Um
momento para refletir sobre a memória.
Os
kalachakra, os ouroboranos, aqueles de nós que orbitamos eternamente
a mesma série de eventos históricos embora nossas vidas possam
mudar — ou seja, os membros do Clube Cronus —, esquecemos. Alguns
veem o esquecimento como uma bênção, uma chance de redescobrir as
coisas que já foram vividas, de preservar alguma sensação de
admiração pelo universo. Uma sensação de déjà vu persegue os
membros mais antigos do Clube, que sabem que já viram tudo isso
antes, mas não conseguem se lembrar bem de quando. Outros veem nossa
memória imperfeita como prova de que, apesar de nossa condição,
ainda somos humanos. Nossos corpos envelhecem e experimentam todas as
dores dos humanos, e quando morremos as gerações futuras podem
encontrar o local onde estamos enterrados, exumar nossos corpos
putrefatos e dizer, sim, estes aqui são mesmo os restos mortais do
falecido Harry August, mas alguém sabe dizer onde sua mente foi
parar? No que concerne à realidade, as implicações dessa revelação
são inúmeras para discutir aqui, mas sempre, sempre voltamos à
mente — é a mente que faz a jornada através do tempo
enquanto a carne se decompõe. Não somos nada além de mentes, e
nada mais humano para a mente que ser imperfeita e esquecer. Então,
ninguém consegue se lembrar de quem fundou o Clube Cronus, embora
todos tenham cumprido seu papel; talvez até o ouroborano que tenha
feito essa primeira escolha já não se lembre mais de seu papel e,
como todos os outros, fique imaginando quem foi o responsável.
Quando morremos é como se o mundo reiniciasse, e só a memória dos
nossos feitos permanecesse como evidência das nossas ações, nem
mais, nem menos.
Eu
me lembro de tudo, às vezes com tanta intensidade que mais parece
que estou revivendo, não apenas recordando. Mesmo agora, enquanto
escrevo, consigo me lembrar do sol se pondo atrás das colinas e da
fumaça marrom que saía do cachimbo de Phearson ao vê-lo sentado no
pátio abaixo da minha janela, olhando na direção do campo vazio de
croqué. Não consigo recriar o padrão exato dos meus pensamentos,
no sentido de que eles não tinham palavras, não tinham uma em que
eu pudesse me agarrar; mas posso dizer o exato momento em que cheguei
à minha decisão, onde estava sentado e o que estava vendo. Eu
estava sentado na cama e vi uma pintura rústica de casas de campo em
tons de verde e cinza, com um spaniel latindo do lado de fora, numa
postura parecida com a de um coelho saltitante.
— Aceito,
mas tenho uma condição — disse eu.
— E
qual seria?
— Quero
saber tudo o que você sabe sobre esse Clube Cronus.
— Está
bem — respondeu Phearson, após pensar por um breve instante.
Assim
começou minha primeira — e praticamente única — manipulação
do curso dos eventos temporais. Comecei de forma mais geral, com
pinceladas amplas. Phearson ficou satisfeito ao saber da queda da
União Soviética, mas sua satisfação tinha toques de suspeita,
como se tivesse uma leve suspeita de que eu estivesse inventando
bobagens para aplacar seus desejos. Ele exigiu detalhes — detalhes
— e, quando lhe contei da perestroika e da glasnost,
da queda do Muro de Berlim, da abertura das fronteiras da Áustria,
da morte de Ceauşescu, ele entregou anotações incessantes a seus
assistentes, pedindo que verificassem os nomes que eu mencionava,
para confirmar a existência de um Gorbachev no Kremlin e para saber
se de fato esse homem poderia se tornar um poderoso aliado na
destruição da glória de sua própria nação.
Seus
interesses não eram puramente políticos. Durante a tarde, queria
saber sobre ciência e economia, como se fosse um leve passatempo
entre os interrogatórios políticos sérios. Meus interesses não o
ajudaram. Eu sabia que o telefone celular seria criado e que uma
força misteriosa chamada internet estava ganhando força, mas não
conseguia dizer como nem quem inventara essas coisas, pois eu nunca
havia me interessado por elas. A política nacional pouco o
interessava, e perguntas se adaptavam às respostas que eu dava,
tornando-se cada vez mais específicas conforme eu me esforçava para
mantê-las tão genéricas quanto possível. Após suas dúvidas
iniciais de que o futuro seria de fato tão auspicioso, ele começou
a se ater aos detalhes mais precisos, pressionando-me cada vez mais
para eu me lembrar das manchetes que eu via de passagem nas bancas de
jornal ou das recordações de uma viagem de trem que partira de
Kyoto em 1981.
