sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Robinson Crusoé, o diário das virtudes mercantis

 


A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoe de York, marinheiro, que viveu vinte e oito anos completamente sozinho numa ilha deserta nas costas da América, próximo à foz do grande rio Orinoco, tendo sido lançado à costa por um naufrágio, no qual todos pereceram menos ele, com um relatório sobre o modo pelo qual foi enfim também estranhamente libertado pelos piratas; escrito por ele mesmo. Lia-se no frontispício da primeira edição do Robinson Crusoe, publicada em Londres, em 1719, por um editor popular: W. Taylor. Não aparecia o nome do autor, pois se devia considerá-lo um verdadeiro livro de memórias escritas pelo náufrago.
Era um momento em que as histórias de mar e de piratas faziam sucesso, e o tema do náufrago na ilha deserta já atraíra o público por um fato realmente ocorrido dez anos antes, quando o capitão Woodes Rogers havia encontrado na ilha de Juan Fernández um homem que vivera sozinho durante quatro anos, um marinheiro escocês, um certo Alexander Selkirk. Assim veio à cabeça de um panfletista em desgraça e sem dinheiro contar uma história do gênero como memórias de um marinheiro desconhecido.
Esse improvisado romancista era um homem de quase sessenta anos, Daniel Defoe (1660-1731), bastante conhecido pelas crônicas políticas da época inclusive por suas condenações ao pelourinho e autor de um mar de escritos de todos os gêneros, assinados ou mais frequentemente anônimos. (Suas bibliografias mais completas reúnem quase quatrocentos títulos, entre libelos de controvérsias religiosas e políticas, poemetos satíricos, livros de ocultismo, tratados históricos, geográficos, econômicos, e romances.)
Nasce, portanto, essa matriz do romance moderno, bem distante do terreno da literatura culta (que tinha então na Inglaterra o seu supremo moderador no classicista Pope): bem no meio do amontoado da produção livreira comercial, que se dirigia a um público de mulherzinhas, pequenos vendedores, garçons, camareiros, marinheiros, soldados. Mesmo visando reforçar os gostos desse público, tal literatura tinha sempre o escrúpulo, talvez não completamente hipócrita, de promover a educação moral, e Defoe não era de modo algum indiferente a essa exigência. Mas não são as pregações edificantes, sempre apressadas e genéricas, com as quais de vez em quando são floreadas as páginas do Robinson, que fazem dele um livro de sólida ossatura moral, mas o modo direto e natural com que um costume e uma ideia da vida, uma relação do homem com as coisas e as possibilidades ao alcance de sua mão se exprimem em imagens.
E não se pode dizer que uma origem tão “prática” de livro projetado como “negócio” desabone aquele que será considerado autêntica bíblia das virtudes mercantis e industriais, a epopeia da iniciativa individual. Nem está em contradição com a vida de Defoe, com sua figura controversa de pregador e aventureiro (primeiro comerciante, homem de confiança em fábricas de meias e de tijolos, envolvido em bancarrotas, fundador e conselheiro do partido whig que apoiava Guilherme de Orange, a favor dos “dissidentes”, preso e salvo pelo ministro Robert Harley, um tory moderado, do qual se tornou porta-voz e agente secreto, fundador e único redator do jornal The Review, razão pela qual foi definido “inventor do jornalismo moderno”; reaproximando-se, após a queda de Harley, do partido whig e depois de novo do tory, até a crise que o transformou em romancista), aquela mescla de aventura, espírito prático e compunção moralista que serão dotes fundamentais do capitalismo anglo-saxão nas duas margens do Atlântico.
Uma veia segura de narrador de ficção já aflorava com frequência nos escritos anteriores de Defoe, especialmente em certas narrativas de fatos da atualidade ou da história, que ele carregava de detalhes fantásticos, e nas biografias de homens ilustres baseadas em testemunhos apócrifos.
Fortalecido com tais experiências, Defoe mergulhou em seu romance. O qual, segundo a impostação autobiográfica, não narra apenas as aventuras do naufrágio e da ilha deserta, mas começa ab ovo e prossegue até a velhice do protagonista, também nisso seguindo um pretexto moralista, de uma pedagogia, para ser franco, demasiado restrita e elementar para ser tomada a sério: a obediência ao pai, a superioridade da condição média, do modesto viver burguês, acima de qualquer miragem de audazes fortunas. É por ter transgredido tais ensinamentos que Robinson se meterá em tantas confusões.

Depois de onze anos de absoluta solidão entre as cabras, os gatos nascidos do casamento daqueles de bordo, os selvagens e o papagaio com o qual ainda pode usar e ouvir palavras inteligíveis, imprevistamente uma pegada na praia lhe provoca terror. Pelo menos dois anos viveu entrincheirado em seu fortim: a ilha é periodicamente visitada por tribos de canibais que chegam de canoa para ali consumir seus desumanos banquetes. Um prisioneiro marcado para morrer tenta a fuga; Robinson o salva matando a golpes de fuzil os perseguidores: será Sexta-Feira, o fiel servidor e discípulo. Um segundo salvamento de canibais acrescenta outros dois súditos à colônia; um náufrago espanhol e um velho selvagem que, quanta casualidade, é o pai de Sexta-Feira. Na ilha desembarca depois um grupo de marinheiros ingleses amotinados que pretendem matar seus oficiais. Uma batalha de astúcias e golpes audaciosos se desenrola na ilha, uma vez libertados os oficiais, para conquistar o navio dos amotinados; com eles Robinson pode finalmente regressar à pátria. Recuperados seus bens no Brasil, de repente se vê riquíssimo, e a organização de seus negócios lhe oferece ainda a ocasião de uma aventura surpreendente: uma travessia hibernal dos Pireneus, com Sexta-Feira; caçador de lobos e ursos.

