quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Jorge Luis Borges

Imagem: Revista Estante

O sucesso de Jorge Luis Borges na Itália já tem uma história de trinta anos: começa de fato em 1955, data da primeira tradução de Ficciones, sob o título La biblioteca di Babele, nas edições Einaudi, e culmina hoje com a edição completa das obras nos “Meridiani” Mondadori. Se bem me lembro foi Sergio Solmi que, depois de ter lido os contos de Borges em tradução francesa, deles falou com entusiasmo a Elio Vittorini, o qual propôs imediatamente a edição italiana, descobrindo um tradutor apaixonado e com total empatia em Franco Lucentini. A partir de então os editores italianos passaram a disputar a publicação dos livros do escritor argentino, em traduções que agora Mondadori reúne a outros textos que ainda não haviam sido traduzidos; dessa que será a mais completa edição da sua opera omnia hoje existente, vem à luz exatamente nestes dias o primeiro volume, sob a responsabilidade de um fidelíssimo amigo como Domenico Porzio.
O êxito editorial foi acompanhado de um êxito literário que é ao mesmo tempo causa e efeito do primeiro. Penso nas manifestações de admiração por parte de escritores italianos, incluindo aqueles cuja poética mais se distancia dele; penso nas abordagens profundas para uma definição crítica de seu mundo; e penso também e sobretudo na influência que ele teve sobre a criação literária italiana, sobre o gosto e sobre a própria ideia de literatura: podemos dizer que muitos daqueles que escreveram nestes últimos vinte anos, a partir dos que pertencem à minha geração, foram profundamente marcados por ele.
O que determinou esse encontro entre a nossa cultura e uma obra que encerra em si um conjunto de heranças literárias e filosóficas, em parte familiares a nós, em parte insólitas, e as traduz numa chave que certamente era bastante distante das nossas? (Falo de uma distância de então, em relação aos caminhos percorridos pela cultura italiana nos anos 50.)
Só posso responder apelando para minha memória, tratando de reconstruir o que significou para mim a experiência Borges desde o início até hoje. Experiência que tem como ponto de partida e como fulcro dois livros, Ficções e O Aleph, isto é, aquele gênero literário particular que é o conto borgiano, para depois passar ao Borges ensaísta, nem sempre bem distinguível do narrador, e ao Borges poeta, que contém muitas vezes núcleos de conto e em todo caso um núcleo de pensamento, um desenho de ideias.
Começarei pelo motivo de adesão mais geral, isto é, ter reconhecido em Borges uma ideia de literatura como mundo construído e governado pelo intelecto. Esta é uma ideia-contracorrente em relação ao curso principal da literatura mundial do século XX que, todavia, tende para o sentido oposto, ou seja, quer dar-nos o equivalente do acúmulo magmático da existência, na linguagem, no tecido dos eventos, na exploração do inconsciente. Mas existe também uma tendência da literatura do século XX, certamente minoritária, que teve seu defensor mais ilustre em Paul Valéry — e penso sobretudo no Valéry prosador e pensador —, que aponta para uma revanche da ordem mental sobre o caos do mundo. Poderia tentar identificar os traços de uma vocação italiana nesta direção, do Duzentos ao Renascimento, ao Seiscentos, ao Novecentos, para explicar como descobrir Borges para nós foi ver realizada uma potencialidade almejada desde sempre: ver tomar forma um mundo à imagem e semelhança dos espaços do intelecto, habitado por um zodíaco de signos que correspondem a uma geometria rigorosa.
Mas talvez para explicar a adesão que um autor suscita em cada um de nós, ao invés de partir de grandes classificações gerais, é preciso partir de razões mais precisamente conexas com a arte de escrever. Dentre estas colocarei à frente a economia da expressão: Borges é um mestre do escrever breve. Ele consegue condensar em textos sempre de pouquíssimas páginas uma riqueza extraordinária de sugestões poéticas e de pensamento: fatos narrados ou sugeridos, aberturas vertiginosas para o infinito, e ideias, ideias, ideias. Como tal densidade se realiza sem a mínima congestão, no período mais cristalino, sóbrio e arejado; como o narrar sinteticamente e enviesado conduz a uma linguagem toda precisão e concretude, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, dos adjetivos sempre inesperados e surpreendentes, isso é um milagre estilístico, sem igual na língua espanhola, de que só Borges tem o segredo.
