sábado, 11 de fevereiro de 2023

A Lua Vem da Ásia | Cosmogonia

H

Quando acordo de manhã, molhado até o umbigo pelo mar calmo, tenho ao meu lado, deitado em decúbito dorsal, o cadáver de um afogado. Certamente o trouxe o mar para a minha companhia enquanto eu dormia o sono da inocência, pois não me lembro de tê-lo visto pela madrugada, quando me estirei na areia, morto de fadiga, após haver enfrentado a fúria dos soldados armados de baioneta calada.
Os mortos estão começando e me dar sorte — raciocino comigo mesmo, enquanto me aproximo de meu companheiro para examinar-lhe as feições transfiguradas pela água salgada do mar, povoada de peixes e mistérios. É, ao que tudo indica, um homem muito gordo e de seus cinquenta anos, e apesar do frio veste apenas um calção de fustão barato, de cor indefinida. (Algum pescador de pérolas ou um contrabandista foragido da polícia, concluo após um exame minucioso do nariz do sujeito, ainda cheio de sal marinho e de uma gosma que à primeira vista parece manteiga mas que não tem o gosto de manteiga. Quando lhe ausculto o peito, ainda ouço nitidamente o barulho do mar dentro dele, como se fora uma concha.)
A praia — e não o cais, como eu supunha — ainda está deserta a esta hora matutina, e apenas algumas gaivotas voam placidamente sobre as nossas cabeças, contra o céu plúmbeo e ameaçador. Minhas mãos tiritam de frio, e um pouco também de fome, e é com certo desagrado que constato que o meu companheiro ainda é mais pobre do que eu, pois nem sequer lhe resta a vida dentro do corpo — a vida que por certo não vale grande coisa, mas sempre serve para viver.
O calção do homem, no estado em que se encontra, não deverá valer grande coisa, nem sequer dará para uma refeição decente, com café e sobremesa. A solução, portanto, será vender o próprio homem à faculdade de medicina ou a quem quer que se interesse por semelhantes carcaças — fazendo-me passar, para evitar suspeitas, por seu irmão necessitado e abnegado, pronto a servir à ciência e ao bem-estar da humanidade. Será preciso porém, antes, deixar secar o corpo do naufragado, pois não me consta que na faculdade de medicina comprem corpos encharcados a esse ponto, com dois dedos a menos na mão direita e um dos pés atacado de elefantíase, com se se tratasse efetivamente de um aleijado. Enfim, não custará nada tentar, mesmo porque hoje em dia os cadáveres só costumam dar debaixo da terra, e não é comum alguém ir oferecê-los de porta em porta, como quem oferece peixe fresco ou verduras ainda molhadas de orvalho.
Para garantir meu sustento destes próximos dias, trato pois, antes de mais nada, de esconder bem escondido — sob umas obras de madeira, aparentemente abandonadas, a uns dez passos de onde me encontro — o novo membro da minha família, novo e provisório, de que terei que desfazer-me o mais breve possível, se não quiser vê-lo devorado pelos urubus e pelos cães da noite. Arrasto-o cautelosamente, para não vê-lo reduzir-se a postas de carne inúteis, até o canto mais escondido da suposta construção, e ali o ponho a secar como um pedaço de charque destinado a longa viagem, sem perigo de que o venha a alcançar de novo a maré alta, caso eu não volte a tempo.
Feito isto, lavo as mãos na água do mar, urino assobiando de pura felicidade, e subo em direção à rua mais próxima, que certamente há de levar-me a alguém que me dará as informações de que preciso.
Quanto poderá valer um cadáver hoje em dia — já não digo pelo câmbio negro, mas às claras, em plena luz do dia e sem intermediários inescrupulosos? Certamente valerá mais do que um homem vivo, que não está valendo nada, sobretudo se se sabe usar de certa lábia ao vendê-lo e não se aceita imediatamente a primeira oferta, como se se estivesse a morrer de fome. Nunca vendi antes um cadáver, em toda a minha vida, nem mesmo nos piores tempos de guerra, e não tenho base segura para julgar do valor da minha mercadoria, agora que a tenho em mãos e para pronta entrega. É possível que me acabem tapeando, dada a minha inexperiência no assunto, e me ofereçam um preço que não corresponda nem à décima parte do valor exato do artigo, como de praxe ocorre em todos os negócios em que se envolvem interesses pecuniários, seja entre os homens como entre as nações. (Um dia ainda escreverei um livro sobre isso, um livro de quinhentas páginas no mínimo, no qual terei oportunidade de revelar meus grandes conhecimentos de economia política ou de política econômica, adquiridos ao longo de minha vida de cidadão do mundo — ou de cidadão do universo, para ser mais exato.)
