sábado, 18 de fevereiro de 2023

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 11

Um momento para refletir sobre a memória.
Os kalachakra, os ouroboranos, aqueles de nós que orbitamos eternamente a mesma série de eventos históricos embora nossas vidas possam mudar — ou seja, os membros do Clube Cronus —, esquecemos. Alguns veem o esquecimento como uma bênção, uma chance de redescobrir as coisas que já foram vividas, de preservar alguma sensação de admiração pelo universo. Uma sensação de déjà vu persegue os membros mais antigos do Clube, que sabem que já viram tudo isso antes, mas não conseguem se lembrar bem de quando. Outros veem nossa memória imperfeita como prova de que, apesar de nossa condição, ainda somos humanos. Nossos corpos envelhecem e experimentam todas as dores dos humanos, e quando morremos as gerações futuras podem encontrar o local onde estamos enterrados, exumar nossos corpos putrefatos e dizer, sim, estes aqui são mesmo os restos mortais do falecido Harry August, mas alguém sabe dizer onde sua mente foi parar? No que concerne à realidade, as implicações dessa revelação são inúmeras para discutir aqui, mas sempre, sempre voltamos à mente — é a mente que faz a jornada através do tempo enquanto a carne se decompõe. Não somos nada além de mentes, e nada mais humano para a mente que ser imperfeita e esquecer. Então, ninguém consegue se lembrar de quem fundou o Clube Cronus, embora todos tenham cumprido seu papel; talvez até o ouroborano que tenha feito essa primeira escolha já não se lembre mais de seu papel e, como todos os outros, fique imaginando quem foi o responsável. Quando morremos é como se o mundo reiniciasse, e só a memória dos nossos feitos permanecesse como evidência das nossas ações, nem mais, nem menos.
Eu me lembro de tudo, às vezes com tanta intensidade que mais parece que estou revivendo, não apenas recordando. Mesmo agora, enquanto escrevo, consigo me lembrar do sol se pondo atrás das colinas e da fumaça marrom que saía do cachimbo de Phearson ao vê-lo sentado no pátio abaixo da minha janela, olhando na direção do campo vazio de croqué. Não consigo recriar o padrão exato dos meus pensamentos, no sentido de que eles não tinham palavras, não tinham uma em que eu pudesse me agarrar; mas posso dizer o exato momento em que cheguei à minha decisão, onde estava sentado e o que estava vendo. Eu estava sentado na cama e vi uma pintura rústica de casas de campo em tons de verde e cinza, com um spaniel latindo do lado de fora, numa postura parecida com a de um coelho saltitante.
Aceito, mas tenho uma condição — disse eu.
E qual seria?
Quero saber tudo o que você sabe sobre esse Clube Cronus.
Está bem — respondeu Phearson, após pensar por um breve instante.
Assim começou minha primeira — e praticamente única — manipulação do curso dos eventos temporais. Comecei de forma mais geral, com pinceladas amplas. Phearson ficou satisfeito ao saber da queda da União Soviética, mas sua satisfação tinha toques de suspeita, como se tivesse uma leve suspeita de que eu estivesse inventando bobagens para aplacar seus desejos. Ele exigiu detalhes — detalhes — e, quando lhe contei da perestroika e da glasnost, da queda do Muro de Berlim, da abertura das fronteiras da Áustria, da morte de Ceauşescu, ele entregou anotações incessantes a seus assistentes, pedindo que verificassem os nomes que eu mencionava, para confirmar a existência de um Gorbachev no Kremlin e para saber se de fato esse homem poderia se tornar um poderoso aliado na destruição da glória de sua própria nação.
