quarta-feira, 17 de agosto de 2022

1. Com quem vamos?


Um bongo remonta o Arauca bordeando os barrancos da margem direita.
Dois bogas o fazem avançar mediante uma lenta e penosa manobra de galeotes. Insensíveis ao tórrido sol, os bronzeados corpos suados, apenas cobertos por umas imundas calças arregaçadas até as coxas, alternadamente afundam no lodo do rio longas alavancas, cujos cabos superiores se apoiam contra as duras almofadas dos robustos peitorais e encurvados pelo esforço, dão impulso à embarcação, passando-a sob os pés de proa a popa, com pausados passos laboriosos, como se marchassem por ela. E enquanto um vem em silêncio, ofegante sobre sua haste, o outro volta ao ponto de partida retomando a prosa intermitente com que entretêm a dura faina, ou entoando, depois de um ruidoso respiro de alívio, alguma intencionada quadra que aluda aos trabalhos por que passa um bonguero, léguas e léguas de duras voltas, à força de alavancas, ou apoiando-se, nos intervalos, nos ramos da vegetação ribeirinha.
Na cabine, governa o patrão, velho conhecedor dos rios e canais da llanura apureña, com a mão direita no remo de direção, atento ao risco das correntezas que se formam por entre os troncos que obstruem o curso, vigilante ao movimento de água que denunciasse a presença de algum jacaré à espreita.
A bordo vão dois passageiros. Debaixo do toldo, um jovem a quem a estrutura vigorosa, sem ser atlética, e as feições enérgicas e expressivas dão uma galhardia quase arrogante. Seu aspecto e sua indumentária denunciam o homem da cidade, cuidadoso da boa aparência. Como se, em seu espírito, combatessem dois sentimentos contrários acerca das coisas que o rodeiam, aos poucos a repousada altivez de seu rosto se anima com uma expressão de entusiasmo e lhe brilha o olhar vivaz na contemplação da paisagem; porém, em seguida, franze o cenho, e a boca se contrai em um gesto de desalento.
Seu companheiro de viagem é um desses homens inquietantes, de feições asiáticas, que fazem pensar em alguma semente tártara caída na América quem sabe quando ou como. Um tipo de raças inferiores, cruéis e sombrias, completamente diferente dos moradores da llanura. Vai deitado fora da lona, sobre seu poncho, e finge dormir; porém nem o patrão nem os remadores o perdem de vista.
Um sol cegante, de meio dia llanero, cintila nas águas amarelas do Arauca e sobre as árvores que povoam suas margens. Por entre as clareiras, que a espaços rompem a continuidade da vegetação, divisam-se, à direita, as calcetas do vale do Apure — pequenas savanas rodeadas de chaparrais e palmeiras—, e, à esquerda, os bancos do vasto vale do Arauca— pradarias estendidas até o horizonte—, sobre a verdura de pastos que apenas se mancham por um ou outro gado errante. No profundo silêncio ressoam, monótonos, exasperantes já, os passos dos remadores pela cobertura do bongo. De vez em quando, o patrão emboca um caracol e lhe arranca um som bronco e queixoso que vai morrer no fundo das mudas solidões circundantes, e então se alça dentro da mata ribeirinha a desagradável algazarra das chenchenas, ou se escuta, depois das curvas o rumor dos precipitados mergulhos dos jacarés que dormitam ao sol das desertas praias, donos terríveis do largo, mudo e solitário rio.
Acentua-se o mormaço do meio dia, perturba os sentidos o cheiro de lama que exalam as águas quentes, cortadas pelo bongo. Os remadores já não cantam nem entoam quadras. Paira sobre o espírito a esmagadora impressão do deserto.
Já estamos chegando ao pau-de-água— disse por fim o patrão, dirigindo-se ao passageiro da lona e apontando uma árvore gigante—. Debaixo desse pau você pode almoçar confortavelmente e tirar uma boa sonequinha.
O passageiro inquietante entreabre as pálpebras oblíquas e murmura:
Daqui ao passo do Bramador não falta nada, e ali sim a soneca é saborosa.
