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Certa
noite, poucos meses antes de sua morte, circa 547 – treze
séculos antes dos lectores cubanos –, são Bento de Núrsia
teve uma visão. Quando estava orando diante de sua janela aberta,
olhando para a escuridão lá fora, “o mundo todo pareceu reunir-se
em um raio de sol e surgir diante de seus olhos”. Nessa visão, o
velho homem deve ter visto, com lágrimas nos olhos, “aquele objeto
secreto e conjetural de cujo nome os homens se apoderaram, mas que
ninguém jamais contemplou: o inconcebível universo”.
Bento
renunciara ao mundo aos catorze anos de idade e abandonara a fortuna
e os títulos de sua rica família romana. Por volta de 529, fundou
um mosteiro no monte Cassino — um morro escarpado de 450 metros de
altura, ao lado de um antigo santuário pagão, a meio caminho entre
Roma e Nápoles – e estabeleceu para seus frades uma série de
regras, nas quais a autoridade de um código de leis substituía a
vontade absoluta do superior do mosteiro. Talvez porque buscasse nas
Escrituras a visão universal que lhe seria concedida anos depois, ou
talvez porque acreditasse, como sir Thomas Browne, que Deus nos
oferecia o mundo sob dois aspectos, como natureza e como livro. Bento
decretou que a leitura seria uma parte essencial da vida diária do
mosteiro. O artigo 38 de sua regra explicitava o procedimento:
Na
hora da refeição dos irmãos, sempre haverá leitura; ninguém
deverá ousar pegar o livro aleatoriamente e começar a ler dali; mas
aquele escolhido para ler durante toda a semana deverá começar seus
deveres no domingo. E. entrando em seu ofício depois da Missa e
Comunhão, deverá pedir a todos que orem por ele, que Deus o afaste
do espírito de exaltação. E este verso deverá ser dito no
oratório três vezes por todos, sendo ele o primeiro: “Oh, Senhor,
abre meus lábios e que minha boca manifeste Teu louvor”. E assim,
tendo recebido a bênção, ele deverá assumir seus deveres de
leitor. E deverá haver o maior silêncio à mesa, de tal forma que
nenhum sussurro ou voz, exceto a do leitor, seja ouvido. E o que quer
que seja necessário no tocante a comida, os irmãos deverão passar
uns para os outros, de tal forma que ninguém precise pedir nada.
Tal
como nas fábricas cubanas, o livro a ser lido não era escolhido por
acaso, mas, diferentemente do que ocorria nas fábricas, onde os
títulos eram escolhidos por consenso, no mosteiro a escolha era
feita pelas autoridades da comunidade. Para os trabalhadores cubanos,
os livros podiam se tornar (muitas vezes isso acontecia) a posse
íntima de cada ouvinte, mas, para os discípulos de são Bento, era
preciso evitar exaltação, prazer pessoal e orgulho. pois a fruição
do texto deveria ser comunitária, não individual. A oração a
Deus, pedindo-lhe que abrisse os lábios do leitor, colocava o ato de
ler nas mãos do Todo-Poderoso. Para são Bento, o texto – a
Palavra de Deus – estava acima do gosto pessoal, senão acima da
compreensão. O texto era imutável e o autor (ou Autor), a
autoridade definitiva. Por fim, o silêncio à mesa, a falta de
resposta da audiência, era necessário não só para garantir a
concentração, mas também para impedir qualquer vestígio de
comentário particular sobre os livros sagrados.
Mais
tarde, nos mosteiros cistercienses, fundados em toda a Europa a
partir do começo do século XII, a regra de são Bento foi usada
para assegurar um fluxo ordeiro à vida monástica, na qual as
angústias e os desejos pessoais se submetiam às necessidades
comunais. As violações das regras eram punidas com flagelação e
os infratores eram separados da congregação, isolados de seus
irmãos. Solidão e privacidade eram consideradas punições; os
segredos eram de conhecimento comum as buscas individuais de qualquer
tipo, intelectuais ou não, eram firmemente desestimuladas; a
disciplina era a recompensa daqueles que viviam bem dentro da
comunidade. Na vida cotidiana, os monges cistercienses jamais ficavam
sozinhos. Às refeições, seus espíritos eram distraídos dos
prazeres da carne e reuniam-se na palavra sagrada através da leitura
prescrita por são Bento.
Reunir-se
para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática necessária e
comum no mundo laico da Idade Média. Até a invenção da imprensa,
a alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos,
privilégio de um pequeno punhado de leitores. Embora alguns desses
senhores afortunados ocasionalmente emprestassem seus livros, eles o
faziam para um número limitado de pessoas da própria classe ou
família. As pessoas que queriam familiarizar-se com determinado
livro ou autor tinham amiúde mais chance de ouvir o texto recitado
ou lido em voz alta do que de segurar o precioso volume nas mãos.
