Numa
tarde de verão de 1978, um pacote volumoso chegou no escritório do
editor Franco Maria Ricci, em Milão, onde eu estava trabalhando como
editor de línguas estrangeiras.
Ao
abri-lo, vimos que continha, em vez de um manuscrito, uma grande
coleção de páginas ilustradas representando vários objetos
estranhos e operações detalhadas, porém bizarras, todas com
legendas numa escrita que ninguém conhecia. A carta anexa explicava
que o autor, Luigi Serafini, tinha criado uma enciclopédia de um
mundo imaginário, no estilo de um compêndio científico medieval:
cada página representava precisamente um verbete específico, e as
anotações, num alfabeto absurdo que Serafini também inventara
durante dois longos anos em um pequeno apartamento de Roma,
destinavam-se a explicar as complexidades das ilustrações. Diga-se
a favor de Ricci que publicou a obra em dois volumes luxuosos, com
uma deliciosa introdução de Italo Calvino; eles constituem um dos
exemplos mais curiosos de livro ilustrado que conheço. Feito
inteiramente de figuras e palavras inventadas, o Codex
Seraphinianus deve ser lido sem a ajuda de uma língua comum,
mediante signos para os quais não há significados, exceto aqueles
fornecidos por um leitor bem-disposto e inventivo.
Trata-se,
evidentemente, de uma corajosa exceção. Na maior parte do tempo,
uma sequencia de signos segue um código estabelecido, e somente
minha ignorância desse código torna-me impossível lê-la. Ainda
assim, eu percorro uma exposição, no museu Rietberg de Zurique, de
miniaturas indianas que representam cenas mitológicas de histórias
que não me são familiares e tento reconstruir suas sagas; sento-me
diante das pinturas pré-históricas nas rochas do platô de Tessali,
no Saara argelino, e tento imaginar que ameaça persegue aquelas
criaturas semelhantes a girafas em fuga; folheio uma revista em
quadrinhos japonesa no aeroporto de Narita e invento uma narrativa
para as personagens que falam numa escrita que nunca aprendi. Tentar
ler um livro numa língua que não conheço – grego, russo, sânscrito – evidentemente não me revela nada. Mas, se o livro é ilustrado,
mesmo não conseguindo ler as legendas posso em geral atribuir um
sentido, embora não necessariamente o explicado no texto. Serafini
contava com a capacidade criativa de seus leitores.
Serafini
teve um precursor relutante. Nos últimos anos do século IV, são
Nilo de Ancira (hoje Ancara, capital da Turquia) fundou um mosteiro
perto de sua cidade natal. Sobre ele sabemos quase nada: que é
festejado a 12 de novembro, que morreu por volta do ano de 430, que
foi autor de vários tratados sentenciosos e ascéticos destinados
aos seus monges e de mais de mil cartas aos superiores, amigos e a
sua congregação, e que, em seus tempos de juventude, estudou com o
famoso são João Crisóstomo em Constantinopla. Durante séculos,
até que detetives eruditos reduzissem a vida do santo a esses ossos
nus, são Nilo foi o herói de uma história incomum e prodigiosa.
Segundo a Septem narrationes de caede monarchorum et de Theodulo
filio, uma compilação do século vi outrora lida como crônica
hagiográfica e agora arquivada entre romances e contos de aventura,
Nilo nasceu em Constantinopla, numa família nobre, e foi nomeado
oficial e prefeito junto à corte de Teodósio, o Grande. Casou-se e
teve dois filhos, mas, tomado por anseios espirituais, abandonou
esposa e filha e, em 390 ou 404 (as narrativas variam em sua precisão
imaginativa), entrou para a congregação ascética do monte Sinai,
onde ele e seu filho Teódulo levaram uma vida reclusa e devota. De
acordo com as Narrationes, a virtude de são Nilo e de seu
filho era tamanha que “provocou o ódio dos demônios e a inveja
dos anjos”. Em consequência desse desgosto demoníaco e angelical,
em 410 uma horda de bandidos sarracenos atacou a ermida, massacrou
vários monges e levou outros como escravos, entre eles o jovem
Teódulo. Por graça divina, Nilo escapou da espada e dos grilhões e
partiu em busca do filho. Encontrou-o numa cidade em algum lugar
entre a Palestina e a Arábia Pétrea, onde o bispo local, emocionado
pela devoção do santo, ordenou a ambos, pai e filho. São Nilo
retornou ao monte Sinai, onde morreu numa aprazível velhice,
embalado por anjos envergonhados e demônios arrependidos.
