Minha
mãe era uma mulher muito inteligente. As pessoas sempre a procuravam
para pedir conselhos (além de recorrerem à sua incrível habilidade
de destravar as costas — ela tinha uma técnica incrível pra
isso!). De uma sabedoria e generosidade sem igual, ela conquistava a
todos que de fato prestavam atenção nela, sobretudo minhas amigas,
para quem ela virou uma espécie de conselheira. Meu pai, claro,
nunca valorizou essas qualidades, nem sequer as enxergou. Entre os
amigos cultos dele do Partido Comunista, minha mãe era vista como a
dona de casa, a mãe, a esposa, mesmo se esforçando para ser notada
além desses lugares. Estar entre os homens que pregavam a revolução
poderia significar ter de se confrontar com sua suposta falta de
talento ou inteligência, na qual foi convencida a acreditar.
Parafraseando
Simone de Beauvoir, as mulheres têm dificuldades de se libertar de
situações opressoras porque não as veem como algo a ser
transcendido ou ultrapassado, mas como fruto do destino. Ela se
conformou em ficar com as pessoas que estavam habituadas a dobrar
calças e passar camisas. Entre elas, minha mãe sempre seria a
sábia, a grande conselheira, um talento em vias de ser descoberto, a
eterna intelectual em potência. A tristeza e a invisibilidade a
corroeram a ponto de ela se sentir importante se alguém lhe
entregava um simples santinho de candidato na feira.
Dona
Erani foi uma mulher com os pés rachados e os olhos tristes. E foram
raras as vezes que alguém, em vez de olhá-la com desprezo ou
desdém, perguntou qual era a história por trás daqueles olhos
castanho-escuros. Certa vez, uma vizinha comentou: “Que pé
horrível, Erani, todo rachado!”, numa tentativa de diminuí-la ou
de simplesmente gritar uma opinião não requisitada que fez minha
mãe comprar todos os times de cremes e lixas. A vizinha poderia ter
aceitado a feiura deles, ou até ter visto beleza, se tivesse
questionado por onde aqueles pés haviam andado.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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