quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Cartas para minha avó

Minha mãe era uma mulher muito inteligente. As pessoas sempre a procuravam para pedir conselhos (além de recorrerem à sua incrível habilidade de destravar as costas — ela tinha uma técnica incrível pra isso!). De uma sabedoria e generosidade sem igual, ela conquistava a todos que de fato prestavam atenção nela, sobretudo minhas amigas, para quem ela virou uma espécie de conselheira. Meu pai, claro, nunca valorizou essas qualidades, nem sequer as enxergou. Entre os amigos cultos dele do Partido Comunista, minha mãe era vista como a dona de casa, a mãe, a esposa, mesmo se esforçando para ser notada além desses lugares. Estar entre os homens que pregavam a revolução poderia significar ter de se confrontar com sua suposta falta de talento ou inteligência, na qual foi convencida a acreditar.
Parafraseando Simone de Beauvoir, as mulheres têm dificuldades de se libertar de situações opressoras porque não as veem como algo a ser transcendido ou ultrapassado, mas como fruto do destino. Ela se conformou em ficar com as pessoas que estavam habituadas a dobrar calças e passar camisas. Entre elas, minha mãe sempre seria a sábia, a grande conselheira, um talento em vias de ser descoberto, a eterna intelectual em potência. A tristeza e a invisibilidade a corroeram a ponto de ela se sentir importante se alguém lhe entregava um simples santinho de candidato na feira.
Dona Erani foi uma mulher com os pés rachados e os olhos tristes. E foram raras as vezes que alguém, em vez de olhá-la com desprezo ou desdém, perguntou qual era a história por trás daqueles olhos castanho-escuros. Certa vez, uma vizinha comentou: “Que pé horrível, Erani, todo rachado!”, numa tentativa de diminuí-la ou de simplesmente gritar uma opinião não requisitada que fez minha mãe comprar todos os times de cremes e lixas. A vizinha poderia ter aceitado a feiura deles, ou até ter visto beleza, se tivesse questionado por onde aqueles pés haviam andado.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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