Não
sabemos como era o mosteiro de são Nilo nem onde se localizava
exatamente, mas em uma de suas muitas cartas, ele descreve certos
traços ideais da decoração eclesiástica que, podemos supor, foram
usadas em sua própria capela. O bispo Olimpidoro consultara-o sobre
a construção de uma igreja que desejava decorar com imagens de
santos, cenas de caça, pássaros e animais. São Nilo aprovava a
representação de santos, mas condenava as cenas de caçada e de
animais como “frívolas e indignas de uma alma cristã viril”,
sugerindo, em vez disso, cenas do Velho e do Novo Testamento,
“pintadas pela mão de um artista bem-dotado”. Tais cenas,
argumentava, dispostas em ambos os lados da Santa Cruz, serviriam
“como livros para os iletrados, ensinando-lhes a história bíblica
e incutindo neles a crônica da misericórdia de Deus”.
São
Nilo imaginava os crentes analfabetos aproximando-se dessas cenas em
sua igreja funcional e lendo-as como se fossem as palavras de um
livro. Imaginava-os olhando a decoração não mais constituída de
“adornos frívolos”; imaginava-os identificando as imagens
preciosas, ligando-as mentalmente umas às outras, inventando
histórias para elas ou associando as imagens familiares associações
com os sermões que tinham ouvido, ou então se não fossem
totalmente “iletrados”, com exegeses das Escrituras. Dois séculos
depois, o papa Gregório, o Grande, faria eco às ideias de Nilo:
“Uma coisa é adorar imagens, outra é aprender em profundidade,
por meio de imagens, uma história venerável. Pois o que a escrita
toma presente para o leitor, as imagens tomam presente para o
analfabeto, para aqueles que só percebem visualmente, porque nas
imagens os ignorantes veem a história que têm de seguir, e aqueles
que não sabem as letras descobrem que podem, de certo modo, ler.
Portanto, especialmente para a gente comum, as imagens são
equivalentes à leitura”. Em 1025, o sínodo de Arras declarou que
“aquilo que a gente simples não podia apreender lendo as
escrituras poderia ser aprendido por meio da contemplação de
imagens”.
Embora
o segundo mandamento dado por Deus a Moisés proíba especificamente
a feitura de imagens gravadas, bem como de toda “figura do que está
em cima nos céus, ou embaixo sobre a terra, ou nas águas, debaixo
da terra”, artistas judeus decoravam locais e objetos religiosos já
na época do templo de Salomão, em Jerusalém. Em certas épocas,
porém, a proibição prevalecia e os artistas judeus recorriam a
meios-termos inventivos, tais como dar às figuras humanas proibidas
rostos de pássaros para não representar a face humana. A
controvérsia foi ressuscitada na Bizâncio cristã dos séculos VIII
e IX, quando o imperador Leão III e, depois, os imperadores
iconoclastas Constantino v e Teófilo proibiram a representação de
imagens em todo o império.
Para
os antigos romanos, o símbolo de um deus (a águia para Júpiter,
por exemplo) era um substituto do próprio deus. Nos raros casos em
que Júpiter é representado junto com sua águia, ela não é uma
repetição da presença do deus, mas torna-se seu atributo, tal como
o raio. Para os cristãos primitivos, os símbolos tinham essa dupla
qualidade, não representando apenas os temas (a ovelha como Cristo,
a pomba como o Espírito Santo), mas também aspectos específicos do
tema (a ovelha como o Cristo sacrificado, a pomba como a promessa de
libertação do Espírito Santo). Não se destinavam a ser lidos como
sinônimos dos conceitos ou meras duplicatas das divindades. Em vez
disso, expandiam Graficamente certas qualidades da imagem central,
comentavam-nas, sublinhavam-nas, tornavam-nas temas por si mesmos.
Com
o tempo, os símbolos básicos da cristandade primitiva parecem ter
perdido algumas de suas funções simbólicas e se tornado pouco mais
que ideogramas: a coroa de espinhos representando a Paixão de
Cristo, a pomba, o Espírito Santo. Essas imagens elementares foram
gradualmente complementadas por outras mais vastas e complexas, de
tal forma que episódios inteiros da Bíblia se tornaram símbolos de
vários aspectos de Cristo, do Espírito Santo, da vida da Virgem,
bem como ilustrações de certas leituras de outros episódios
sagrados. Talvez fosse essa riqueza de significados que são Nilo
tivesse em mente quando sugeriu contrapor o Novo e o Velho
Testamento, representando-os de ambos os lados da Santa Cruz.