Lendo Borges, me veio repetidas vezes a tentação de formular uma poética do escrever breve, louvando suas vantagens em relação ao escrever longo, contrapondo as duas ordens mentais que a inclinação para um ou para o outro pressupõe, por temperamento, por ideia da forma, por substância dos conteúdos. Por enquanto me limitarei a dizer que a verdadeira vocação da literatura italiana, como aquela que custodia os seus valores no verso ou na frase em que cada palavra é insubstituível, se reconhece mais no escrever breve que no escrever longo.
Para escrever breve, a invenção fundamental de Borges, que foi também a invenção de si mesmo como narrador, o ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que o impedia, até cerca dos quarenta anos, de passar da prosa ensaística para a prosa narrativa, fingiu que o livro que desejava escrever já estivesse escrito, escrito por um outro, por um hipotético autor desconhecido, um autor de uma outra língua, de uma outra cultura, e descreveu, resumiu, resenhou esse livro hipotético. Faz parte da lenda de Borges a anedota de que o primeiro extraordinário conto escrito com essa fórmula, “El acercamiento a Almotásim”, quando apareceu na revista Sur, foi encarado de fato como uma recensão de um livro de autor indiano. Assim como faz parte das passagens obrigatórias da crítica sobre Borges observar que cada texto dele duplica ou multiplica o próprio espaço através de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real, leituras clássicas, eruditas ou simplesmente inventadas. O que mais me interessa anotar aqui é que nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura como extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usar um termo que será desenvolvido mais tarde na França, mas cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones, nos estímulos e formas daquelas que poderiam ter sido as obras de um hipotético Herbert Quain.
Que para Borges só a palavra escrita tenha plena realidade ontológica e que as coisas do mundo existam para ele somente enquanto remetem a coisas escritas, foi dito muitas vezes; o que desejo sublinhar aqui é o circuito de valores que caracteriza essa relação entre mundo da literatura e mundo da experiência. O vivido é valorizado por quanto ele irá inspirar na literatura ou por quanto, a seu modo, repete arquétipos literários: por exemplo, entre uma empresa heroica ou temerária num poema épico e uma empresa análoga vivida na história antiga ou contemporânea existe uma troca que conduz a identificar e comparar episódios e valores do tempo escrito e do tempo real. Nesse quadro se situa o problema moral, sempre presente em Borges como um núcleo sólido na fluidez e potencial de intercâmbio dos cenários metafísicos. Para esse cético que parece degustar equanimemente filosofias e teologias só por seu valor espetacular e estético, o problema moral se representa tal e qual de um universo a outro em suas alternativas elementares de coragem e de vileza, de violência provocada ou sofrida, de busca da verdade. Na perspectiva borgiana, que exclui qualquer espessura psicológica, o problema moral aflora simplificado quase nos termos de um teorema geométrico, em que os destinos individuais formam um desenho geral que toca a cada um reconhecer menos ainda que escolher. Mas é no tempo rápido da vida real, não no tempo flutuante do sonho, não no tempo cíclico ou eterno do mito, que as sortes se decidem.