Ao senhor, que é quem manda no bongo, não lhe interessa a soneca do Bramador— responde asperamente o patrão, aludindo ao passageiro do toldo.
O homem o olha de soslaio e logo conclui, com uma voz que parecia aderir-se ao sentido, branda e pegajosa como o lodo dos atoleiros da llanura:
Pois então eu não disse nada, patrão.
Santos Luzardo volta rapidamente a cabeça. Esquecido já de que tal homem ia no bongo, reconheceu agora, de repente, aquela voz singular.
Foi em San Fernando onde pela primeira vez a ouviu, ao atravessar o corredor de uma mercearia. Conversavam ali de coisas de seu ofício alguns peões de gado, e o que nesse momento tinha a palavra se interrompeu de repente para dizer depois:
Esse é o homem.
A segunda vez foi em uma das pousadas do caminho. O calor sufocante da noite o havia obrigado a sair ao pátio. Em um dos corredores, dois homens se mexiam em suas redes e um deles concluía desta maneira o relato que fazia ao outro:
Eu o que lhe fiz foi puxar o facão. O resto foi o defunto que fez: ele mesmo foi cravando assim devagarinho como se gostasse do frio do ferro..
Finalmente, na noite anterior. Por seu cavalo ter-se fatigado, quase chegando na pousada por onde atravessaria o Arauca, viu-se obrigado a pernoitar nela, para continuar a viagem no dia seguinte em um bongo que, na hora, tomava ali uma carga de couros para San Fernando. Contratada a embarcação e acertada a partida para o amanhecer, já a pegar no sono, ouviu que alguém dizia por ali:
Adiante-se, companheiro, que eu vou ver se me encaixo no bongo.
Foram três imagens claras, precisas, em um relâmpago de memória, e Santos Luzardo tirou esta conclusão que havia de originar à mudança dos propósitos que o levavam ao Arauca: “Este homem vem me seguindo desde San Fernando. Isso da febre não foi mais que um ardil. Como não me ocorreu esta manhã?”
De fato, ao amanhecer daquele dia quando o bongo já se dispunha a abandonar a orla, havia aparecido aquele indivíduo, tiritando sob o poncho com que se abrigava e propondo ao patrão:
Amigo, quer me fazer o favor de alugar uma vaguinha? Necessito de ir até o passo do Bramador e a quentura não permite que me sustente a cavalo. Eu pago bem, sabe?
Sinto, amigo— respondeu o patrão, llanero malicioso, depois de lhe dar uma rápida olhada perscrutadora—. Aqui não há vaga que eu possa alugar, porque o bongo navega pela conta do senhor, que quer ir sozinho.
Porém Santos Luzardo, sem pensar e sem atentar à significativa guinada do bonguero, lhe permitiu embarcar.
Agora o observa de soslaio e se pergunta mentalmente: “A que se propõe este indivíduo? Para preparar-me uma cilada, se é que a isso o mandaram, já se lhe apresentaram oportunidades. Porque juraria que este pertence ao bando de El Miedo. Já vamos saber.”
E pondo em ação o pensamento repentino, disse, em alta voz, ao bonguero:
Diga-me, patrão: você conhece essa famosa dona Bárbara de quem tantas coisas se contam em Apure?
Os remadores cruzaram uma olhada receosa, e o patrão respondeu evasivamente, depois de um tempo, com a frase com que o llanero taimado responde às perguntas indiscretas:
Vou lhe dizer, jovem: eu vivo longe.
Luzardo sorriu compreensivo; porém, insistindo no propósito de sondar o companheiro inquietante, agregou sem perdê-lo de vista:
Dizem que é uma mulher terrível, capitã de uma quadrilha de bandidos, encarregados de assassinar à mão solta a quantos tentem se opor a seus desígnios.
Um brusco movimento da mão direita que manejava o timão fez o bongo saltar, ao mesmo tempo em que um dos remadores, indicando algo que parecia um amontoado de troncos de árvores encalhados na areia da ribeira direita, exclamava, dirigindo-se a Luzardo:
Cuida! Você que queria atirar em jacarés. Olhe como estão naquela ponta de praia.