O
fato de que imagens dos dois Testamentos poderiam complementar-se e
dar continuidade à narrativa uma das outras, ensinando “aos
iletrados” a palavra de Deus, já havia sido sugerido pelos
próprios evangelistas. Em seu evangelho, Mateus ligou explicitamente
o Velho ao Novo Testamento pelo menos oito vezes: “Tudo isso
aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta”.
E o próprio Cristo disse que “era necessário que se cumprisse
tudo o que de mim está escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos
salmos”. Há 275 citações literais do Velho Testamento no Novo,
mais 235 referências específicas. Esse conceito de uma continuidade
espiritual não era novidade nem mesmo naquela época: um
contemporâneo de Cristo, o filósofo judeu Filo de Alexandria,
desenvolvera a ideia de uma mente que permeava tudo e manifestava-se
ao longo das eras. Esse espírito simples e onisciente está presente
nas palavras de Cristo, que o descreveu como um vento que “sopra
para onde quer” e liga o presente ao futuro.
Orígenes,
Tertuliano, são Gregório de Níssa e santo Ambrósio, todos
escreveram criativamente sobre as imagens comuns a ambos os
testamentos e elaboraram explicações complexas e poéticas nas
quais nenhum elemento da Bíblia passou despercebido ou permaneceu
inexplicado. Em um dístico muito citado. escreveu santo Agostinho:
“O Novo Testamento está escondido no Velho, enquanto o Velho se
revela no Novo”. E Eusébio de Cesaréia, que morreu em 340,
proclamava que “cada profeta, cada escritor antigo, cada revolução
do estado, cada lei, cada cerimônia do Velho Testamento aponta
somente para Cristo, anuncia somente Ele, representa somente
Ele.[...] Ele estava no Pai Adão, progenitor dos santos; Ele era
inocente e virginal como um mártir em Abel, um renovador da palavra
em Noé. abençoado em Abraão, o alto sacerdote em Melquisedeque, um
sacrifício voluntário em lsaac, chefe dos eleitos em Jacó, vendido
por Seus irmãos em José, poderoso no trabalho no Egito, um doador
de leis em Moisés, sofredor e abandonado em Jó, odiado e perseguido
na maioria dos profetas”.
Na
época da recomendação de são Nilo, a iconografia da Igreja cristã
já estava desenvolvendo imagens convencionais da ubiquidade do
Espírito. Um dos primeiros exemplos pode ser visto numa porta de
duas almofadas esculpida em Roma no século IV e instalada na igreja
de Santa Sabina. Nas almofadas encontram-se cenas correspondentes do
Velho e do Novo Testamento que podem ser lidas simultaneamente.
O
trabalho é um tanto rústico e os detalhes foram apagados pelos
dedos de gerações de peregrinos, mas as cenas podem ser facilmente
identificadas. De um lado estão três dos milagres atribuídos a
Moisés: o adoçamento das águas do Mara, a provisão de maná
durante a fuga do Egito (representada em duas seções) e a retirada
de água de um rochedo. No outro, estão três dos milagres de
Cristo: a restauração da visão de um cego, a multiplicação dos
pães e dos peixes e a transformação da água em vinho para o
casamento em Canã.
O
que teria lido um cristão, olhando as portas de Santa Sabina, na
metade do século V? A árvore com que Moisés adoçou as águas
amargas do Mara seria reconhecida como a Cruz, símbolo do próprio
Cristo. A fonte, tal como Cristo, era uma fonte de água viva dando
vida ao rebanho cristão. O rochedo do deserto em que Moisés foi
bater também seria lido como uma imagem de Cristo, o Salvador, de
cujo flanco escorrem o sangue e a água. O maná prenuncia o alimento
de Canã e da Última Ceia. Um incréu, no entanto, não instruído
na fé cristã, leria as imagens na porta de Santa Sabina de forma
semelhante à que Serafini pretendia que seus leitores entendessem
sua enciclopédia fantástica: criando, a partir dos elementos
representados, uma história e um vocabulário próprios.