E aqui convém lembrar que do epos de Borges não faz parte somente aquilo que se lê nos clássicos, mas também a história argentina, que em alguns episódios se identifica com a sua história familiar, com os feitos de armas de seus antepassados militares nas guerras da jovem nação. No “Poema conjectural”, Borges imagina dantescamente os pensamentos de um ancestral seu na linha materna, Francisco Laprida, enquanto jaz num pântano, ferido após uma batalha, caçado pelos gauchos do tirano Rosas, e reconhece o próprio destino na morte de Buonconte da Montefeltro assim como a relembra Dante no canto V do Purgatório. Observou Roberto Paoli, numa pontual análise dessa poesia, que Borges bebe, mais ainda que no episódio de Buonconte explicitamente citado, num episódio contíguo do mesmo canto V do Purgatório, o de Jacopo del Cassero. A osmose entre fatos escritos e fatos reais não poderia ter uma exemplificação melhor: o modelo ideal não é um evento mítico anterior à expressão verbal, e sim o texto como tecido de palavras, imagens e significados, composição de motivos que se respondem, espaço musical em que um tema desenvolve as suas variações.
Existe uma poesia ainda mais significativa para definir essa continuidade borgiana entre acontecimentos históricos, epos, transfiguração poética, sucesso dos motivos poéticos e sua influência sobre o imaginário coletivo. E é também essa uma poesia que nos toca de perto porque nela se fala do outro poema italiano que Borges frequentou intensamente, o de Ariosto. A poesia se intitula “Ariosto e os árabes”. Aqui, Borges passa em revista o epos carolíngio e o bretão que confluem no poema de Ariosto, o qual sobrevoa esses motivos da tradição montado no hipogrifo, isto é, dele apresenta uma transfiguração fantástica, ao mesmo tempo irônica e cheia de pathos. O êxito do Orlando furioso propaga os sonhos das lendas heroicas medievais na cultura europeia (Borges cita Milton como leitor de Ariosto), até o momento em que aqueles que tinham sido os sonhos dos exércitos adversários de Carlos Magno, isto é, do mundo árabe, não passam a predominar: As mil e uma noites conquistam os leitores europeus, ocupando o lugar que Orlando furioso tinha no imaginário coletivo. Existe portanto uma guerra entre os mundos fantásticos do Ocidente e do Oriente que prolonga a guerra histórica entre Carlos Magno e os sarracenos, e é ali que o Oriente encontra a sua revanche.
Assim, o poder da palavra escrita se liga ao vivido como origem e como fim. Como origem porque se torna o equivalente de um acontecimento que de outra maneira ficaria como não tendo ocorrido; como fim porque para Borges a palavra escrita que conta é aquela que tem um forte impacto sobre a imaginação, enquanto figura emblemática ou conceitual, feita para ser lembrada e reconhecida em qualquer aparição passada ou futura.
Esses núcleos míticos ou arquetípicos, que provavelmente podem ser reduzidos a um número finito, se destacam contra o fundo desmesurado dos temas metafísicos mais caros a Borges. Em cada texto, por todos os meios, Borges fala do infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea ou da dimensão cíclica dos tempos. E aqui retomo o que dizia antes sobre a máxima concentração dos significados na brevidade dos seus textos. Consideremos um exemplo clássico da arte borgiana: seu conto mais famoso, “El jardín de senderos que se bifurcan”. O enredo evidente é o de um conto de espionagem convencional, um enredo aventuroso condensado numa dúzia de páginas e um pouco forçado para chegar a um final surpresa. (O epos que Borges utiliza compreende também as formas da narrativa popular.) Esse conto de espionagem inclui um outro conto, em que o suspense é de tipo lógico-metafísico e o ambiente é chinês: trata-se da pesquisa de um labirinto. Nesse conto está incluída, por sua vez, a descrição de um interminável romance chinês. Porém, aquilo que mais conta nesse novelo narrativo compósito é a meditação filosófica sobre o tempo em que se desenrola, ou melhor, as definições das concepções do tempo que aí são sucessivamente enunciadas. Percebemos no final que, sob a aparência de um thriller, é um conto filosófico, ou melhor, um ensaio sobre a ideia do tempo aquilo que acabamos de ler.
