quinta-feira, 4 de junho de 2020

Dar tempo ao futuro (trecho)

[…] Escolher o futuro como tema é enfrentar um universo de conflitos e de ambiguidades. Porque o futuro apenas existe numa dimensão fluida, quase líquida. Por vezes, como está ocorrendo agora neste país, ele desponta como se fosse um chão material e concreto. Na maior parte das vezes, porém, ele é frágil e nebuloso como uma linha de horizonte que se desfaz quando nos tornamos mais próximos. No conflito entre expectativa e realidade é comum o sentimento de desapontamento que faz pensar que, no passado, o futuro já foi melhor. Na realidade, no momento atual e global muitos de nós deixamos simplesmente de querer saber do futuro. E parece recíproco: o futuro também não quer saber de nós.
Estamos tão entretidos em sobreviver que nos consumimos no presente imediato. Para uma grande maioria, o porvir tornou-se um luxo. Fazer planos a longo prazo é uma ousadia a que a grande maioria foi perdendo direito. Fomos exilados não de um lugar. Fomos exilados da atualidade. E por inerência, fomos expulsos do futuro.
Esta é a condição não apenas de milhões de pessoas, mas de muitos países do nosso continente e do mundo inteiro. O amanhã tornou-se demasiado longe. Mais do que longínquo, tornou-se improvável. Mais do que improvável, tornou-se impensável.
Esta ausência de perspectiva histórica não pode ser atribuída apenas a regimes e governos. O que alguns, maus políticos, fizeram foi reafirmar algo que já existia antes: um profundo alheamento em relação à nossa condição de temporários viajantes do Tempo. O descrédito político gerou o cinismo com que hoje olhamos a gestão do nosso quotidiano.
Todavia, a dificuldade de ver o futuro é, no nosso caso, muito anterior à desilusão política. Esse alheamento resulta de uma filosofia própria do mundo rural africano, em que o Tempo é entendido como uma entidade circular. Nesse universo apenas o presente é credenciado. A ideia de um tempo redondo não é uma categoria exclusivamente africana, mas de todas as sociedades que vivem sob o domínio da lógica da oralidade. Foi a escrita que introduziu a ideia de um tempo linear, fluido e irreversível como a corrente de um rio. Nos casos de Angola e Moçambique, contudo, a lógica da escrita é ainda um universo restrito. Politicamente hegemônico, mas dominado do ponto de vista da representação que fazemos do mundo.
Para a oralidade, só existe o que se traduz em presença. Só é real aquele com quem podemos falar. Os próprios mortos não se convertem em passado, porque eles estão disponíveis a, quando convocados, se tornarem presentes. Em África, os mortos não morrem. Basta uma evocação e eles emergem para o presente, que é o tempo vivo e o tempo dos viventes.
Não quero perder-me em meandros filosóficos. Mas grande parte dos moçambicanos (e imagino dos angolanos) lida com categorias de tempo bem diversas daquela que norteia uma empresa de seguros. Para essas culturas, o futuro não só não tem nome como a sua nomeação é interdita. Na maior parte das línguas moçambicanas há palavra para dizer “amanhã” —
É evidente que, no universo urbano, estes conceitos são reconstruídos e o peso da oralidade vai-se tornando outro. Todavia, mudar de conceitos sobre o tempo leva tempo. E quem fala de tempo fala da espera e da sua irmã gêmea, a esperança.
Infelizmente foi-se generalizando uma atitude de descrença. O acumular de crises e o compensar dos crimes contra a ética convidam-nos a uma desistência da alma. Todos os dias uma silenciosa mensagem nos sugere o seguinte: o futuro não vale a pena. Há que viver o dia-a-dia, ou na linguagem dos mais jovens: há que curtir os prazeres imediatos. A geração dos nossos pais tinha como propósito amealhar um dinheirinho para prevenir acidentes e assegurar um futuro certo e seguro. Teremos nós hoje a mesma fé?
O ditado dizia: “Grão a grão enche a galinha o papo”. Hoje, temos vergonha do pequeno grão e temos tanta pressa e tanta ambição que já não há galinhas, só há pavões. Reina a expectativa do “depressa e muito”. Pagaremos mais tarde esta ilusão de grandeza e velocidade. A vida nos dirá que o depressa sai mal e o muito só é muito para muito poucos.
As campanhas contra a Aids ressentem-se deste desafio. Não se trata apenas de pedir aos jovens que façam contas e sacrifiquem a expressão imediata dos seus desejos. A questão é esta: em nome de quê o jovem abdica do prazer do momento? Antes havia um sujeito maior, uma razão redentora, na forma de uma causa religiosa, ou de um discurso político. Hoje essa razão de longo prazo está descolorida. Necessitamos de reescrever uma narrativa nova, de inventar um tempo que seja brilhante e sedutor. E que dê sentido às escolhas de longa duração, que dê valor à esperança e à moralidade enquanto investimentos a longo termo. Necessitamos de ter a certeza de que vale a pena esperar sem receio de que os abutres devorem, entretanto, o melhor pedaço da nossa alma.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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