Evidentemente,
não era isso que são Nilo tinha em mente. Em 787, o Sétimo
Concílio da Igreja, em Nicéia, deixou claro que a congregação não
tinha liberdade para interpretar as figuras mostradas na igreja, nem
o pintor estava livre para dar ao seu trabalho qualquer significado
ou solução particular: “A execução de pinturas não é uma
invenção do pintor, mas uma proclamação reconhecida das leis e da
tradição de toda a Igreja. Os padres antigos fizeram com que fossem
executadas nas paredes das igrejas; é o pensamento e a tradição
deles que vemos, não os do pintor. Ao pintor cabe a arte, mas a
disposição pertence aos Pais da Igreja”.
No
século XIII, quando a arte gótica começou a florescer e a pintura
nas paredes da igreja foi abandonada em favor de janelas pictóricas
e colunas esculpidas, a iconografia bíblica transferiu-se do estuque
para vitrais, madeira e pedra. As lições das Escrituras passaram a
brilhar e a surgir em formas arredondadas, narrando ao devoto
histórias nas quais o Velho e o Novo Testamento espelhavam-se
sutilmente.
Então,
em algum momento do começo do século XIV, as imagens que são Nilo
pretendia que os fiéis lessem nas paredes foram reduzidas e reunidas
em forma de livro. Nas regiões do baixo Reno, vários iluminadores e
gravadores começaram a representar as imagens em pergaminho e papel.
Os livros que criaram eram feitos quase exclusivamente de cenas
justapostas, com poucas palavras, às vezes como legendas nas margens
da página, às vezes saindo da boca das personagens em cártulas
semelhantes a bandeiras, como os balões das histórias em quadrinhos
de hoje.
No
final do século XIV, esses livros de imagens já tinham se tornado
muito populares e assim continuariam pelo restante da Idade Média,
em vários formatos: volumes de desenhos de página inteira
miniaturas meticulosas, gravuras em madeira e, finalmente, no século
XV, tomos impressos. O primeiro desses volumes que possuímos data de
1462.
Com
o tempo, esses livros extraordinários ficaram conhecidos como
Bibliae pauperum, ou Bíblias dos pobres.
Em
essência, essas “bíblias” eram grandes livros de figuras nos
quais cada página estava dividida para receber duas ou mais cenas.
Por exemplo, na assim chamada Biblia pauperum de Heidelberg,
do século XV, as páginas estão divididas em duas metades, a de
cima e a de baixo. A metade inferior de uma das primeiras páginas
representa a Anunciação e seria mostrada ao fiel naquela data
litúrgica. Em torno dessa cena estão os quatro profetas do Velho
Testamento que previram a vinda de Cristo: Davi, Jeremias, Isaías e
Ezequiel. Acima deles, na metade superior, estão duas cenas do Velho
Testamento: Deus amaldiçoando a cobra no jardim do Éden, com Adão
e Eva em um canto, em posição de recato (Gênesis, 3), e o anjo
chamando Gedeão à ação, enquanto este põe o cabrito no chão
para saber se Deus salvará Israel (Juízes, 6).
Presa
a um atril, aberta na página apropriada, a Biblia pauperum
expunha suas imagens duplas aos fiéis dia após dia, mês após mês,
em sequência. Muitos não seriam capazes de ler as palavras em
letras góticas em torno das personagens representadas; poucos
apreenderiam os vários sentidos de cada imagem em seu significado
histórico, moral e alegórico. Mas a maioria das pessoas
reconheceria grande parte das personagens e cenas e seria capaz de
“ler” naquelas imagens uma relação entre as histórias do Velho
e do Novo Testamento, graças à simples justaposição delas na
página. Pregadores e padres certamente glosariam essas imagens e
recontariam os eventos retratados, ligando-os de uma forma
edificante, enfeitando a narrativa sagrada. E os próprios textos
sacros seriam lidos, dia após dia, o ano inteiro, de tal forma que,
no curso de suas vidas, as pessoas teriam provavelmente ouvido boa
parte a Bíblia várias vezes. Já se sugeriu que o principal
objetivo da Biblia pauperum não era oferecer leitura para o
rebanho iletrado, mas dar aos padres uma espécie de ponto ou guia
temático, uma referência básica para os sermões ou preces,
ajudando-os a demonstrar a unidade da Bíblia. Se isso é verdade
(não há documentos que confirmem tal propósito), então, a exemplo
da maioria dos livros, ela servia a uma variedade de usos e usuários.
