possuía uma multiplicidade de significados pelos quais o leitor podia progredir segundo a glosa orientadora do autor ou conforme seu próprio conhecimento. O leitor ritmava a leitura à vontade, ao longo de uma hora ou de um ano, com interrupções ou atrasos, pulando seções ou devorando a página inteira de uma vez. Mas a leitura de uma página da Biblia pauperum era quase instantânea, pois o “texto” oferecia-se iconograficamente como um todo, sem graduações semânticas, e o tempo da narração em imagens coincidia necessariamente com o da leitura do leitor. Marshal McLuhan escreveu: “É relevante considerar que as antigas impressões e gravuras, tal como as modernas tiras de humor e histórias em quadrinhos, ofereciam pouquíssimos dados sobre qualquer momento específico no tempo, ou aspecto no espaço, de um objeto. O espectador, ou leitor, é compelido a participar, completando e interpretando as poucas pistas dadas pelas linhas delimitadoras. Não muito diferente do caráter da gravura e do cartum é a imagem da televisão, com seu baixo grau de dados sobre os objetos e o consequente alto grau de participação do espectador, a fim de completar o que é apenas sugerido na malha de pontos emaranhados”.
Para mim, séculos depois, os dois tipos de leitura convergem quando leio o jornal matutino: de um lado, há o avanço lento pelas notícias, que continuam às vezes numa página distante, relacionadas com outros itens escondidos em seções diferentes, escritas em estilos variados, do aparentemente objetivo ao abertamente irônico; por outro lado, a apreensão quase involuntária dos anúncios num relance, cada história contada dentro de molduras precisas e limitadas, por meio de personagens e símbolos familiares – não a atormentada santa Catarina ou a ceia em Emaús, mas as vicissitudes do último Peugeot ou a epifania da vodca Absolut.
Quem, então, eram meus ancestrais, esses distantes leitores de imagens? A grande maioria, tal como os autores das figuras que eles liam, eram gente silenciosa, anônima, anódina, mas dentre essa multidão em mudança uns poucos indivíduos podem ser resgatados.
Em outubro de 1461, depois de ser solto da prisão graças a um acaso – a passagem do rei Luís XI pela vila de Meung-sur-Loíre –, o poeta François Vilon compôs uma longa miscelânea poética que chamou de seu Testamento. Um dos poemas, uma prece à Virgem Maria escrita (assim nos diz ele) a pedido de sua mãe, coloca na boca da velha senhora as seguintes palavras:

Sou uma mulher pobre e velha,
Não sei nada; letras jamais li;
No mosteiro de minha paróquia vi
Um Paraíso pintado com harpas e alaúdes,
E também o inferno onde os malditos são fervidos;
Um deu-me medo, o outro, alegria.

A mãe de Vilon teria visto imagens de um céu sereno e musical e de um inferno borbulhante e abrasador, e teria sabido que, após a morte, sua alma estava destinada a entrar em um ou outro. Ao ver essas imagens, por mais que pintadas com toda a habilidade, por mais que seus olhos se fixassem nos muitos detalhes penosos, ela sem dúvida não teria reconhecido ali os árduos argumentos teológicos desenvolvidos pelos Pais da Igreja ao longo dos últimos quinze séculos. Ela provavelmente conhecia a versão francesa da máxima latina popular Salvandorum paucitas, damnandorum multitudo (“Poucos são os salvos, muitos os malditos”); provavelmente não sabia que santo Tomás de Aquino determinara que a proporção dos que seriam salvos era equivalente à de Noé e sua família em relação ao resto da humanidade. Os sermões da Igreja teriam glosado algumas daquelas imagens e sua imaginação teria feito o resto.
Tal como a mãe de Vil on, milhares de pessoas erguiam os olhos para as imagens que adornavam as paredes das igrejas e, mais tarde, as janelas, colunas, púlpitos ou mesmo as costas da casula sacerdotal quando o padre estava dizendo missa ou as almofadas da parte de trás do altar, onde se sentavam durante a confissão, e viam naquelas imagens miríades de histórias de uma única história sem fim. Não há motivo para pensar que era diferente com a Biblia pauperum. Mas vários estudiosos modernos discordam. Segundo o crítico alemão Manrus Berve, por exemplo, a Biblia pauperum era “absolutamente ininteligível para os analfabetos”. Ao contrário, Berve sugere que elas “se destinavam provavelmente aos eruditos ou clérigos que não podiam comprar uma Bíblia completa ou que, sendo “pobres de espírito” [arme in Gdste], careciam de um nível de educação mais exigente e contentavam-se com esses excertos". Em consequência, o nome Biblia pauperum não significaria “Bíblia dos pobres”, mas estaria no lugar de Biblia pauperum praedicatorum, ou “Bíblia dos pregadores dos pobres”.
Destinadas aos pobres ou aos seus pregadores, o certo é que tais imagens ficavam abertas no atril diante do rebanho, dia após dia, durante todo o ano litúrgico. Para os analfabetos, excluídos do reino da palavra escrita, ver os textos sacros representados num livro de imagens que eles conseguiam reconhecer ou “ler” devia induzir um sentimento de pertencer àquilo, de compartilhar com os sábios e poderosos a presença material da palavra de Deus. Ver essas cenas em um livro – naquele objeto quase mágico que pertencia exclusivamente aos clérigos letrados e eruditos da época – era bem diferente de vê-las na decoração popular da igreja, como sempre ocorrera no passado.
Era como se de repente as palavras sagradas, que até então pareciam ser propriedade de uns poucos, os quais podiam ou não compartilhá-las com o rebanho. Tivessem sido traduzidas numa língua que qualquer um, mesmo uma mulher “pobre e velha” e sem instrução como a mãe de Vil on, podia entender.

Alberto Manguel, in Historia da leitura

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