[…]
Escolher o futuro como tema é enfrentar um universo de conflitos e
de ambiguidades. Porque o futuro apenas existe numa dimensão fluida,
quase líquida. Por vezes, como está ocorrendo agora neste país,
ele desponta como se fosse um chão material e concreto. Na maior
parte das vezes, porém, ele é frágil e nebuloso como uma linha de
horizonte que se desfaz quando nos tornamos mais próximos. No
conflito entre expectativa e realidade é comum o sentimento de
desapontamento que faz pensar que, no passado, o futuro já foi
melhor. Na realidade, no momento atual e global muitos de nós
deixamos simplesmente de querer saber do futuro. E parece recíproco:
o futuro também não quer saber de nós.
Estamos
tão entretidos em sobreviver que nos consumimos no presente
imediato. Para uma grande maioria, o porvir tornou-se um luxo. Fazer
planos a longo prazo é uma ousadia a que a grande maioria foi
perdendo direito. Fomos exilados não de um lugar. Fomos exilados da
atualidade. E por inerência, fomos expulsos do futuro.
Esta
é a condição não apenas de milhões de pessoas, mas de muitos
países do nosso continente e do mundo inteiro. O amanhã tornou-se
demasiado longe. Mais do que longínquo, tornou-se improvável. Mais
do que improvável, tornou-se impensável.
Esta
ausência de perspectiva histórica não pode ser atribuída apenas a
regimes e governos. O que alguns, maus políticos, fizeram foi
reafirmar algo que já existia antes: um profundo alheamento em
relação à nossa condição de temporários viajantes do Tempo. O
descrédito político gerou o cinismo com que hoje olhamos a gestão
do nosso quotidiano.
Todavia,
a dificuldade de ver o futuro é, no nosso caso, muito anterior à
desilusão política. Esse alheamento resulta de uma filosofia
própria do mundo rural africano, em que o Tempo é entendido como
uma entidade circular. Nesse universo apenas o presente é
credenciado. A ideia de um tempo redondo não é uma categoria
exclusivamente africana, mas de todas as sociedades que vivem sob o
domínio da lógica da oralidade. Foi a escrita que introduziu a
ideia de um tempo linear, fluido e irreversível como a corrente de
um rio. Nos casos de Angola e Moçambique, contudo, a lógica da
escrita é ainda um universo restrito. Politicamente hegemônico, mas
dominado do ponto de vista da representação que fazemos do mundo.
Para
a oralidade, só existe o que se traduz em presença. Só é real
aquele com quem podemos falar. Os próprios mortos não se convertem
em passado, porque eles estão disponíveis a, quando convocados, se
tornarem presentes. Em África, os mortos não morrem. Basta uma
evocação e eles emergem para o presente, que é o tempo vivo e o
tempo dos viventes.
Não
quero perder-me em meandros filosóficos. Mas grande parte dos
moçambicanos (e imagino dos angolanos) lida com categorias de tempo
bem diversas daquela que norteia uma empresa de seguros. Para essas
culturas, o futuro não só não tem nome como a sua nomeação é
interdita. Na maior parte das línguas moçambicanas há palavra para
dizer “amanhã” —
É
evidente que, no universo urbano, estes conceitos são reconstruídos
e o peso da oralidade vai-se tornando outro. Todavia, mudar de
conceitos sobre o tempo leva tempo. E quem fala de tempo fala da
espera e da sua irmã gêmea, a esperança.
Infelizmente
foi-se generalizando uma atitude de descrença. O acumular de crises
e o compensar dos crimes contra a ética convidam-nos a uma
desistência da alma. Todos os dias uma silenciosa mensagem nos
sugere o seguinte: o futuro não vale a pena. Há que viver o
dia-a-dia, ou na linguagem dos mais jovens: há que curtir os
prazeres imediatos. A geração dos nossos pais tinha como propósito
amealhar um dinheirinho para prevenir acidentes e assegurar um futuro
certo e seguro. Teremos nós hoje a mesma fé?
O
ditado dizia: “Grão a grão enche a galinha o papo”. Hoje, temos
vergonha do pequeno grão e temos tanta pressa e tanta ambição que
já não há galinhas, só há pavões. Reina a expectativa do
“depressa e muito”. Pagaremos mais tarde esta ilusão de grandeza
e velocidade. A vida nos dirá que o depressa sai mal e o muito só é
muito para muito poucos.
As
campanhas contra a Aids ressentem-se deste desafio. Não se trata
apenas de pedir aos jovens que façam contas e sacrifiquem a
expressão imediata dos seus desejos. A questão é esta: em nome de
quê o jovem abdica do prazer do momento? Antes havia um sujeito
maior, uma razão redentora, na forma de uma causa religiosa, ou de
um discurso político. Hoje essa razão de longo prazo está
descolorida. Necessitamos de reescrever uma narrativa nova, de
inventar um tempo que seja brilhante e sedutor. E que dê sentido às
escolhas de longa duração, que dê valor à esperança e à
moralidade enquanto investimentos a longo termo. Necessitamos de ter
a certeza de que vale a pena esperar sem receio de que os abutres
devorem, entretanto, o melhor pedaço da nossa alma.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
Nenhum comentário:
Postar um comentário