Durante
sua vida, desde o silêncio, você sentiu falta de poder cantar.
Ainda muito pequena, nas noites de jarê, sentava na sala de casa, no
colo de sua avó ou de sua mãe, e cantava o ponto de Santa Bárbara
e do Velho Nagô. Ainda muito cedo seu canto se desfez. E você não
conseguiu fazê-lo ecoar nem mesmo dentro de si. Quando pôde
compreender o que lhe aconteceu, se perguntou: Por que sempre
queremos as coisas que parecem estar mais distantes de nós?
Você
andava atenta aos sons mais sutis. Conseguia saber quando o xanã
estava fazendo seu ninho, ou quando a raposa estava se aproximando
para comer os ovos do galinheiro. Escutava o chocalho da cascavel a
uma distância considerável. Ouvia o canto monótono do
rabo-mole-da-serra ou as unhas grandes do tatu cavando sua toca,
mesmo quando ninguém conseguia. Você parava o que estivesse fazendo
para ouvir o canto do tapaculo e o sentia ressonar, vibrando em seu
próprio corpo. Foi assim que você aplacou o silêncio na solidão
do terreiro quando sua irmã foi embora, ou na casa da beira do Santo
Antônio, depois da morte de Tobias. Ou quando não pôde mais estar
ao lado do seu pai e mestre. A mata a fez forte e sensível, ainda
menina, para reconhecer o movimento do mundo. Uma vez escutou que “o
vento não sopra, é o próprio sopro”.
Pouco
antes de você se calar para sempre, sua mãe chegou da roça e
encontrou um prato de cuscuz pronto. Espantou-se, ao mesmo tempo em
que perguntava quem o havia trazido. Ninguém. “Quem fez esse
cuscuz?” “Eu que fiz.” “Mas você poderia se queimar.” Isso
enterneceu sua mãe e seu pai cansados do trabalho, que agradeceram
pela oferta. A terra era seu tesouro, parte do seu corpo, algo muito
íntimo. Quando ia para a feira, quando caminhava até a cidade com o
corpo acobreado de polpa de buriti sobre o negror da pele, não via a
hora de tomar seu caminho de volta para a fazenda. Não sabia como a
irmã pôde morar naquela desordem de carros, casas e gente. Para ter
qualquer coisa precisava de dinheiro, qualquer coisa. Na terra tinha
o que colher ao alcance das mãos. Se a seca ou a cheia levasse,
comia-se o que sobrava. Comia a farinha de mandioca que faziam ou
colhia as sementes de jatobá para preparar o beiju. Na cidade não
havia terra para revirar, para sentir a ventura, a umidade avisando
que a chuva estava por chegar.
Você,
nesses dias em especial, recordava a sua breve vida com Tobias. O
desconforto que sentiu naquela cama. O alívio ao saber que ele havia
morrido. O túmulo que jazia em ruína, cercado de mato, onde você
não teve desejo de pôr suas mãos uma única vez. Não por rancor,
nem por descaso, mas por entender que aquele foi um erro que deveria
ser suprimido de suas lembranças em definitivo, mesmo que a memória
frustrasse seu querer.
A
melhor coisa que Tobias lhe fez foi devolver, de maneira
involuntária, o punhal de sua avó. Talvez aquele tenha sido o único
propósito de seu erro. Você descobriu, mesmo passados muitos anos,
que guardava igual fascinação pelo brilho da lâmina. Quando pôde
tê-la nas mãos outra vez, se viu em seu reflexo, com o mesmo brilho
nos olhos, a menina e a velha, a inocente e a culpada. O fio de corte
dividiu sua vida a partir daquele ponto, nos tempos que se foram. E
cada vez que o lustrava e observava a sua imagem refletida naquele
espelho sabia que sua vida poderia ser dividida de novo. Como o
umbuzeiro frondoso ou seco, no escasso período das águas ou em todo
o resto do tempo. Como no dia em que, carregada de ódio, riscou a
lâmina na pele do pescoço de Aparecido. A vida quase se dividiu.
Quis proteger Maria Cabocla, a mulher que a tocou com as pontas dos
dedos, que trançou seu cabelo e a fez deitar na cama para descansar
como se fosse uma guerreira amada.
Sofrer,
esse sentimento difícil de exprimir e rejeitado por todos, mas que a
unia de forma irremediável a todo seu povo. O sofrimento era o
sangue oculto a correr nas veias de Água Negra. E como você sofreu
trepando em palmeira de buriti e dendê, estropiando os pés nos
espinhos. Sofreu com seus braços, robustos como os de um soldado,
revirando a terra para semear e colher, mesmo sabendo que nem sempre
colheria e que, quando colhesse, poderia ser levado pelos donos da
fazenda. Arrastando seu andar manco, vigiando a casa e a plantação
dos animais e dos infortúnios. Cuidando do pai que se preparava para
partir. A mágoa que não permitia perdoar a irmã por inteiro, como
nas brincadeiras de infância. Os pesadelos recorrentes quando se
sentia acuada e perseguida, onde o punhal de Donana era a lâmina que
mais uma vez dividia o corpo, o mundo, a terra e nela fazia correr um
rio de sangue.
Você
recorda seu pai arrastando o arado antigo de ferro retorcido, pesado,
rasgando a terra em linhas tortas. Aqueles sulcos onde lançava a
semente do milho. Aquele arado sobre o qual ninguém falava, um
objeto da paisagem, que chegou muito antes dos pioneiros, que ninguém
sabia de onde tinha vindo, manejado pelas mãos dos trabalhadores
mais antigos, dos que vieram de muito longe e sobre os quais não
havia nenhuma história. Dos que abriram a mata muito antes e em suas
mãos conduziram o arado para preparar o campo para a semeadura. Com
suas mãos que talvez tivessem os mesmos nós, as mesmas feridas que
o povo da fazenda escondia. Mãos que abriam a cova com a enxada,
arrancando grandes pedaços de solo e ervas, para nela florescer a
mandioca ou para enterrar um corpo. Mãos separando as folhas das
rezas e dos remédios. A boca, a vela, os sons dos encantados
agitando o ar, os peixes nadando contra a correnteza.
É
quando você pressente e aceita que suas mãos, as mesmas que lavram
a terra de onde se levanta a vida, poderiam ser o amparo ou o
fracasso de toda uma luta. Se escavava por dentro com a ausência do
primo na vida dos sobrinhos, dos pais, da irmã, na sua própria
vida. Ele, como seu pai, que havia lhe dado tanto conhecimento sobre
a história esquecida, sobre os direitos negados. Corroía-se pelo
que lhe fizeram, pelo que poderiam fazer, pelo que queriam retirar de
todos.
Correu
os caminhos de Água Negra. Na mata, nos rios, nos marimbus, em cada
palmo de terra, tentou reconhecer e recordar cada árvore. Sua
memória se tornou um mapa das trilhas e caminhos que conformavam seu
lugar. Precisava conhecer cada declive, cada cova aberta e fechada,
cada movimento da terra, de partida e chegada, cada animal de casa ou
da mata. Saía de manhã, se perdia na exploração de todos os
cantos que alcançava. Voltava suja, exausta, com a roupa cada vez
mais puída. Ninguém perguntava por onde havia andado, não
adiantava, sabiam que não iria responder.
E
os sons, os sons dos animais, das folhas ao vento, do rio correndo,
os sons ecoavam perenes em seu interior. Fossem nas tarefas do dia ou
no sono leve da noite.
Então
sentiu que desde sempre o som do mundo havia sido a sua voz.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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