I
Não
sou quadro para viver preso numa moldura e dependurado na parede. E
que são as fronteiras de uma cidade, eu pergunto, senão os limites
estreitos de uma moldura mais ou menos de luxo, na qual pretendem
sufocar a imensidão de minha alma imortal, como diria um grande
poeta ou qualquer seminarista, em tarde de primavera?
Os
grandes perfumes cabem nos pequenos frascos, não resta a menor
dúvida, mas aí a história já é completamente diferente: é como
um morto que cabe todo num pequeno caixão de apenas dois metros de
comprido, embora a morte seja a coisa mais importante que possa
acontecer neste mundo e o seu mistério não tenha limites. Arcanos,
arcanos!... — como dizia um tio metafísico, que morreu de câncer.
Mas,
voltando ao que interessa, foi levado por meu espírito de
globe-trotter ou de pulga que esta manhã pedi carona a um enorme
caminhão de carga que ia saindo da cidade e que me levou em pouco
tempo para uma estrada muito ampla e muito limpa, cercada de espessa
mata por ambos os lados.
Por
uma dessas estranhas coincidências que só a mim me acontecem, logo
no começo da estrada o caminhão parou e o motorista fez subir para
o meu lado (esquecia-me de dizer que eu estava confortavelmente
instalado sobre pacotes e mais pacotes de papel higiênico, de marca
por sinal não muito conhecida) justamente um dos padres que ajudaram
a prender-me por ocasião do meu êxtase nudista na Igreja de Santa
Úrsula: — um sujeitinho baixo, mirrado, de olhos ariscos e
traiçoeiros, e que, ao reconhecer-me, logo se pôs envergonhadíssimo
e não sabia se se atirava do caminhão ou não, e acabou
cumprimentando-me duas vezes seguidas e se deitando de comprido sobre
os pacotes de Fina Flor. Meu primeiro impulso foi de esganá-lo e de
atirá-lo à estrada, mas depois fiquei com receio de amarrotar minha
roupa nova, (comprada num belchior com o dinheiro do meu irmão
afogado) e me pus calmamente a mascar chiclete, com um sorriso de
escárnio no canto direito da boca.
Com
o tempo fui percebendo que o meu companheiro de viagem — que subira
com mala e tudo, como se estivesse a pegar um comboio de estrada de
ferro procurava esquivar-se não só da minha vista como de quaisquer
outras vistas possíveis num raio de duzentos quilômetros,
metendo-se entre os fardos de papel higiênico e pondo mesmo alguns
deles sobre o corpo, como se cumprisse um rito cabalístico. Passei a
fitá-lo então com maior interesse, mesmo porque podia tratar-se de
algum espião a serviço do Vaticano, incumbido de eliminar-me da
face da terra na primeira oportunidade, se necessário com sacrifício
do caminhão e de todos os seus ocupantes.
Na
primeira parada, quando o padrezinho desceu para urinar num botequim
da estrada, segui-o de perto, entrei com ele no pequeno compartimento
infecto onde se aliviavam os viajantes, e, enquanto ele urinava, eu
do meu canto urinava também mas sem tirar-lhe os olhos de cima, a
ponto de deixá-lo visivelmente encabulado. O homem tremia como vara
verde, que tem fama de tremer muito, quando pouco depois nos
esbarramos por acaso na porta de saída e eu por acaso lhe desferi um
violento soco à altura do ouvido, que o fez beijar o chão em
atitude de profunda humildade. Ajudei-o a levantar-se, sempre com o
chiclete e o escárnio no canto da boca, e, sem lhe dar tempo para
quaisquer perguntas, convidei-o gentilmente a tomar uma garrafa de
vinho no balcão, já que não dispúnhamos de muito tempo para
sentar-nos. Mas o chofer e o seu ajudante, a essa altura, já se
dispunham a partir de novo, e a solução foi levar duas garrafas de
vinho para cima do caminhão, para irmos bebendo devagar durante a
viagem, sob o céu primaveril e o canto dos pássaros.
E
foi assim que, bebendo e fazendo o outro beber à força, eu fiquei
sabendo que ele de fato estava um tanto ou quanto apavorado, não só
por causa do nosso encontro casual na estrada como, e principalmente,
por causa de um marido ciumento que o ameaçara de morte na véspera
e o obrigara a fugir de casa em plena madrugada, sem tempo sequer
para avisar o Sr. bispo. Do crime que lhe imputava o dito marido ele
se dizia absolutamente inocente (simples intriga dos comunistas e
anarquistas, como sempre) mas nunca era demais tomar as precauções
devidas, pois um marido enganado, quer dizer, desconfiado, é mais
temível do que todas as trombetas de Jericó e do que os Quatro
Cavaleiros do Apocalipse juntos, como o prova a história da Igreja
através dos tempos, e a história das Cruzadas de um modo
particular.
Já
meio bêbado, como eu, confessou-me ainda que trazia dentro da mala,
a par de algumas relíquias religiosas de pequeno valor, a quantia
aproximada de 25 mil rublos, que era tudo quanto lhe fora possível
arrecadar dos cofres da sua igreja, na pressa da partida. In vino
veritas..., já diziam os antigos, e essa verdade dita assim por um
padre no alto de um caminhão, entre os rolos de papel higiênico e
sob a ameaça sempre próxima de um marido ultrajado, foi a mais
grata das surpresas que me poderiam ocorrer a essa altura dos
acontecimentos, pois em verdade eu estava banhado, penteado e trajado
decentemente, mas continuava tão pobre quanto antes, se não mais
ainda, já que os planos de um sujeito bem vestido são sempre mais
astronômicos do que os de um simples mendigo.
Meus
restantes quinhentos francos aliados aos 25 mil rublos do reverendo
dariam bem (deixem-me fazer as contas) uns cinquenta mil ou sessenta
mil pesos argentinos, já descontado o imposto de renda — mais do
que o suficiente para dois sujeitos sem escrúpulos, embora honestos,
recomeçarem de novo suas vidas em qualquer recanto deste mundo, de
preferência em algum país recentemente devastado pela guerra ou
assolado por uma epidemia de vastas proporções, já que os
terremotos são mais raros e não se pode encomendá-los segundo a
conveniência de nossos interesses. E, assim, pensando, tratei logo
de beijar na face o pavoroso padre Balbino — este o nome do meu
fugitivo — em sinal de perfeita identidade entre o seu destino e o
meu daqui por diante, nesse novo mercado de ladrões para o qual nos
está conduzindo o caminhão neste instante, e cujo nome tanto pode
ser Cartago como Yorkshire, Valparaíso, Havana ou simplesmente San
Juan de la Sierra.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
Nenhum comentário:
Postar um comentário