É
quase certo que Biblia pauperum não era o nome pelo qual
esses livros ficaram conhecidos por seus primeiros leitores. A
impropriedade da denominação foi percebida no século XVIII pelo
escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing, um leitor devotado para
quem “os livros explicam a vida”. Em 1770, pobre e doente,
Lessing aceitou o posto mal pago de bibliotecário do duque de
Braunschweig, em Wolfenbüttel. Ali passou oito anos miseráveis,
escreveu sua peça mais famosa, Emilia Galotti, e numa série de
ensaios críticos discutiu a relação entre as diferentes formas de
representação artística. Um dos livros da biblioteca do duque era
uma Bíblia pauperum. Lessing descobriu, rabiscada numa das
margens por uma mão tardia, a inscrição Hic incipitur bibelia
[sic] pauperum.
Deduziu
que o livro, a fim de ser catalogado, precisara de uma espécie de
nome e que um bibliotecário antigo – inferindo, a partir da
quantidade de ilustrações e da escassez de texto que ele se
destinava aos analfabetos, isto é, aos pobres – dera-lhe um título
que as gerações futuras tomaram por autêntico. Porém, como
observou Lessing, vários exemplares dessas bíblias eram
ornamentados e caros demais para se destinar aos pobres. Talvez o
importante não fosse a propriedade – o que pertencia à Igreja
podia ser considerado de todos –, mas o acesso; com suas páginas
abertas a todos nos dias apropriados, a fortuitamente chamada Biblia
pauperum escapou do confinamento entre os letrados e tornou-se
popular entre os fiéis famintos por histórias.
Lessing
também chamou a atenção para as semelhanças entre a iconografia
paralela do livro e a dos vitrais das janelas do mosteiro de
Hirschau. Sugeriu que as ilustrações do livro eram cópias dos
vitrais e datou as janelas do tempo do abade Johan von Calw (1503 a
1524), quase meio século antes da feitura da Bíblia pauperum de
Wolfenbüttel. A pesquisa moderna indica que não se tratou de cópia,
mas é impossível dizer se a iconografia do livro e das janelas
apenas seguia um modelo que se estabelecera gradualmente ao longo de
vários séculos. Entretanto, Lessing tinha razão ao observar que a
“leitura” das imagens da Biblia pauperum e dos vitrais
constituía essencialmente um mesmo ato e que ambos eram diferentes
de ler uma descrição em palavras numa página.
Para
o cristão alfabetizado do século XIV, qualquer página de uma
Bíblia comum possuía uma multiplicidade de significados pelos quais
o leitor podia progredir segundo a glosa orientadora do autor ou
conforme seu próprio conhecimento. O leitor ritmava a leitura à
vontade, ao longo de uma hora ou de um ano, com interrupções ou
atrasos, pulando seções ou devorando a página inteira de uma vez.
Mas a leitura de uma página da Biblia pauperum era quase
instantânea, pois o “texto” oferecia-se iconograficamente como
um todo, sem graduações semânticas, e o tempo da narração em
imagens coincidia necessariamente com o da leitura do leitor. Marshal
McLuhan escreveu: “É relevante considerar que as antigas
impressões e gravuras, tal como as modernas tiras de humor e
histórias em quadrinhos, ofereciam pouquíssimos dados sobre
qualquer momento específico no tempo, ou aspecto no espaço, de um
objeto. O espectador, ou leitor, é compelido a participar,
completando e interpretando as poucas pistas dadas pelas linhas
delimitadoras. Não muito diferente do caráter da gravura e do
cartum é a imagem da televisão, com seu baixo grau de dados sobre
os objetos e o consequente alto grau de participação do espectador,
a fim de completar o que é apenas sugerido na malha de pontos
emaranhados”.
Para
mim, séculos depois, os dois tipos de leitura convergem quando leio
o jornal matutino: de um lado, há o avanço lento pelas notícias,
que continuam às vezes numa página distante, relacionadas com
outros itens escondidos em seções diferentes, escritas em estilos
variados, do aparentemente objetivo ao abertamente irônico; por
outro lado, a apreensão quase involuntária dos anúncios num
relance, cada história contada dentro de molduras precisas e
limitadas, por meio de personagens e símbolos familiares – não a
atormentada santa Catarina ou a ceia em Emaús, mas as vicissitudes
do último Peugeot ou a epifania da vodca Absolut.
