domingo, 19 de fevereiro de 2023

Eu não desmaio, dr. Guido

Eu morava num apartamento de quarenta e três metros. Os “três” metros sobressalentes, número que explodia em luxúria na boca do corretor “de plantão”, referiam-se a uma microvaranda na qual só cabia uma pessoa sem cadeira ou uma cadeira sem pessoa. A decoração era um mix “faço o que quiser com meu dinheiro” com pouco dinheiro. Foi meu primeiro apê e eu o amava muito.
A sala era toda roxa com persianas pretas deformadas (um dia esqueci a janela aberta e o vento entortou tudo, eu achava “artístico”). O carpete de madeira “puxava pro lilás” para “ornar”. Carpete de madeira é um troço para o qual nunca mais quero voltar. Eu olho para o meu atual piso “restaurado de madeira boa” e penso como Scarlett: “nunca mais sentirei fome”.
Mas a Casa Vogue (ou a Casa Claudia, juro que não lembro) cismou comigo para a matéria “O cantinho da escritora”. Tentei explicar que minha casa inteira era um cantinho. Que a pia da cozinha conversava com o vaso do banheiro que conversava com o criado apesar de este ser mudo. Que o lugar onde eu escrevia era entre o pé da cama e a porta de entrada. Mas eles foram lá mesmo assim.
Ao chegar, a repórter teve um ataque. O oposto daquele tipo de ataque (síndrome de Stendhal?) que temos ao ver um quadro que nos emociona muito em Florença. E ela mandou vir cadeiras, tapetes, quadros, almofadas… tudo emprestado de outra sessão de fotos. “Já que estamos aqui, preciso de uma casa bonita pra matéria!” Eu pedindo: “pelo amor de Deus, melhor a gente deixar pra lá”, e ela repetindo o tempo todo: “mas é pra te ajudar”.
Aquilo foi me dando uma preguiça desgraçada de existir, um bode imenso por ter aberto a porta para aquela gente, uma ansiedade gigantesca por todo o trabalho que eu poderia estar adiantando, quieta, de pijama, se não tivesse topado a palhaçada de posar numa sala que agora nem era minha, com uma pose que eu nunca fazia quando estava sozinha em casa e… tive uma crise brava de pânico. No meio da sessão de fotos, comecei a achar que ia morrer e que minha morte sairia impressa em “cores cheias de bossa” na matéria “O cantinho da escritora” da Casa Vogue ou Casa Claudia.
A repórter, ao ver meu estado, me deu um cartão. “Olha, o dr. Guido salvou a minha vida. Ele é o papa das crises de pânico. Eu tenho, meu marido tem, meus filhos têm, minha mãe tem, meu ex-marido tem” (bom, então o cara não curou ninguém, confere? Ele só disseminou a bosta pela família). “Ele atende no Einstein. Promete pra mim que você vai lá?”
Depois que expliquei tudo, muito rapidamente o neurologista concluiu que meu problema de “passar mal” não tinha nada a ver com ansiedade, angústia ou maluquice. Me deu uma caixa de Propranolol e me desafiou para um teste: “tome dois comprimidos desses por dia e volte daqui a um mês. Você vai me agradecer muito!”.
E foi logo me encaminhando para a porta, com a pressa típica dos médicos de plano de saúde. E eu fui indo, com a passividade típica das pessoas que vão a médicos de plano de saúde. Quando lembrei que estava pagando novecentos reais pela consulta. Voltei e sentei. “Explica melhor.”
Dr. Guido me deu explicações sobre a síndrome do vasovagal, que faz a pessoa desmaiar. Sobre o oxigênio que não chega direito ao cérebro e por isso a pessoa desmaia. Sobre a pressão que baixa e o coração bate mais rápido para não deixar a pessoa desmaiar. Sobre o desmaio que faz a pessoa cair para que a pressão possa voltar. Sobre o suor durante o desmaio para que a pressão volte ao normal. Sobre como estressar o sistema nervoso autônomo causava desmaios. Sobre como, a depender da contração dos vasos, o desmaio poderia durar tempo suficiente para gerar uma convulsão. Ele realmente se entregou ao tema. Só havia um problema, e tentei explicar com alguma paciência: eu não desmaiava.
Eu tinha crises de ansiedade. E foi quando ele se levantou, como um típico lacaniano cara de pau, sorriu, como um típico lacaniano cara de pau, e me convidou (com o silêncio típico de um lacaniano cara de pau) a confiar nele e voltar “dali a um mês”. A cara de pau não é só dos lacanianos e não funciona só com pacientes de lacanianos. Sempre achamos que todo “misterioso ocupado” está armando em silêncio um grande momento de revelação e cura para nós.