Outra vez apareceu no rosto de Luzardo o sorriso de inteligência da situação, e, pondo-se de pé, colocou na cara um rifle que levava consigo. Porém, a bala não atingiu nenhum, e os enormes répteis se precipitaram para a água, levantando um fervor de espumas.
Vendo-os mergulhar ilesos, o passageiro suspeitoso, que havia permanecido hermético enquanto Luzardo tratava de sondá-lo, murmurou, com um leve sorriso entre a pelanca do rosto:
Eram só alguns bichos, e todos se foram vivinhos e abanando o rabo.
Porém, só o patrão pôde entender o que dizia e o olhou dos pés à cabeça, como se quisesse medir-lhe no corpo a sinistra intenção daquele comentário. Ele se fez de desentendido, e depois de ter se sentado e espreguiçado com uns movimentos longos e lentos, disse:
Bom. Já estamos chegando ao pau-de-água. E já suei minha quentura. Pena que se tenha acabado. Gostosinha que estava!
Já Luzardo havia sumido em um mutismo sombrio, e nesse tempo o bongo atracava no lugar escolhido pelo patrão para o descanso do meio dia.
Saltaram para a terra. Os remadores cravaram na areia uma estaca, na qual amarraram o bongo. O desconhecido adentrou na espessura do mato, e Luzardo, vendo-o afastar-se, perguntou ao patrão:
Você conhece esse homem?
Conhecer, propriamente, não, porque é a primeira vez que topo com ele; mas, pelos sinais que tenho escutado dos llaneros desses lados, desconfio de que deve de ser um a quem chamam Encantador.
Nisso interveio um dos remadores:
E você não se engana, patrão. Esse é o homem.
E esse Encantador, que espécie de pessoa é?— voltou a interrogar Luzardo.
Pense você o pior que possa pensar de alguém e acrescente ainda uma pitadinha mais, sem medo de carregar a mão — respondeu o bonguero —. Alguém que não é destes lados. Um guate, como os chamamos por aqui. Segundo contam, era um ladrão da montanha de San Camilo, e de lá desceu há uns anos, passando de fazenda em fazenda, por todo o vale do Arauca, até parar na de dona Bárbara, onde trabalha agora. Porque, como diz o ditado: Deus os cria e o diabo os junta. Chamam-no assim como mencionei, por sua ocupação, que é encantar cavalos, como também asseguram que ele sabe as orações que não falham para tirar o bicho dos cavalos e dos bois. Mas para mim, suas verdadeiras ocupações são outras. Essas que você falou agorinha. Que, de verdade, por pouco você não me faz emborcar o bongo. Digo que ele é o segurança preferido de dona Bárbara...
Então não me havia enganado.
No que se enganou mesmo foi em ter oferecido vaga no bongo a esse indivíduo. E permita-me um conselho, porque você é jovem e forasteiro por aqui, pelo que parece: não aceite nunca companheiro de viagem a quem não conheça como a suas mãos. E já que tomei a licença de lhe dar um, vou lhe dar outro também, porque caiu nas minhas graças. Tenha muito cuidado com dona Bárbara. Você vai para Altamira, que é como dizer os arredores dela. Agora sim posso lhe dizer que a conheço. Essa é uma mulher que já fustigou muitos homens, e o que não tropeça com seus cânticos ela endireita com uma beberagem ou o amarra nas pregas das saias, e faz com ele o que quiser, porque também é afeita a encantamentos. E se é com um inimigo, não enche o olho d’água para mandar que tirem de seu caminho qualquer um que o atravesse, e para isso tem o Encantador. Você mesmo o disse. Eu não sei o que você vem buscando por estes lados; mas não está de mais que lhe repita: vá com tento. Essa mulher tem seu cemitério.
Santos Luzardo ficou pensativo, e o patrão, temeroso de ter dito mais do que lhe perguntavam, concluiu, tranquilizador:
Mas como lhe digo isto, também lhe digo aquilo: isso é o que as pessoas contam, mas não há que se fiar muito, porque o llanero é mentiroso de nascença, ainda que seja errado dizê-lo, e até quando conta algo que é verdade exagera tanto que é como se fosse mentira. Além do mais, por agora não há com que se preocupar: aqui temos quatro homens e um rifle, e o Velhinho vem com a gente.