Quem,
então, eram meus ancestrais, esses distantes leitores de imagens? A
grande maioria, tal como os autores das figuras que eles liam, eram
gente silenciosa, anônima, anódina, mas dentre essa multidão em
mudança uns poucos indivíduos podem ser resgatados.
Em
outubro de 1461, depois de ser solto da prisão graças a um acaso –
a passagem do rei Luís XI pela vila de Meung-sur-Loíre –, o poeta
François Vilon compôs uma longa miscelânea poética que chamou de
seu Testamento. Um dos poemas, uma prece à Virgem Maria
escrita (assim nos diz ele) a pedido de sua mãe, coloca na boca da
velha senhora as seguintes palavras:
Sou
uma mulher pobre e velha,
Não
sei nada; letras jamais li;
No
mosteiro de minha paróquia vi
Um
Paraíso pintado com harpas e alaúdes,
E
também o inferno onde os malditos são fervidos;
Um
deu-me medo, o outro, alegria.
A
mãe de Vilon teria visto imagens de um céu sereno e musical e de um
inferno borbulhante e abrasador, e teria sabido que, após a morte,
sua alma estava destinada a entrar em um ou outro. Ao ver essas
imagens, por mais que pintadas com toda a habilidade, por mais que
seus olhos se fixassem nos muitos detalhes penosos, ela sem dúvida
não teria reconhecido ali os árduos argumentos teológicos
desenvolvidos pelos Pais da Igreja ao longo dos últimos quinze
séculos. Ela provavelmente conhecia a versão francesa da máxima
latina popular Salvandorum paucitas, damnandorum multitudo
(“Poucos são os salvos, muitos os malditos”); provavelmente não
sabia que santo Tomás de Aquino determinara que a proporção dos
que seriam salvos era equivalente à de Noé e sua família em
relação ao resto da humanidade. Os sermões da Igreja teriam
glosado algumas daquelas imagens e sua imaginação teria feito o
resto.
Tal
como a mãe de Vil on, milhares de pessoas erguiam os olhos para as
imagens que adornavam as paredes das igrejas e, mais tarde, as
janelas, colunas, púlpitos ou mesmo as costas da casula sacerdotal
quando o padre estava dizendo missa ou as almofadas da parte de trás
do altar, onde se sentavam durante a confissão, e viam naquelas
imagens miríades de histórias de uma única história sem fim. Não
há motivo para pensar que era diferente com a Biblia pauperum.
Mas vários estudiosos modernos discordam. Segundo o crítico alemão
Manrus Berve, por exemplo, a Biblia pauperum era
“absolutamente ininteligível para os analfabetos”. Ao contrário,
Berve sugere que elas “se destinavam provavelmente aos eruditos ou
clérigos que não podiam comprar uma Bíblia completa ou que, sendo
“pobres de espírito” [arme in Gdste], careciam de um
nível de educação mais exigente e contentavam-se com esses
excertos". Em consequência, o nome Biblia pauperum não
significaria “Bíblia dos pobres”, mas estaria no lugar de Biblia
pauperum praedicatorum, ou “Bíblia dos pregadores dos pobres”.
Destinadas
aos pobres ou aos seus pregadores, o certo é que tais imagens
ficavam abertas no atril diante do rebanho, dia após dia, durante
todo o ano litúrgico. Para os analfabetos, excluídos do reino da
palavra escrita, ver os textos sacros representados num livro de
imagens que eles conseguiam reconhecer ou “ler” devia induzir um
sentimento de pertencer àquilo, de compartilhar com os sábios e
poderosos a presença material da palavra de Deus. Ver essas cenas em
um livro – naquele objeto quase mágico que pertencia
exclusivamente aos clérigos letrados e eruditos da época – era
bem diferente de vê-las na decoração popular da igreja, como
sempre ocorrera no passado.
Era
como se de repente as palavras sagradas, que até então pareciam ser
propriedade de uns poucos, os quais podiam ou não compartilhá-las
com o rebanho. Tivessem sido traduzidas numa língua que qualquer um,
mesmo uma mulher “pobre e velha” e sem instrução como a mãe de
Vil on, podia entender.
Alberto Manguel, in Historia da leitura
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