Que o meu afogado, mesmo com dois dedos a menos e o começo de elefantíase, deve valer um bom preço, não tenho a menor dúvida, pois trata-se de um exemplar ainda em bom estado de conservação e pesando seus setenta ou oitenta quilos no mínimo. Além do mais, na faculdade de medicina o que vão fazer dele não exige que seja nenhum tipo de beleza nem que esteja com as unhas bem aparadas ou com a barba escanhoada a capricho — sendo, ao contrário, importante apenas que as suas vísceras estejam todas nos seus devidos lugares, como suponho que ainda estejam, e que nenhum parente importuno venha reclamá-lo no instante mesmo da dissecação, com lágrimas nos olhos e um ar arrependido. Cadáveres que não devem valer nada são esses em que o trem passou por cima ou que resultaram de alguma tragédia passional, com muitas facadas pelas costas e pelo ventre, com vísceras à mostra como num balcão de açougue. Ou então esses que, embora perfeitos na aparência, são por dentro um amontoado de ossos e órgãos sem a menor ordem ou simetria — o fígado no lugar do rim, o estômago no lugar do fígado, o coração à altura dos testículos e vice-versa — por terem os seus donos se atirado de grande altura ou simplesmente caído num precipício, sem auxílio de paraquedas ou com a intenção visível de morrer. Em que adiantará a um estudante de medicina abrir um desses corpos tão bem conservados por fora — alguns ainda trazendo até um laço de gravata perfeito ou os sapatos recém-polidos, como dois espelhos — se por dentro eles são como que um verdadeiro saco de gatos ou como que uma casa de orates, os órgãos todos (e o esqueleto primeiro) brigando entre si numa legítima guerra intestina, sem preocupação de trocadilho?
Mas eis que, depois de muito perguntar e caminhar, acabo chegando finalmente diante de um grande portão de ferro onde duas tíbias cruzadas (como nos cemitérios) me fazem ver claramente que outro não é o meu destino — e onde também leio, para dissipar quaisquer dúvidas, o seguinte aviso escrito em latim: Faculdade de Medicina da Universidade Católica de...
Ao porteiro vesgo que está na entrada anuncio candidamente o objetivo da minha visita, e o homem, nem bem me ouve, sai imediatamente em disparada rumo aos fundos do velho edifício, não sem antes pedir-me pelo amor de Deus que não me afaste um passo sequer de onde me encontrava. (Deve ter-me tomado pelo próprio presidente da República, sem dúvida, ou então por alguma outra personagem ainda mais importante, a julgar pelo afobamento com que desapareceu da minha vista, sem ao menos esperar que eu acabasse minha comovente história.) Um segundo depois, se tanto, ei-lo porém que reaparece, tão esbaforido quanto antes, ao lado de um cavalheiro que anda a passos largos na minha direção e que, por seus gestos largos e atitudes de louco, por pouco não me faz fugir em disparada pela rua fora, sob risco de que me tomem por um ladrão. É o diretor do estabelecimento, como fico sabendo logo em seguida, e que, com requintes de gentileza, me convida a entrar imediatamente numa espécie de sala fria e cheirando a necrotério, onde uma vez sentados, passamos desde logo ao seguinte diálogo:
Eu — O Sr. não quer comprar um cadáver?
O Diretor — Um cadáver?! Onde está?
Eu — Está enxugando; mas eu trago logo.
O Diretor — E de quem é o cadáver?
Eu — É meu, ora essa. Ou antes, é do meu irmão que morreu afogado esta manhã, quando pescava lagosta na entrada da barra. (Voz lacrimosa).
O Diretor — Meus pêsames. E quanto é que o Sr. quer pelo seu irmão?
Eu — O Sr. não quer vê-lo primeiro?
O Diretor — (Impaciente) Não precisa. Ele não está em bom estado de conservação?
Eu — Excelente. Apenas faltam dois dedos da mão e, se não me engano, um pedaço do pé esquerdo ou direito.
O Diretor — Ótimo! Quer dizer, lamento profundamente, mas serve assim mesmo.
Eu — (De repente) Cinco mil francos, está bem?
O Diretor — É muito. Um irmão, depois de morto, não vale tanto. Se ainda fosse um pai...
Eu — Está bem, faço um abatimento. Três mil e quinhentos francos, nem um franco a menos. (Voz lacrimosa, novamente).
O Diretor — Está fechado o negócio! O Sr. tem o atestado de óbito?
Eu — Não é preciso; o homem está morto mesmo.
O Diretor — Não é isso. É a polícia, o Sr. compreende...
Eu — Mande às favas a polícia! Eu tenho pressa de fechar o negócio e não posso estar perdendo tempo com essas bobagens.
O Diretor — Está bem. Não precisa zangar-se por tão pouco, que diabo! Onde está o cadáver?
Eu — Passe os cobres primeiro.
E assim, em menos de dez minutos, muito menos tempo do que eu esperava, eis-me de posse do dinheiro e o homem de posse do meu irmão, sem necessidade de estampilhas nem de outras formalidades de qualquer espécie, como deveriam ser realizados todos os negócios neste mundo, se houvesse seriedade de parte a parte. Já na rua, sentado no rabecão ao lado do motorista que é o mesmo porteiro que me atendera pouco antes, ponho-me a contar cuidadosamente as notas de cem francos que me foram entregues em confiança e que me permitirão, louvado seja Deus, sair um pouco desta negra miséria em que me encontro desde que me roubaram vergonhosamente na delegacia de polícia.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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