Enquanto eles falavam assim, na praia, Encantador, oculto atrás de uma mata, se inteirava da conversa, ao mesmo tempo em que comia, com a lentidão peculiar de seus movimentos, a ração que levava no alforje.
Nesse tempo, os remadores haviam estendido debaixo do pau-de-água a manta de Luzardo e colocado sobre ela a maletinha onde este levava suas provisões de comer. Logo tiraram do bongo as suas. O patrão se reuniu com eles e, enquanto faziam o frugal almoço à sombra de um paraguatá, foi contando a Santos anedotas de sua vida pelos rios e canais da llanura.
Ao fim, vencido pelo abafamento da hora, ficou em silêncio, e durante longo tempo só se escutou o leve estalido das ondas do rio contra o bongo.
Extenuados pelo cansaço, os remadores se deitaram de barriga para cima na terra e logo começaram a roncar. Luzardo se reclinou contra o tronco do pau-de-água. Sem pensamentos, abrumado pela selvagem solidão que o rodeava, abandonou-se ao torpor da sesta. Quando despertou, o patrão vigilante lhe disse:
Seu bom soninho derrubou você.
Com efeito, já começava a cair a tarde e sobre o Arauca corria um sopro de brisa fresca. Centenas de pontos negros eriçavam a ampla superfície: trompas de arurás e jacarés que respiravam à flor da água, imóveis, adormecidos na morna carícia das turvas ondas. Logo começou a assomar no centro do rio a crista de um jacaré enorme. Boiou por completo, abriu lentamente as pálpebras escamosas.
Santos Luzardo empunhou o rifle e se pôs de pé, disposto a reparar o erro de sua pontaria momentos antes, porém o patrão interveio:
Não atire.
Por que, patrão?
Porque... Porque outro deles pode nos cobrar, se você acerta, ou ele mesmo se o erra. Esse é o torto do Bramador, no qual não entram balas.
E como Luzardo insistisse, repetiu:
Não atire, jovem, me escute.
Ao falar assim, seus olhares haviam se dirigido, com um rápido movimento de advertência, até algo que devia estar detrás do pau-de-água. Santos voltou a cabeça e descobriu Encantador, reclinado no tronco da árvore e aparentemente dormindo.
Deixou o rifle no lugar de onde o havia tirado, rodeou o pau-de-água e, detendo-se ante o homem, o interpelou sem acreditar na simulação de sono:
Quer dizer que você é amigo de se pôr a escutar o que podem estar falando os demais?
Encantador abriu os olhos, lentamente, tal como fizera o jacaré, e respondeu com uma tranquilidade absoluta:
Amigo de pensar minhas coisas calado é o que sou.
Desejaria saber como são as que você pensa fingindo que está dormindo.
Sustentou o olhar que lhe cravava seu interlocutor, e disse:
O senhor tem razão. Esta terra é larga e todos cabemos nela sem necessidade de estorvarmos uns aos outros. Faça o favor de me desculpar por ter vindo me recostar nesta árvore, sabe?
E foi se deitar mais para lá, peito para cima e com as mãos entrelaçadas sob a nuca.
A breve cena foi presenciada com olhares de expectativa pelo patrão e pelos remadores, que haviam despertado ao ouvir vozes, com essa rapidez com que passa do sono profundo à vigília o homem acostumado a dormir entre perigos, e o primeiro murmurou:
Um-hum! Ao engomadinho como que não assustam os fantasmas da savana.
Imediatamente propôs Luzardo:
Quando você quiser, patrão, podemos continuar a viagem. Já descansamos um pouco.
Pois agorinha.
E ao Encantador, com tom imperioso:
Suba, amigo! Já estamos de saída.
Obrigado, meu senhor— respondeu o homem sem mudar de posição —. Lhe agradeço muito que queira me levar até o fim; mas daqui para lá posso ir caminhando pela sombra, como dizem os llaneros quando vão a pé. Não estou muito longe de casa. E não pergunto quanto lhe devo por ter me trazido até aqui, porque sei que as pessoas de sua categoria não costumam cobrar a um pé rapado os favores que lhe fazem. Porém me ponho às suas ordens, sabe? Meu nome é Melquíades Gamarra, para lhe servir. E lhe desejo boa viagem daqui em diante. Sim, senhor!