Havia
diferentes maneiras de ouvir um texto. A partir do século XI, em
todos os reinos da Europa joglars itinerantes recitavam ou
cantavam versos deles mesmos ou de autoria dos mestres trovadores,
armazenados em suas prodigiosas memórias. Esses joglars eram
artistas públicos que se apresentavam em feiras e mercados, bem como
diante das cortes. Eram, em sua maioria, de origem pobre e em geral
negavam a eles a proteção da lei e os sacramentos da Igreja. Os
trovadores, como Guilaume da Aquitânia, avô de Eleanora, e Bertran
de Born, senhor de Hautefort, descendiam de linhagens nobres e
escreviam canções formais em louvor de seus amores inatingíveis.
Dos cerca de cem trovadores conhecidos pelo nome que atuaram entre o
começo do século XII e o início do século XIII, quando floresceu
essa moda, cerca, de vinte eram mulheres. Parece que em geral os
joglars eram mais populares que os trovadores, de tal forma
que artistas com pretensões intelectuais, como Pedro Pictor,
queixavam-se de que “alguns dos altos eclesiásticos preferem ouvir
os versos tolos de um jogral às estrofes bem compostas de um poeta
latino sério” – querendo referir-se a si mesmo.
Ouvir
a leitura de um livro era uma experiência um tanto diferente. O
recital dos jograis tinha todas as características óbvias de uma
representação teatral, e seu sucesso ou fracasso dependia, em larga
medida, da capacidade do intérprete de variar expressões, uma vez
que o tema era bastante previsível. Ao mesmo tempo em que dependia
também da capacidade de “desempenho” do leitor, a leitura
pública punha mais ênfase no texto do que no leitor. A plateia dos
recitais observaria um jogral cantar as canções de determinado
trovador, como o célebre Sordelo; a plateia de uma leitura pública
podia ouvir a anônima História de Renard, a raposa lida por
qualquer membro alfabetizado da casa.
Nas
cortes, e às vezes também em casas mais humildes, os livros eram
lidos em voz alta para familiares e amigos, tanto com finalidade de
instrução quanto de entretenimento. As leituras ao jantar não
tinham a intenção de distrair das alegrias do paladar; ao
contrário, pretendiam realçá-las com diversão criativa, uma
prática trazida dos tempos do Império Romano. Plínio, o Jovem,
mencionou em uma carta que, quando comia com sua mulher ou com um
grupo pequeno de amigos, gostava que lessem em voz alta um livro
divertido?
No
início do século XIV, a condessa Mahaut de Artois viajava com sua
biblioteca em grandes malas de couro, e, à noite, uma dama de
companhia lia para ela obras filosóficas ou relatos interessantes
sobre terras estrangeiras, como as Viagens de Marco Polo. Pais
alfabetizados liam para seus filhos. Em 1399, o notário toscano Ser
Lapo Mazzei escreveu a um amigo, o mercador Francesco di Marco
Datini, pedindo-lhe emprestado As pequenas flores de são
Francisco, a fim de lê-lo em voz alta para os filhos: “Os
meninos vão se deliciar nas noites de inverno, pois se trata, como
sabes, de leitura muito fácil”. Em Montail ou, no começo do
século XIV, Pierre Clergue, o pároco da aldeia, lia em voz alta, em
diferentes ocasiões, um assim chamado Livro da fé dos hereges,
para os que se sentavam em torno da lareira na casa das pessoas; na
aldeia de Ax-les-Thermes, mais ou menos na mesma época, o camponês
Guil aume Andorran, descoberto lendo um evangelho herético para sua
mãe, foi processado pela Inquisição.
Os
Évangiles des quenouilles [Evangelhos das rocas] do século
XV mostram quão fluidas podiam ser essas leituras informais. O
narrador, um velho letrado, “uma noite, depois da ceia, durante as
longas noites de inverno entre o Natal e a Candelária”, visita a
casa de uma anciã, onde várias vizinhas reúnem-se amiúde para
“fiar e conversar sobre muitas coisas alegres e sem importância”.
As mulheres, observando que os homens de seu tempo “escrevem
incessantemente pasquins difamatórios e livros infecciosos contra a
honra do sexo feminino”, pedem ao narrador que frequente suas
reuniões – uma espécie de grupo de leitura avant la lettre –
e funcione como escrivão, enquanto as mulheres leem em voz alta
certos trechos sobre os sexos, casos de amor, relações entre marido
e mulher, superstições e costumes locais, bem como tecem
comentários sobre eles de um ponto de vista feminino. “Uma de nós
começará a leitura e lerá alguns capítulos para todas as outras
presentes”, explica uma das fiandeiras com entusiasmo, “de tal
forma a prendê-los e fixá-los permanentemente em nossas memórias.”
Durante seis dias as mulheres leem, interrompem, comentam, fazem
objeções e explicam, parecendo divertir-se imensamente, a ponto de
o narrador achar a descontração delas cansativa, e, embora
registrando fielmente suas palavras, julga que seus comentários “não
têm rima nem razão”. O narrador, sem dúvida, está acostumado
com as dissertações escolásticas mais formais dos homens. [...]
Alberto Manguel, in História da leitura
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