Querida vó Antônia,
Minhas
lembranças de você têm gosto de manga verde e doce de abóbora.
Têm cheiro de feijão e jantar às seis da tarde. Você me adoçava
a boca e benzia a alma. “É cobreiro, tem que benzer.” Ou: “Essa
menina está aguada, dê o que ela quer comer”. Eu amava passar
minhas férias na sua casa, sentir o amor em sua melhor forma.
Guardo
na memória os mimos, as broncas na minha mãe quando ela brigava
comigo, o cheiro do Yamasterol no cabelo. As mesadas que me dava
escondido, os passeios com o tio Edson. Como meus pais não tinham
carro, uma das minhas maiores alegrias era saber que o tio Edson
estava indo a Santos me buscar para passar férias com você em
Piracicaba. Lá em casa, só quem passava de ano direto tinha esse
benefício. Muitas vezes fui sozinha, sem Denis, Helder e Dara — o
que eu adorava, confesso, pois sem meus irmãos por perto teria você
só pra mim. Quando Dara ia, a gente não somente disputava sua
atenção, mas também disputava para ver quem atenderia aquele
telefone bonito que você tinha. A vencedora sempre acabava caçoando
da perdedora.
Como
morava em apartamento, eu adorava brincar pela sua casa, vó, correr
pelo quintal, subir nas árvores, fugir dos meus primos que colocavam
cigarras no bolso para meter medo em mim. “Parem de assustar sua
prima”, você dizia. Eu admirava sua coragem em acender uma tocha
de fogos para queimar a casa que os marimbondos insistiam em
construir na entrada da sua casa no bairro São Dimas. “Quando
algum te picar, quero ver você sentir pena”, dizia quando eu
lamentava a morte dos bichos. Aliás, foi numa dessas férias com
você que eu fui picada pela primeira vez por uma abelha. Voltei
chorando para casa, aos berros, e você gritando “O que foi,
menina?”. Foi toda uma operação de guerra para conseguir tirar o
ferrão.
Depois,
você passou uma mistura de ervas que fez meu braço desinchar
rápido, e logo eu estava na rua de novo.
Lembro
das idas ao supermercado, onde eu podia comprar tudo o que eu
quisesse. “Minha neta de Santos está aqui”, você dizia para as
vizinhas quando ia comprar pão. Ficava tão orgulhosa, tão animada.
Nem bronca você conseguia dar direito em mim. Uma vez, quando eu era
adolescente e minha mãe me pegou fumando, ela fez um baita drama.
Reagi: “Você também fuma, mãe!”, e dona Erani ficou sem
respostas — o que era raro, você sabe. Uma das saídas que ela
encontrou foi dizer que se você estivesse viva me daria uma bronca.
É claro que você não gostaria de saber que eu estava fumando, mas
eu sabia que somente me diria para não fazer mais. Eu não gostava
de fumar, só queria entrar na moda dos cigarros com gosto de canela.
Logo
após esse flagra, fui passar férias em Piracicaba, e minha mãe
encarregou o tio Edson de brigar comigo. O máximo que ele conseguiu
falar, enquanto eu lavava a louça, foi: “E o cigarrinho?”. Eu
entendi o recado, não respondi, e ele não voltou a tocar no
assunto. No dia seguinte, meu tio e eu combinamos de mentir que eu
havia levado o maior sermão para agradar minha mãe. Ainda bem que
ela nunca soube a verdade. Dona Erani sempre dizia que eu levava todo
mundo no bico.
Lembro
também, vó, de seu colo quente e amoroso, das suas mãos rápidas
que benziam meu corpo enquanto sussurrava rezas quase
incompreensíveis. As mesmas mãos que benziam eram as que preparavam
comidas fartas e apetitosas no domingo. Que saudade de suas mãos
lindas, mãos com história, com calos, mas macias ao acarinhar e
trançar meus cabelos. Hoje tento entender o significado de certo
mistério que te envolvia. As histórias de ninar que você me
contava, tão doces e delicadas, contrastavam com aquelas que minha
mãe contava sobre você, histórias que falavam de uma mulher brava,
que batia nos filhos, “atirava tudo o que via pela frente”.
(Aliás, minha mãe detestava o nome Erani Benedita e não fazia a
mínima cerimônia em dizer isso. Ser chamada de “Ditona” na
infância a aborreceu. Bom, você sabe, minha mãe não perdia
oportunidade de dizer.)
Quando
você ia a Santos nos visitar, eu mal dormia na véspera, de tanta
ansiedade. Como era gostoso tê-la em casa nos mimando. Sempre trazia
na mala presentes para os netos, fazia doces deliciosos para todos,
cuidava para que ninguém brigasse. O que eu mais gostava era ter
você comigo, trançando meus cabelos. Todas as vezes que você ia
embora, eu chorava. Até hoje despedidas são difíceis pra mim.
Com
os tios Edmilson e Edson também era assim. Você deve ficar feliz em
saber que, mesmo após sua morte, eles frequentemente iam a Santos
passar as férias com a gente. Em toda despedida, choravam ao abraçar
minha mãe. Você sabe, o tio Dema e o tio Edson eram muito ligados à
irmã. Eram e continuam sendo. Ainda hoje, quando me encontram, eles
se emocionam, dizem que a veem. Conversamos sobre isso sempre que nos
reunimos, quando é possível, hoje menos que antes. A família
cresceu bastante.
Nunca
consegui perguntar a você como foi criar sete filhos com meu avô.
Como foi ser a mãe da Edna, do João, do José Roberto, da Erani
Benedita, do Avelino, do Edson e do Edmilson. Como foi ser a esposa
de José dos Santos. Como você se sentiu ao construir uma boa casa
depois de uma vida inteira trabalhando fora, em casa de família.
Como foi ser a matriarca de uma das poucas famílias negras de São
Dimas, bairro que depois se tornaria de classe média. Como você
lidava com o racismo. Será que pensava sobre isso ou foi forçada a
naturalizá-lo? Eu não tive tempo de lhe perguntar nada disso. Quais
eram os seus sonhos, seus medos.
Um
bicho-barbeiro te picou, e você precisou colocar um marca-passo. Com
a saúde muito fragilizada, aos 68 anos você nos deixou, com muito
ainda para viver. Minha mãe faleceria oito anos depois, ainda mais
jovem que você, com 51 anos e 23 dias.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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