Eu
morava num apartamento de quarenta e três metros. Os “três”
metros sobressalentes, número que explodia em luxúria na boca do
corretor “de plantão”, referiam-se a uma microvaranda na qual só
cabia uma pessoa sem cadeira ou uma cadeira sem pessoa. A decoração
era um mix “faço o que quiser com meu dinheiro” com pouco
dinheiro. Foi meu primeiro apê e eu o amava muito.
A
sala era toda roxa com persianas pretas deformadas (um dia esqueci a
janela aberta e o vento entortou tudo, eu achava “artístico”). O
carpete de madeira “puxava pro lilás” para “ornar”. Carpete
de madeira é um troço para o qual nunca mais quero voltar. Eu olho
para o meu atual piso “restaurado de madeira boa” e penso como
Scarlett: “nunca mais sentirei fome”.
Mas
a Casa Vogue (ou a Casa Claudia, juro que não lembro)
cismou comigo para a matéria “O cantinho da escritora”. Tentei
explicar que minha casa inteira era um cantinho. Que a pia da cozinha
conversava com o vaso do banheiro que conversava com o criado apesar
de este ser mudo. Que o lugar onde eu escrevia era entre o pé da
cama e a porta de entrada. Mas eles foram lá mesmo assim.
Ao
chegar, a repórter teve um ataque. O oposto daquele tipo de ataque
(síndrome de Stendhal?) que temos ao ver um quadro que nos emociona
muito em Florença. E ela mandou vir cadeiras, tapetes, quadros,
almofadas… tudo emprestado de outra sessão de fotos. “Já que
estamos aqui, preciso de uma casa bonita pra matéria!” Eu pedindo:
“pelo amor de Deus, melhor a gente deixar pra lá”, e ela
repetindo o tempo todo: “mas é pra te ajudar”.
Aquilo
foi me dando uma preguiça desgraçada de existir, um bode imenso por
ter aberto a porta para aquela gente, uma ansiedade gigantesca por
todo o trabalho que eu poderia estar adiantando, quieta, de pijama,
se não tivesse topado a palhaçada de posar numa sala que agora nem
era minha, com uma pose que eu nunca fazia quando estava sozinha em
casa e… tive uma crise brava de pânico. No meio da sessão de
fotos, comecei a achar que ia morrer e que minha morte sairia
impressa em “cores cheias de bossa” na matéria “O cantinho da
escritora” da Casa Vogue ou Casa Claudia.
A
repórter, ao ver meu estado, me deu um cartão. “Olha, o dr. Guido
salvou a minha vida. Ele é o papa das crises de pânico. Eu
tenho, meu marido tem, meus filhos têm, minha mãe tem, meu
ex-marido tem” (bom, então o cara não curou ninguém, confere?
Ele só disseminou a bosta pela família). “Ele atende no Einstein.
Promete pra mim que você vai lá?”
Depois
que expliquei tudo, muito rapidamente o neurologista concluiu que meu
problema de “passar mal” não tinha nada a ver com ansiedade,
angústia ou maluquice. Me deu uma caixa de Propranolol e me desafiou
para um teste: “tome dois comprimidos desses por dia e volte daqui
a um mês. Você vai me agradecer muito!”.
E
foi logo me encaminhando para a porta, com a pressa típica dos
médicos de plano de saúde. E eu fui indo, com a passividade típica
das pessoas que vão a médicos de plano de saúde. Quando lembrei
que estava pagando novecentos reais pela consulta. Voltei e sentei.
“Explica melhor.”
Dr.
Guido me deu explicações sobre a síndrome do vasovagal, que faz a
pessoa desmaiar. Sobre o oxigênio que não chega direito ao cérebro
e por isso a pessoa desmaia. Sobre a pressão que baixa e o coração
bate mais rápido para não deixar a pessoa desmaiar. Sobre o desmaio
que faz a pessoa cair para que a pressão possa voltar. Sobre o suor
durante o desmaio para que a pressão volte ao normal. Sobre como
estressar o sistema nervoso autônomo causava desmaios. Sobre como, a
depender da contração dos vasos, o desmaio poderia durar tempo
suficiente para gerar uma convulsão. Ele realmente se entregou ao
tema. Só havia um problema, e tentei explicar com alguma paciência:
eu não desmaiava.
Eu
tinha crises de ansiedade. E foi quando ele se levantou, como um
típico lacaniano cara de pau, sorriu, como um típico lacaniano cara
de pau, e me convidou (com o silêncio típico de um lacaniano cara
de pau) a confiar nele e voltar “dali a um mês”. A cara de pau
não é só dos lacanianos e não funciona só com pacientes de
lacanianos. Sempre achamos que todo “misterioso ocupado” está
armando em silêncio um grande momento de revelação e cura para
nós.
