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Quando
acordo de manhã, molhado até o umbigo pelo mar calmo, tenho ao meu
lado, deitado em decúbito dorsal, o cadáver de um afogado.
Certamente o trouxe o mar para a minha companhia enquanto eu dormia o
sono da inocência, pois não me lembro de tê-lo visto pela
madrugada, quando me estirei na areia, morto de fadiga, após haver
enfrentado a fúria dos soldados armados de baioneta calada.
Os
mortos estão começando e me dar sorte — raciocino comigo mesmo,
enquanto me aproximo de meu companheiro para examinar-lhe as feições
transfiguradas pela água salgada do mar, povoada de peixes e
mistérios. É, ao que tudo indica, um homem muito gordo e de seus
cinquenta anos, e apesar do frio veste apenas um calção de fustão
barato, de cor indefinida. (Algum pescador de pérolas ou um
contrabandista foragido da polícia, concluo após um exame minucioso
do nariz do sujeito, ainda cheio de sal marinho e de uma gosma que à
primeira vista parece manteiga mas que não tem o gosto de manteiga.
Quando lhe ausculto o peito, ainda ouço nitidamente o barulho do mar
dentro dele, como se fora uma concha.)
A
praia — e não o cais, como eu supunha — ainda está deserta a
esta hora matutina, e apenas algumas gaivotas voam placidamente sobre
as nossas cabeças, contra o céu plúmbeo e ameaçador. Minhas mãos
tiritam de frio, e um pouco também de fome, e é com certo desagrado
que constato que o meu companheiro ainda é mais pobre do que eu,
pois nem sequer lhe resta a vida dentro do corpo — a vida que por
certo não vale grande coisa, mas sempre serve para viver.
O
calção do homem, no estado em que se encontra, não deverá valer
grande coisa, nem sequer dará para uma refeição decente, com café
e sobremesa. A solução, portanto, será vender o próprio homem à
faculdade de medicina ou a quem quer que se interesse por semelhantes
carcaças — fazendo-me passar, para evitar suspeitas, por seu irmão
necessitado e abnegado, pronto a servir à ciência e ao bem-estar da
humanidade. Será preciso porém, antes, deixar secar o corpo do
naufragado, pois não me consta que na faculdade de medicina comprem
corpos encharcados a esse ponto, com dois dedos a menos na mão
direita e um dos pés atacado de elefantíase, com se se tratasse
efetivamente de um aleijado. Enfim, não custará nada tentar, mesmo
porque hoje em dia os cadáveres só costumam dar debaixo da terra, e
não é comum alguém ir oferecê-los de porta em porta, como quem
oferece peixe fresco ou verduras ainda molhadas de orvalho.
Para
garantir meu sustento destes próximos dias, trato pois, antes de
mais nada, de esconder bem escondido — sob umas obras de madeira,
aparentemente abandonadas, a uns dez passos de onde me encontro — o
novo membro da minha família, novo e provisório, de que terei que
desfazer-me o mais breve possível, se não quiser vê-lo devorado
pelos urubus e pelos cães da noite. Arrasto-o cautelosamente, para
não vê-lo reduzir-se a postas de carne inúteis, até o canto mais
escondido da suposta construção, e ali o ponho a secar como um
pedaço de charque destinado a longa viagem, sem perigo de que o
venha a alcançar de novo a maré alta, caso eu não volte a tempo.
Feito
isto, lavo as mãos na água do mar, urino assobiando de pura
felicidade, e subo em direção à rua mais próxima, que certamente
há de levar-me a alguém que me dará as informações de que
preciso.
Quanto
poderá valer um cadáver hoje em dia — já não digo pelo câmbio
negro, mas às claras, em plena luz do dia e sem intermediários
inescrupulosos? Certamente valerá mais do que um homem vivo, que não
está valendo nada, sobretudo se se sabe usar de certa lábia ao
vendê-lo e não se aceita imediatamente a primeira oferta, como se
se estivesse a morrer de fome. Nunca vendi antes um cadáver, em toda
a minha vida, nem mesmo nos piores tempos de guerra, e não tenho
base segura para julgar do valor da minha mercadoria, agora que a
tenho em mãos e para pronta entrega. É possível que me acabem
tapeando, dada a minha inexperiência no assunto, e me ofereçam um
preço que não corresponda nem à décima parte do valor exato do
artigo, como de praxe ocorre em todos os negócios em que se envolvem
interesses pecuniários, seja entre os homens como entre as nações.
(Um dia ainda escreverei um livro sobre isso, um livro de quinhentas
páginas no mínimo, no qual terei oportunidade de revelar meus
grandes conhecimentos de economia política ou de política
econômica, adquiridos ao longo de minha vida de cidadão do mundo —
ou de cidadão do universo, para ser mais exato.)
