domingo, 23 de janeiro de 2022

Rio de sangue | 11

Durante sua vida, desde o silêncio, você sentiu falta de poder cantar. Ainda muito pequena, nas noites de jarê, sentava na sala de casa, no colo de sua avó ou de sua mãe, e cantava o ponto de Santa Bárbara e do Velho Nagô. Ainda muito cedo seu canto se desfez. E você não conseguiu fazê-lo ecoar nem mesmo dentro de si. Quando pôde compreender o que lhe aconteceu, se perguntou: Por que sempre queremos as coisas que parecem estar mais distantes de nós?
Você andava atenta aos sons mais sutis. Conseguia saber quando o xanã estava fazendo seu ninho, ou quando a raposa estava se aproximando para comer os ovos do galinheiro. Escutava o chocalho da cascavel a uma distância considerável. Ouvia o canto monótono do rabo-mole-da-serra ou as unhas grandes do tatu cavando sua toca, mesmo quando ninguém conseguia. Você parava o que estivesse fazendo para ouvir o canto do tapaculo e o sentia ressonar, vibrando em seu próprio corpo. Foi assim que você aplacou o silêncio na solidão do terreiro quando sua irmã foi embora, ou na casa da beira do Santo Antônio, depois da morte de Tobias. Ou quando não pôde mais estar ao lado do seu pai e mestre. A mata a fez forte e sensível, ainda menina, para reconhecer o movimento do mundo. Uma vez escutou que o vento não sopra, é o próprio sopro”.
Pouco antes de você se calar para sempre, sua mãe chegou da roça e encontrou um prato de cuscuz pronto. Espantou-se, ao mesmo tempo em que perguntava quem o havia trazido. Ninguém. “Quem fez esse cuscuz?” “Eu que fiz.” “Mas você poderia se queimar.” Isso enterneceu sua mãe e seu pai cansados do trabalho, que agradeceram pela oferta. A terra era seu tesouro, parte do seu corpo, algo muito íntimo. Quando ia para a feira, quando caminhava até a cidade com o corpo acobreado de polpa de buriti sobre o negror da pele, não via a hora de tomar seu caminho de volta para a fazenda. Não sabia como a irmã pôde morar naquela desordem de carros, casas e gente. Para ter qualquer coisa precisava de dinheiro, qualquer coisa. Na terra tinha o que colher ao alcance das mãos. Se a seca ou a cheia levasse, comia-se o que sobrava. Comia a farinha de mandioca que faziam ou colhia as sementes de jatobá para preparar o beiju. Na cidade não havia terra para revirar, para sentir a ventura, a umidade avisando que a chuva estava por chegar.
Você, nesses dias em especial, recordava a sua breve vida com Tobias. O desconforto que sentiu naquela cama. O alívio ao saber que ele havia morrido. O túmulo que jazia em ruína, cercado de mato, onde você não teve desejo de pôr suas mãos uma única vez. Não por rancor, nem por descaso, mas por entender que aquele foi um erro que deveria ser suprimido de suas lembranças em definitivo, mesmo que a memória frustrasse seu querer.
A melhor coisa que Tobias lhe fez foi devolver, de maneira involuntária, o punhal de sua avó. Talvez aquele tenha sido o único propósito de seu erro. Você descobriu, mesmo passados muitos anos, que guardava igual fascinação pelo brilho da lâmina. Quando pôde tê-la nas mãos outra vez, se viu em seu reflexo, com o mesmo brilho nos olhos, a menina e a velha, a inocente e a culpada. O fio de corte dividiu sua vida a partir daquele ponto, nos tempos que se foram. E cada vez que o lustrava e observava a sua imagem refletida naquele espelho sabia que sua vida poderia ser dividida de novo. Como o umbuzeiro frondoso ou seco, no escasso período das águas ou em todo o resto do tempo. Como no dia em que, carregada de ódio, riscou a lâmina na pele do pescoço de Aparecido. A vida quase se dividiu. Quis proteger Maria Cabocla, a mulher que a tocou com as pontas dos dedos, que trançou seu cabelo e a fez deitar na cama para descansar como se fosse uma guerreira amada.
Sofrer, esse sentimento difícil de exprimir e rejeitado por todos, mas que a unia de forma irremediável a todo seu povo. O sofrimento era o sangue oculto a correr nas veias de Água Negra. E como você sofreu trepando em palmeira de buriti e dendê, estropiando os pés nos espinhos. Sofreu com seus braços, robustos como os de um soldado, revirando a terra para semear e colher, mesmo sabendo que nem sempre colheria e que, quando colhesse, poderia ser levado pelos donos da fazenda. Arrastando seu andar manco, vigiando a casa e a plantação dos animais e dos infortúnios. Cuidando do pai que se preparava para partir. A mágoa que não permitia perdoar a irmã por inteiro, como nas brincadeiras de infância. Os pesadelos recorrentes quando se sentia acuada e perseguida, onde o punhal de Donana era a lâmina que mais uma vez dividia o corpo, o mundo, a terra e nela fazia correr um rio de sangue.
Você recorda seu pai arrastando o arado antigo de ferro retorcido, pesado, rasgando a terra em linhas tortas. Aqueles sulcos onde lançava a semente do milho. Aquele arado sobre o qual ninguém falava, um objeto da paisagem, que chegou muito antes dos pioneiros, que ninguém sabia de onde tinha vindo, manejado pelas mãos dos trabalhadores mais antigos, dos que vieram de muito longe e sobre os quais não havia nenhuma história. Dos que abriram a mata muito antes e em suas mãos conduziram o arado para preparar o campo para a semeadura. Com suas mãos que talvez tivessem os mesmos nós, as mesmas feridas que o povo da fazenda escondia. Mãos que abriam a cova com a enxada, arrancando grandes pedaços de solo e ervas, para nela florescer a mandioca ou para enterrar um corpo. Mãos separando as folhas das rezas e dos remédios. A boca, a vela, os sons dos encantados agitando o ar, os peixes nadando contra a correnteza.
É quando você pressente e aceita que suas mãos, as mesmas que lavram a terra de onde se levanta a vida, poderiam ser o amparo ou o fracasso de toda uma luta. Se escavava por dentro com a ausência do primo na vida dos sobrinhos, dos pais, da irmã, na sua própria vida. Ele, como seu pai, que havia lhe dado tanto conhecimento sobre a história esquecida, sobre os direitos negados. Corroía-se pelo que lhe fizeram, pelo que poderiam fazer, pelo que queriam retirar de todos.
Correu os caminhos de Água Negra. Na mata, nos rios, nos marimbus, em cada palmo de terra, tentou reconhecer e recordar cada árvore. Sua memória se tornou um mapa das trilhas e caminhos que conformavam seu lugar. Precisava conhecer cada declive, cada cova aberta e fechada, cada movimento da terra, de partida e chegada, cada animal de casa ou da mata. Saía de manhã, se perdia na exploração de todos os cantos que alcançava. Voltava suja, exausta, com a roupa cada vez mais puída. Ninguém perguntava por onde havia andado, não adiantava, sabiam que não iria responder.
E os sons, os sons dos animais, das folhas ao vento, do rio correndo, os sons ecoavam perenes em seu interior. Fossem nas tarefas do dia ou no sono leve da noite.
Então sentiu que desde sempre o som do mundo havia sido a sua voz.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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