Santos já se dirigia ao bongo, quando o patrão, depois de haver trocado algumas palavras em voz baixa com os remadores, o deteve, resolvido a afrontar as emergências.
Espere. Eu não deixo esse homem por trás de nós dentro desta mata. Ou ele se vai primeiro, ou nós o levamos no bongo.
Dotado de um ouvido sutilíssimo, Encantador se inteirou.
Não tenha medo, patrão. Eu me vou primeiro que você. E lhe agradeço as boas recomendações que deu de mim. Porque escutei todas, sabe?
E dizendo assim, se levantou, recolheu seu poncho, jogou no ombro o alforje, tudo com uma calma absoluta, e se pôs em marcha pela savana aberta que se estendia mais para lá do bosque ribeirinho.
Embarcaram. Os remadores desamarraram o bongo e, depois de empurrá-lo para o fundo, saltaram a bordo e pegaram suas alavancas, ao mesmo tempo em que o patrão, já empunhava a direção, fez a Luzardo esta pergunta intempestiva:
Você é bom atirador? E perdoe-me a curiosidade.
Pela amostra, muito mau, patrão. Tanto, que você não quis me deixar repetir a experiência. Entretanto, outras vezes já fui mais sortudo.
Sei! — exclamou o bonguero —. Você não é mau atirador. Eu já sabia. Na maneira de colocar o rifle na cara eu descobri, e apesar disso a bala foi dar como a três braçadas do rolo de jacarés.
O melhor caçador também perde a lebre, patrão.
Sim. Mas no seu caso houve outra coisa: você não acertou a mira, contudo é muito bom atirador, porque junto a você havia alguém que não quis que acertasse os jacarés. E se eu lhe tivesse deixado fazer o outro tiro, teria errado também.
Encantador, não é isso? Você acredita, patrão, que esse homem possua poderes extraordinários?
Você está moço e ainda não viu nada. A bruxaria existe. Se eu lhe contasse uma passagem que me contaram deste homem... Vou lhe contar, porque é bom que saiba a que atentar-se.
Cuspiu o tabaco mastigado e já ia começar seu relato, quando um dos remadores o interrompeu, advertindo:
Vamos sozinhos, patrão!
É verdade, rapazes. Até isso é obra do condenado do Encantador. Embiquem para terra outra vez.
Que houve?— inquiriu Luzardo.
Que o Velhinho ficou na terra.
O bongo regressou ao ponto de partida. O patrão tomou de novo o rumo afora, ao mesmo tempo em que perguntava, aumentando a voz:
Com quem vamos?
Com Deus!— responderam-lhe os remadores.
E com a Virgem!— agregou ele. E logo a Luzardo—: Esse era o Velhinho que havia ficado em terra. Por estes rios llaneros, quando se abandona a orla, há que sair sempre com Deus. São muitos os perigos de se emborcar, e se o Velhinho não vai no bongo, o bonguero não vai tranquilo. Porque o jacaré se aproxima sem que se veja nem a pista n’água, e o poraquê e a arraia estão sempre à espreita, e o cardume das piracatingas e dos caribes9, que deixam um cristão em puros ossos, antes que possa chamar a Santíssima Trindade.
Vasto Llano! Imensidão brava! Desertas pradarias sem limites, fundos mudos e solitários rios. Quão inútil soaria o pedido de socorro, ao movimento da cauda do jacaré, na solidão daquelas paragens! Só a fé simples dos bongueros podia ser esperança de ajuda, ainda que fosse a mesma fé rude que os fazia atribuir poderes sobrenaturais ao sinistro Encantador.
Já Santos Luzardo conhecia a pergunta sacramental dos bongueros do Apure; porém agora também podia aplicá-la a si mesmo, pois havia empreendido aquela viagem com um propósito e já estava abraçando outro, completamente oposto.

Rómulo Gallegos, in Dona Bárbara

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