As hipóteses sobre o tempo que são formuladas no “Jardim de caminhos que se bifurcam”, cada uma contida (e quase oculta) em poucas linhas, são: uma ideia de tempo pontual, como um presente subjetivo absoluto (“…refleti que todas as coisas, a cada um, acontecem precisamente, precisamente agora. Séculos e séculos, e só no presente acontecem os fatos; inumeráveis homens no ar, na terra e no mar, e tudo isso que realmente acontece, acontece comigo…”); depois uma ideia de tempo determinado pela vontade, o tempo de uma ação decidida de uma vez por todas, em que o futuro se apresente irrevogável como o passado; e enfim a ideia central do conto: um tempo plural e ramificado em que cada presente se bifurca em dois futuros, de modo a formar “uma rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”. Essa ideia de infinitos universos contemporâneos em que todas as possibilidades sejam realizadas em todas as combinações possíveis não é uma digressão do conto, mas a própria condição para que o protagonista se sinta autorizado a executar o crime absurdo e abominável que a sua missão de espionagem lhe impõe, certo de que isso ocorre só num dos universos mas não nos outros, ou melhor, que, executando-o aqui e agora, ele e a sua vítima possam reconhecer-se amigos e irmãos em outros universos.
Uma tal concepção do tempo múltiplo é cara a Borges porque é aquela que reina na literatura, ou melhor, é a condição que torna a literatura possível. O exemplo que estou a ponto de apresentar nos leva de novo a Dante, e é um ensaio de Borges sobre Ugolino della Gherardesca, e mais precisamente sobre o verso “Porcia, più che il dolor, poté il digiuno” [Depois, mais que a dor, pôde o jejum], e sobre aquela que foi definida a “inútil controvérsia” sobre o possível canibalismo do conde Ugolino. Após passar em revista a opinião de muitos dos comentadores, Borges concorda com a maioria deles de que o verso deve ser entendido no sentido da morte de Ugolino por inanição. Mas ele acrescenta: de que Ugolino pudesse devorar os próprios filhos, Dante, mesmo sem querer que acreditássemos nisso para valer, pretendeu provocar a suspeita “com incerteza e tremor”. E Borges arrola todas as alusões canibalescas que se sucedem no canto XXXIII do Inferno, a começar pela visão inicial de Ugolino roendo o crânio do arcebispo Ruggieri.
O ensaio é importante pelas considerações gerais com que se encerra. Em particular aquela (que é uma das afirmações de Borges que mais coincidem com o método estruturalista) sobre o texto literário que consiste exclusivamente na sucessão de palavras que o compõem, razão pela qual “de Ugolino devemos dizer que é um tecido verbal, que consiste em cerca de trinta tercetos”. Depois, aquela que se liga às ideias muitas vezes sustentadas por Borges sobre a impessoalidade da literatura para argumentar que “Dante não soube de Ugolino muito mais do que os seus tercetos registram”. E finalmente a ideia à qual desejava chegar, que é a do tempo múltiplo:

No tempo real, na história, toda vez que um homem se encontra perante diversas alternativas, opta por uma e elimina e perde as outras; não é assim no tempo ambíguo da arte, que se assemelha ao da esperança e do esquecimento. Hamlet, em tal tempo, é são da cabeça e é doido. Nas trevas da torre da Fome, Ugolino devora e não devora os corpos dos filhos amados, e esta imprecisão ondulante, esta incerteza é a estranha matéria de que ele é feito. Assim, em duas agonias possíveis, foi sonhado por Dante, e assim o sonham as gerações vindouras.

Esse ensaio está contido num livro publicado em Madri há dois anos e ainda não traduzido na Itália, reunindo os ensaios e as conferências de Borges sobre Dante: Nueve ensayos dantescos. O estudo assíduo e apaixonado do texto capital de nossa literatura, a participação umbilical com que ele fez frutificar a herança dantesca na meditação crítica e na originalidade da obra criativa é uma das razões, certamente não a última, pela qual Borges é festejado aqui e por que lhe exprimimos ainda uma vez comovidamente e com afeto o nosso reconhecimento pelo maná que continua a dar-nos.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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