quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Chico Buarque de Holanda

Haverá universos paralelos? Perante as variadas “provas” apresentadas ao tribunal da opinião pública pelos autores que se dedicam à ficção científica, não é difícil acreditar que sim, ou, pelo menos, estar de acordo em conceder à temerária hipótese aquilo que não se nega a ninguém, isto é, o benefício da dúvida. Ora, supondo que realmente existam esses tais universos paralelos, será lógico e creio que inevitável ter de admitir igualmente a existência de literaturas paralelas, de escritores paralelos, de livros paralelos. Um espírito sarcástico não deixaria de recordar-nos que não se necessita ir tão longe para encontrar escritores paralelos, mais conhecidos por plagiários, os quais, no entanto, nunca chegam a ser plagiários de todo porque alguma coisa da lavra própria se sentem na obrigação de pôr na obra que assinarão com o seu nome. Plagiário absoluto foi aquele Pierre Menard que, no dizer de Borges, copiou o Quixote palavra por palavra, e mesmo assim o mesmo Borges nos advertiu que escrever o termo justiça no século XX não significa a mesma coisa (nem é a mesma justiça) que tê-la escrito no século XVII… Outro tipo de escritor paralelo (também chamado nègre ou, mais modernamente, ghost) é aquele que escreve para que outros gozem a suposta ou autêntica glória de ver o seu nome escrito na capa de um livro. Disto trata, aparentemente, o romance — Budapeste — de Chico Buarque de Holanda, e se digo “aparentemente” é porque o escritor “fantasma” cujas grotescas aventuras vamos acompanhando divertidos, se bem que ao mesmo tempo apiedados, é tão-somente a causa inconsciente de um processo de repetições sucessivas que, se não chegam a ser de universos nem de literaturas, sem dúvida o serão, inquietantemente, de autores e de livros. O mais desassossegador, porém, é a sensação de vertigem contínua que se apoderará do leitor, que em cada momento saberá onde estava, mas que em cada momento não sabe onde está. Sem parecer pretendê-lo, cada página do romance expressa uma interpelação “filosófica” e uma provocação “ontológica”: que é, afinal, a realidade? o que e quem sou eu, afinal, nisso que me ensinaram a chamar realidade? Um livro existe, deixará de existir, existirá outra vez. Uma pessoa escreveu, outra assinou, se o livro desapareceu, também desapareceram ambas? E se desapareceram, desapareceram de todo, ou em parte? Se alguém sobreviveu, sobreviveu neste, ou noutro universo? Quem serei eu, se tendo sobrevivido, não sou já quem era? Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro.
23 de outubro de 2008

José Saramago, in O caderno

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