— Meu
Deus, senhor! — exclamou ele. — Ou você é o maior mentiroso do
mundo ou tem uma memória de dar inveja.
— Minha
memória é perfeita. Eu me lembro de tudo, desde a primeira vez que
entendi o que era uma recordação. Não me lembro de nascer; talvez
o cérebro não seja desenvolvido o bastante para entender esse
evento. Mas me lembro de morrer. Me lembro do momento em que tudo
para.
— E
como é? — perguntou Phearson, com um particular brilho de
entusiasmo nos olhos que eu ainda não tinha visto.
— A
interrupção é delicada. Não passa disso. Uma interrupção. O
chegar lá é que é difícil.
— Você
viu alguma coisa?
— Não.
— Nada?
— Nada
diferente da ação natural de uma mente que está se deteriorando.
— Talvez
não tenha importância para você.
— “Não
tenha importância”? Para você minha morte não é... — Eu me
contive, depois desviei o olhar. — Bom, acho que não tenho nada
com o que comparar, não é?
Não
acrescentei que ele também não tinha.
Mesmo
falando apenas a verdade, ele não se satisfazia.
— Mas
como é possível alguém invadir o Afeganistão? Não há ninguém
lá para combater!
Seu
desconhecimento sobre o passado era quase tão profundo quanto sobre
o futuro, mas ao menos tinha a vantagem de contar com uma equipe
diferente para corroborar os fatos. Eu lhe disse para estudar o
Grande Jogo, pesquisar o povo pashtun, olhar um mapa. Expliquei que
poderia lhe dar datas e mencionar lugares, mas o entendimento ficaria
por conta dele.
Durante
meu tempo livre eu estudava. Aparentemente, Phearson era um homem de
palavra. Li a respeito do Clube Cronus.
De
fato, havia pouca literatura sobre o assunto. Se minha experiência
não tivesse sido tão parecida com o que li, eu teria considerado
toda a questão uma fraude. Em 56 d.C., uma referência a uma
sociedade em Atenas famosa pela erudição e pela exclusividade, o
mistério em torno de sua natureza, o que causou a expulsão de seus
membros quatro anos depois, expulsão essa que, de acordo com o
cronista, eles aceitaram com boa vontade e desprendimento fora do
normal, despreocupados com os acontecimentos da época. No próprio
diário, outro cronista escreveu que, dois dias antes do Saque de
Roma, um prédio na esquina de sua rua dedicado ao culto ao deus
Cronos havia sido evacuado, as damas e os cavalheiros muito
bem-vestidos que compareciam ao local fizeram a mudança ao receber o
alerta de que em breve não valeria mais a pena ficar ali, e eis que
os bárbaros chegaram. Na Índia, um homem acusado de assassinato e
que se dizia inocente cortou a própria garganta na cela, alegando
antes de morrer que morrer era um tédio, mas que, assim como a
serpente, engoliria o próprio rabo e renasceria. Um grupo conhecido
pela discrição deixou a cidade de Nanquim em 1935, e um dos
membros, uma senhora conhecida por sua riqueza — ninguém sabia
como ela a conseguira —, alertou sua criada favorita para que
deixasse a cidade e levasse a família para o mais longe possível,
dando a ela dinheiro para isso e profetizando uma guerra em que tudo
se esvairia em chamas. Alguns os chamavam de profetas; os mais
supersticiosos os chamavam de demônios. Qualquer que seja a verdade,
para onde quer que tenham ido, o Clube Cronus parecia ter a dupla
habilidade de evitar problemas e de ficar longe das vistas.
De
certa forma, o arquivo de Phearson sobre o Clube Cronus foi sua
ruína. Pois, ao ler o material, pela primeira vez comecei a pensar
na questão do tempo.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
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