Já
estava saindo do consultório quando lembrei que ele não era um
psicanalista lacaniano, e voltei a sentar. E desatei a chorar. “Então
o senhor jura que não sou louca? É só ‘sei lá o quê, nada a
ver com psiquiatria e tal’?” Ele jurou. E eu fui embora.
Bom,
minha experiência com o Propranolol foi das coisas mais esquisitas.
Eu podia correr loucamente na esteira, ouvindo Rage Against the
Machine, que não acontecia nada com meu coração. Poderia
andar numa montanha-russa daquelas com diversos loopings no escuro,
que meu coração não dispararia nem por um segundinho. Podia
transar com um protagonista gato de novela na microvaranda de três
metros, que eu nem suava. Desisti do remédio no quinto dia e voltei
ao neurologista. Se o preço para viver melhor era me sentir morta,
alguma coisa estava errada.
Antes,
descobri que Propranolol era o queridinho dos que têm medo de falar
em público. Aquela coisa de gaguejar ou tremer segurando o papel com
o discurso acabava dez minutos depois que se tomasse um comprimido.
Pois é, meu amigo, parecia maturidade, mas era só remédio. A
partir daquele dia nunca mais assisti a uma palestra TED sem
desconfiar que o orador estava drogado. A verdade é que nunca na
vida assisti a uma palestra TED.
Quando
voltei ao consultório do dr. Guido, ele resolveu que me provaria,
agora mais drasticamente, que meu problema era a pressão arterial, e
não neurose. Me preparou então para o que seria um dos piores
momentos da minha existência: o tilt table test, popularmente
(não) conhecido como “teste de inclinação ortostática”.
Primeiro,
você tem que chegar ao hospital como um refugiado faquir pagador de
promessas. Eu estava sem comer fazia umas dez horas. A visão já
turvada pela hipoglicemia, a audição já chiada pela pressão
baixa. Daí, uma junta médica formada por um cardiologista, um
neurologista e um assistente bonzinho com cara de “não vai ser
fácil, o paciente que fez o teste antes de você teve um rim
arrancado pela axila, mas eu estou aqui” vem te receber. Nem quando
nós morremos aparece tanta gente qualificada e solícita, por aí
você já tem uma ideia do que estava por vir.
O
teste consiste em avaliar como a pressão reage às mudanças de
postura, para isso te amarram com cintas de couro numa maca e ficam
brincando de te colocar em várias posições. Não contentes, quando
você está a uns trinta centímetros de beijar o pé dos médicos,
completamente tomado pela fúria assassina de uma hipoglicemia
desumana, com vontade de gritar num alto-falante: “ou vocês me
tiram daqui ou eu vou processar vocês e quebrar essa porra inteira
e…”, eles te metem um sublingual “para seu coração disparar
loucamente” e eles poderem “ter um mapa de como seu corpo
funciona durante uma síncope”.
Sim,
os olhos reviram, as mãos entortam, a ideia do exame é que você
passe muito mal para que, no fim, eles possam te dizer o seguinte:
“olha, se você ficar dez horas sem comer, amarrado quase de
ponta-cabeça numa maca e a gente te enfiar uma espécie de MDMA
legalizado na boca, você vai passar mal”. Valeu, tilt table
test! Que surpreendente esse resultado! Minha pressão foi a três
por três e eu precisei de massagem no antebraço para que as veias
não pulassem para fora. Só não vi a morte porque estava cega.
“Você
tem disautonomia”, me informou então o dr. Guido. E explicou que o
sistema nervoso autônomo é formado pelo simpático e pelo
parassimpático. O simpático é o que faz o coração, por exemplo,
disparar para que a pessoa não desmaie. O parassimpático é o que
faz o coração, por exemplo, parar de disparar para que a pessoa não
tenha uma parada cardíaca. Quando esses dois, apesar de tanta
simpatia, não entram num acordo, a pessoa passa mal e… pode
desmaiar. Por isso eu desmaiava, era a conclusão do dr. Guido.
Só
que eu não desmaio, dr. Fucking Guido. Entende? Eu limpo
todos os cantinhos de casa quando acho que comi doces em excesso. Só
que ficar de quatro limpando cantinhos me dá mais angústia, e daí
eu como mais doces. Eu rego as plantas da minha varanda oito vezes
quando tenho que entrar num avião porque “vai que eu morro e elas
ficam muito tempo sem ninguém regar”, só que eu perco o voo
porque não consigo parar de regar as plantas, percebe? Eu não
desmaio, dr. Guido.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
Nenhum comentário:
Postar um comentário