Que
o meu afogado, mesmo com dois dedos a menos e o começo de
elefantíase, deve valer um bom preço, não tenho a menor dúvida,
pois trata-se de um exemplar ainda em bom estado de conservação e
pesando seus setenta ou oitenta quilos no mínimo. Além do mais, na
faculdade de medicina o que vão fazer dele não exige que seja
nenhum tipo de beleza nem que esteja com as unhas bem aparadas ou com
a barba escanhoada a capricho — sendo, ao contrário, importante
apenas que as suas vísceras estejam todas nos seus devidos lugares,
como suponho que ainda estejam, e que nenhum parente importuno venha
reclamá-lo no instante mesmo da dissecação, com lágrimas nos
olhos e um ar arrependido. Cadáveres que não devem valer nada são
esses em que o trem passou por cima ou que resultaram de alguma
tragédia passional, com muitas facadas pelas costas e pelo ventre,
com vísceras à mostra como num balcão de açougue. Ou então esses
que, embora perfeitos na aparência, são por dentro um amontoado de
ossos e órgãos sem a menor ordem ou simetria — o fígado no lugar
do rim, o estômago no lugar do fígado, o coração à altura dos
testículos e vice-versa — por terem os seus donos se atirado de
grande altura ou simplesmente caído num precipício, sem auxílio de
paraquedas ou com a intenção visível de morrer. Em que adiantará
a um estudante de medicina abrir um desses corpos tão bem
conservados por fora — alguns ainda trazendo até um laço de
gravata perfeito ou os sapatos recém-polidos, como dois espelhos —
se por dentro eles são como que um verdadeiro saco de gatos ou como
que uma casa de orates, os órgãos todos (e o esqueleto primeiro)
brigando entre si numa legítima guerra intestina, sem preocupação
de trocadilho?
Mas
eis que, depois de muito perguntar e caminhar, acabo chegando
finalmente diante de um grande portão de ferro onde duas tíbias
cruzadas (como nos cemitérios) me fazem ver claramente que outro não
é o meu destino — e onde também leio, para dissipar quaisquer
dúvidas, o seguinte aviso escrito em latim: Faculdade de Medicina da
Universidade Católica de...
Ao
porteiro vesgo que está na entrada anuncio candidamente o objetivo
da minha visita, e o homem, nem bem me ouve, sai imediatamente em
disparada rumo aos fundos do velho edifício, não sem antes pedir-me
pelo amor de Deus que não me afaste um passo sequer de onde me
encontrava. (Deve ter-me tomado pelo próprio presidente da
República, sem dúvida, ou então por alguma outra personagem ainda
mais importante, a julgar pelo afobamento com que desapareceu da
minha vista, sem ao menos esperar que eu acabasse minha comovente
história.) Um segundo depois, se tanto, ei-lo porém que reaparece,
tão esbaforido quanto antes, ao lado de um cavalheiro que anda a
passos largos na minha direção e que, por seus gestos largos e
atitudes de louco, por pouco não me faz fugir em disparada pela rua
fora, sob risco de que me tomem por um ladrão. É o diretor do
estabelecimento, como fico sabendo logo em seguida, e que, com
requintes de gentileza, me convida a entrar imediatamente numa
espécie de sala fria e cheirando a necrotério, onde uma vez
sentados, passamos desde logo ao seguinte diálogo:
Eu
— O Sr. não quer comprar um cadáver?
O
Diretor — Um cadáver?! Onde está?
Eu
— Está enxugando; mas eu trago logo.
O
Diretor — E de quem é o cadáver?
Eu
— É meu, ora essa. Ou antes, é do meu irmão que morreu afogado
esta manhã, quando pescava lagosta na entrada da barra. (Voz
lacrimosa).
O
Diretor — Meus pêsames. E quanto é que o Sr. quer pelo seu irmão?
Eu
— O Sr. não quer vê-lo primeiro?
O
Diretor — (Impaciente) Não precisa. Ele não está em bom estado
de conservação?
Eu
— Excelente. Apenas faltam dois dedos da mão e, se não me engano,
um pedaço do pé esquerdo ou direito.
O
Diretor — Ótimo! Quer dizer, lamento profundamente, mas serve
assim mesmo.
Eu
— (De repente) Cinco mil francos, está bem?
O
Diretor — É muito. Um irmão, depois de morto, não vale tanto. Se
ainda fosse um pai...
Eu
— Está bem, faço um abatimento. Três mil e quinhentos francos,
nem um franco a menos. (Voz lacrimosa, novamente).
O
Diretor — Está fechado o negócio! O Sr. tem o atestado de óbito?
Eu
— Não é preciso; o homem está morto mesmo.
O
Diretor — Não é isso. É a polícia, o Sr. compreende...
Eu
— Mande às favas a polícia! Eu tenho pressa de fechar o negócio
e não posso estar perdendo tempo com essas bobagens.
O
Diretor — Está bem. Não precisa zangar-se por tão pouco, que
diabo! Onde está o cadáver?
Eu
— Passe os cobres primeiro.
E
assim, em menos de dez minutos, muito menos tempo do que eu esperava,
eis-me de posse do dinheiro e o homem de posse do meu irmão, sem
necessidade de estampilhas nem de outras formalidades de qualquer
espécie, como deveriam ser realizados todos os negócios neste
mundo, se houvesse seriedade de parte a parte. Já na rua, sentado no
rabecão ao lado do motorista que é o mesmo porteiro que me atendera
pouco antes, ponho-me a contar cuidadosamente as notas de cem francos
que me foram entregues em confiança e que me permitirão, louvado
seja Deus, sair um pouco desta negra miséria em que me encontro
desde que me roubaram vergonhosamente na delegacia de polícia.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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