Igualmente distanciada do inchaço setecentista e do colorido patético que assumirá a narrativa inglesa do Setecentos, a linguagem de Defoe (e aqui a primeira pessoa do marinheiro-comerciante, capaz de dispor em colunas como num livro mestre inclusive o “mal” e o “bem” de sua situação e de manter uma contabilidade aritmética dos canibais mortos, se revela um expediente poético, antes de ser prático) é de uma sobriedade, de uma economia que, à semelhança do estilo “de código civil” de Stendhal, poderíamos definir “de relatório comercial”. Como um relatório comercial ou um catálogo de mercadorias e utensílios, a prosa de Defoe é despojada e ao mesmo tempo detalhada até o mínimo pormenor. O acúmulo de minúcias visa persuadir o leitor da veracidade do relato, mas também exprime do melhor modo possível o sentido da importância de cada objeto, de cada operação, de cada gesto na condição de náufrago (assim como em Moll Flanders e no Coronel Jack por meio da lista de objetos roubados será expressa a ansiedade e a alegria da posse).
Minuciosas até o exagero são as descrições das operações manuais de Robinson: como ele escava a casa na rocha, cerca-a com uma paliçada, constrói um barco que depois não consegue transportar até o mar, aprende a modelar e a cozer vasos e tijolos. Por esse empenho e prazer em descrever as técnicas de Robinson, Defoe chegou até nós como o poeta da paciente luta do homem com a matéria, da humildade e grandeza do fazer, da alegria de ver nascer as coisas de nossas mãos. De Rousseau até Hemingway, todos aqueles que nos indicaram como provas do valor humano o medir-se, o conseguir, o fracassar ao “fazer” uma coisa, pequena ou grande, podem reconhecer em Defoe o primeiro mestre.
Robinson Crusoe é sem dúvida um livro a ser relido linha por linha, fazendo-se sempre novas descobertas. Aquela sua renúncia, em poucas frases, nos momentos cruciais, a todo excesso de autocompaixão ou de júbilo para passar às questões práticas (como quando, tendo acabado de se dar conta de ser o único sobrevivente de toda a equipagem — “de fato, deles não vi mais nenhum traço, exceto três chapéus, um boné e dois sapatos sem par” —, após um rapidíssimo agradecimento a Deus passa a olhar em torno e a estudar a sua situação) pode parecer em contraste com o tom de homilia de certas páginas que virão adiante, depois que uma doença o reconduziu ao pensamento religioso.
Mas a conduta de Defoe é, em Crusoe e nos romances posteriores, bastante similar à do homem de negócios respeitador das normas que na hora do culto vai à igreja e bate no peito, e logo se apressa em sair para não perder tempo no trabalho. Hipocrisia? É demasiado aberto e vital para atrair uma tal acusação; conserva mesmo em suas bruscas alternativas um fundo de saúde e sinceridade que é o seu sabor inconfundível.
Quando encontra no navio parcialmente submerso as moedas de ouro e prata não nos poupa um pequeno monólogo “em voz alta” sobre a inutilidade do dinheiro; mas assim que fecha as aspas do monólogo: “de qualquer modo, pensando bem, levei tudo comigo”.
Por vezes, mesmo a veia do humorismo chega aos campos de batalha das controvérsias político-religiosas da época: como quando assistimos às disputas do selvagem que não pode conceber a ideia do diabo e do marinheiro que não sabe explicá-la. Ou como naquela situação de Robinson, rei de “três súditos isolados que eram de três religiões diferentes. O meu Sexta-Feira era protestante, seu pai pagão e canibal, e o espanhol papista. Contudo, concedi liberdade de consciência em todos os meus domínios”. Porém, isenta do mais tênue matiz irônico como esse, nos vem apresentada uma das situações mais paradoxais e significativas do livro: Robinson, depois de ter suspirado por muitos anos para voltar ao contato com o resto do mundo, toda vez que vê surgir uma presença humana ao redor da ilha, sente os perigos para sua vida redobrarem; e quando sabe da existência de um grupo de náufragos espanhóis numa ilha vizinha tem medo de unir-se a eles, pois teme que desejem entregá-lo às garras da Inquisição.
Também às margens da ilha deserta, portanto, “perto da foz do grande rio Orinoco”, chegam as correntes de ideias, paixões e cultura da época. Certamente, por mais que em seu intento de narrador de aventuras Defoe enfatize o horror das descrições canibalescas, não lhe eram estranhas as reflexões de Montaigne sobre os antropófagos (as mesmas que já haviam deixado sua marca em Shakespeare, na história de uma outra ilha misteriosa, a da Tempestade), sem as quais talvez Robinson não tivesse chegado à conclusão de que “aquelas pessoas não eram assassinas mas homens de uma civilização diferente, que obedeciam às suas leis, não piores que os costumes de guerra do mundo cristão”.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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