Seus interesses não eram puramente políticos. Durante a tarde, queria saber sobre ciência e economia, como se fosse um leve passatempo entre os interrogatórios políticos sérios. Meus interesses não o ajudaram. Eu sabia que o telefone celular seria criado e que uma força misteriosa chamada internet estava ganhando força, mas não conseguia dizer como nem quem inventara essas coisas, pois eu nunca havia me interessado por elas. A política nacional pouco o interessava, e perguntas se adaptavam às respostas que eu dava, tornando-se cada vez mais específicas conforme eu me esforçava para mantê-las tão genéricas quanto possível. Após suas dúvidas iniciais de que o futuro seria de fato tão auspicioso, ele começou a se ater aos detalhes mais precisos, pressionando-me cada vez mais para eu me lembrar das manchetes que eu via de passagem nas bancas de jornal ou das recordações de uma viagem de trem que partira de Kyoto em 1981.
Meu Deus, senhor! — exclamou ele. — Ou você é o maior mentiroso do mundo ou tem uma memória de dar inveja.
Minha memória é perfeita. Eu me lembro de tudo, desde a primeira vez que entendi o que era uma recordação. Não me lembro de nascer; talvez o cérebro não seja desenvolvido o bastante para entender esse evento. Mas me lembro de morrer. Me lembro do momento em que tudo para.
E como é? — perguntou Phearson, com um particular brilho de entusiasmo nos olhos que eu ainda não tinha visto.
A interrupção é delicada. Não passa disso. Uma interrupção. O chegar lá é que é difícil.
Você viu alguma coisa?
Não.
Nada?
Nada diferente da ação natural de uma mente que está se deteriorando.
Talvez não tenha importância para você.
— “Não tenha importância”? Para você minha morte não é... — Eu me contive, depois desviei o olhar. — Bom, acho que não tenho nada com o que comparar, não é?
Não acrescentei que ele também não tinha.
Mesmo falando apenas a verdade, ele não se satisfazia.
Mas como é possível alguém invadir o Afeganistão? Não há ninguém lá para combater!
Seu desconhecimento sobre o passado era quase tão profundo quanto sobre o futuro, mas ao menos tinha a vantagem de contar com uma equipe diferente para corroborar os fatos. Eu lhe disse para estudar o Grande Jogo, pesquisar o povo pashtun, olhar um mapa. Expliquei que poderia lhe dar datas e mencionar lugares, mas o entendimento ficaria por conta dele.
Durante meu tempo livre eu estudava. Aparentemente, Phearson era um homem de palavra. Li a respeito do Clube Cronus.
De fato, havia pouca literatura sobre o assunto. Se minha experiência não tivesse sido tão parecida com o que li, eu teria considerado toda a questão uma fraude. Em 56 d.C., uma referência a uma sociedade em Atenas famosa pela erudição e pela exclusividade, o mistério em torno de sua natureza, o que causou a expulsão de seus membros quatro anos depois, expulsão essa que, de acordo com o cronista, eles aceitaram com boa vontade e desprendimento fora do normal, despreocupados com os acontecimentos da época. No próprio diário, outro cronista escreveu que, dois dias antes do Saque de Roma, um prédio na esquina de sua rua dedicado ao culto ao deus Cronos havia sido evacuado, as damas e os cavalheiros muito bem-vestidos que compareciam ao local fizeram a mudança ao receber o alerta de que em breve não valeria mais a pena ficar ali, e eis que os bárbaros chegaram. Na Índia, um homem acusado de assassinato e que se dizia inocente cortou a própria garganta na cela, alegando antes de morrer que morrer era um tédio, mas que, assim como a serpente, engoliria o próprio rabo e renasceria. Um grupo conhecido pela discrição deixou a cidade de Nanquim em 1935, e um dos membros, uma senhora conhecida por sua riqueza — ninguém sabia como ela a conseguira —, alertou sua criada favorita para que deixasse a cidade e levasse a família para o mais longe possível, dando a ela dinheiro para isso e profetizando uma guerra em que tudo se esvairia em chamas. Alguns os chamavam de profetas; os mais supersticiosos os chamavam de demônios. Qualquer que seja a verdade, para onde quer que tenham ido, o Clube Cronus parecia ter a dupla habilidade de evitar problemas e de ficar longe das vistas.
De certa forma, o arquivo de Phearson sobre o Clube Cronus foi sua ruína. Pois, ao ler o material, pela primeira vez comecei a pensar na questão do tempo.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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