Já estava saindo do consultório quando lembrei que ele não era um psicanalista lacaniano, e voltei a sentar. E desatei a chorar. “Então o senhor jura que não sou louca? É só ‘sei lá o quê, nada a ver com psiquiatria e tal’?” Ele jurou. E eu fui embora.
Bom, minha experiência com o Propranolol foi das coisas mais esquisitas. Eu podia correr loucamente na esteira, ouvindo Rage Against the Machine, que não acontecia nada com meu coração. Poderia andar numa montanha-russa daquelas com diversos loopings no escuro, que meu coração não dispararia nem por um segundinho. Podia transar com um protagonista gato de novela na microvaranda de três metros, que eu nem suava. Desisti do remédio no quinto dia e voltei ao neurologista. Se o preço para viver melhor era me sentir morta, alguma coisa estava errada.
Antes, descobri que Propranolol era o queridinho dos que têm medo de falar em público. Aquela coisa de gaguejar ou tremer segurando o papel com o discurso acabava dez minutos depois que se tomasse um comprimido. Pois é, meu amigo, parecia maturidade, mas era só remédio. A partir daquele dia nunca mais assisti a uma palestra TED sem desconfiar que o orador estava drogado. A verdade é que nunca na vida assisti a uma palestra TED.
Quando voltei ao consultório do dr. Guido, ele resolveu que me provaria, agora mais drasticamente, que meu problema era a pressão arterial, e não neurose. Me preparou então para o que seria um dos piores momentos da minha existência: o tilt table test, popularmente (não) conhecido como “teste de inclinação ortostática”.
Primeiro, você tem que chegar ao hospital como um refugiado faquir pagador de promessas. Eu estava sem comer fazia umas dez horas. A visão já turvada pela hipoglicemia, a audição já chiada pela pressão baixa. Daí, uma junta médica formada por um cardiologista, um neurologista e um assistente bonzinho com cara de “não vai ser fácil, o paciente que fez o teste antes de você teve um rim arrancado pela axila, mas eu estou aqui” vem te receber. Nem quando nós morremos aparece tanta gente qualificada e solícita, por aí você já tem uma ideia do que estava por vir.
O teste consiste em avaliar como a pressão reage às mudanças de postura, para isso te amarram com cintas de couro numa maca e ficam brincando de te colocar em várias posições. Não contentes, quando você está a uns trinta centímetros de beijar o pé dos médicos, completamente tomado pela fúria assassina de uma hipoglicemia desumana, com vontade de gritar num alto-falante: “ou vocês me tiram daqui ou eu vou processar vocês e quebrar essa porra inteira e…”, eles te metem um sublingual “para seu coração disparar loucamente” e eles poderem “ter um mapa de como seu corpo funciona durante uma síncope”.
Sim, os olhos reviram, as mãos entortam, a ideia do exame é que você passe muito mal para que, no fim, eles possam te dizer o seguinte: “olha, se você ficar dez horas sem comer, amarrado quase de ponta-cabeça numa maca e a gente te enfiar uma espécie de MDMA legalizado na boca, você vai passar mal”. Valeu, tilt table test! Que surpreendente esse resultado! Minha pressão foi a três por três e eu precisei de massagem no antebraço para que as veias não pulassem para fora. Só não vi a morte porque estava cega.
Você tem disautonomia”, me informou então o dr. Guido. E explicou que o sistema nervoso autônomo é formado pelo simpático e pelo parassimpático. O simpático é o que faz o coração, por exemplo, disparar para que a pessoa não desmaie. O parassimpático é o que faz o coração, por exemplo, parar de disparar para que a pessoa não tenha uma parada cardíaca. Quando esses dois, apesar de tanta simpatia, não entram num acordo, a pessoa passa mal e… pode desmaiar. Por isso eu desmaiava, era a conclusão do dr. Guido.
Só que eu não desmaio, dr. Fucking Guido. Entende? Eu limpo todos os cantinhos de casa quando acho que comi doces em excesso. Só que ficar de quatro limpando cantinhos me dá mais angústia, e daí eu como mais doces. Eu rego as plantas da minha varanda oito vezes quando tenho que entrar num avião porque “vai que eu morro e elas ficam muito tempo sem ninguém regar”, só que eu perco o voo porque não consigo parar de regar as plantas, percebe? Eu não desmaio, dr. Guido.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

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