No
centro daquilo que desenvolviam aparece, com variações, um
mecanismo aparentemente muito simples: o intercessor propõe alguns
suportes escritos para pessoas que estão habitualmente distantes
deles e os lê em voz alta; depois, entre os participantes, surgem
histórias, ou algumas vezes uma discussão; ou ainda o silêncio. O
que acontece nesses encontros? Dois grupos que têm uma longa
experiência nesse tipo de mediação, cada um à sua maneira, dão
uma ideia mais aproximada.
A
Cor da Letra desenvolve desde 1998 projetos centrados na leitura e na
literatura em várias regiões do Brasil. Esse centro de estudos
trabalha com instituições que se dedicam a cuidar de crianças e
jovens em situação de risco, ONGs, escolas públicas e privadas,
hospitais, bibliotecas, centros sociais e culturais, em especial nos
bairros urbanos pobres e no interior. Forma pessoas muito diferentes
nessa arte das relações, da qual eu falava anteriormente, a fim de
que “a leitura de histórias seja incorporada na rotina das
instituições ou em diversos espaços da comunidade”, com a
esperança de que essas “ilhas de expressão, de transmissão e de
criação de cultura” se multipliquem. Afinal, qualquer pessoa,
segundo esse grupo, pode se transformar em um mediador de leitura se
for determinada, se dispuser de um pouco de tempo e de um vínculo
com uma instituição ou uma comunidade locais, para garantir uma
continuidade ao trabalho.
Quando
parcerias institucionais são possíveis, com hospitais pediátricos,
por exemplo, A Cor da Letra ensina ao pessoal (nesse caso, ao pessoal
da saúde, do médico-chefe às enfermeiras e aos encarregados da
limpeza) a entrar no universo das narrativas, a conhecer e respeitar
a diversidade das culturas, dos tempos, das escolhas, a ler um texto
em voz alta, exatamente como está escrito, e a acolher as palavras
ou respeitar o silêncio das crianças. Quando os serviços públicos
inexistem, a associação forma jovens ou moradores, para que
assegurem essa mediação de forma militante e possam, por sua vez,
iniciar outras pessoas nessa atividade.
Porém,
no Brasil, assim como em vários lugares, não é fácil transmitir o
gosto pela leitura aos adolescentes, especialmente quando eles
cresceram nos meios populares. Quando as animadoras de A Cor da Letra
chegaram nas favelas e começaram a tirar livros da mochila, muitos
jovens se decepcionaram ou ficaram desconfiados. Tais objetos eram
desprovidos de sentido; esses jovens só tinham conhecido a leitura
na escola, o que não lhes trazia boas lembranças: “A escola foi
uma experiência sem valor”, comenta Vai, “a leitura era
obrigatória, imposta, aprendi apenas a memorizar os textos, o ato de
ler não tinha nenhum sentido, eu só decifrava símbolos. Assim,
logo anestesiei a criatividade, a possibilidade e a capacidade de
descobrir. Durante vários anos, era como a Bela Adormecida, não
distinguia nada, não ouvia, nem dizia nada”.
Onde
habitualmente ninguém acredita na capacidade dos adolescentes, onde
a atitude usual com relação a eles é a desconfiança, as mulheres
que levam adiante A Cor da Letra tiveram confiança na criatividade,
na audácia e na energia deles. Modificando o olhar sobre eles, “nós
os mudamos de lugar”, diz Patrícia Pereira Leite. Como não havia
prova final e uma vez que eles foram tocados pelas palavras, ou pela
voz, ou pela energia dos adultos que vinham ler histórias e depois
lhes propunham juntarem-se a eles, dezenas de jovens se mostraram
abertos a receber uma formação.
A
partir daí, foi sugerido que falassem da infância, por exemplo
pensar em um objeto de que gostassem muito e em uma história
associada a ele. “Nós refletimos juntos, a partir de temas que
eles apresentam”, aponta Patrícia: "todo mundo tem histórias
para contar". Vemos que o repertório cultural a partir do qual
a associação trabalha não se constitui somente do que os
formadores trazem, mas igualmente do que cada um propõe. Desde a
idade mais tenra, todo menino, toda menina é considerado como
sujeito ativo na construção de seus conhecimentos e de sua cultura.
Os
adolescentes se perguntaram por que ter acesso aos livros era
importante, e debateram o assunto. Vídeos que incluem crianças com
livros ilustrados foram mostrados, analisados, comentados; elementos
teóricos foram fornecidos sobre o desenvolvimento da linguagem na
criança; estabeleceu-se a diferença entre contar e ler (o livro
garante a repetição da história, a estabilidade). Se questionaram
sobre o lugar que ocupavam, distinto daquele do professor ou de um
amigo — muitos deles estariam na posição de dar a outros o que
eles mesmos não puderam receber. As reuniões de formação também
recorreram ao mecanismo e aos suportes que acabariam usando: foi-lhes
proposto ler um livro ilustrado em voz alta e depois comentar essa
experiência. No começo, a maioria não ousava fazê-lo, com medo de
gaguejar, deformar as palavras, de serem ridicularizados. Ficaram
surpresos quando alguém os ouviu com atenção, ao constatarem que a
sua voz, sua palavra, tinha um valor, surpresos com a possibilidade
de serem ouvidos. Aos poucos, eles se familiarizaram e a inibição
que sentiam se atenuou.
Então,
eles vão ler para outros, geralmente para crianças menores, diante
da porta de suas casas. Foi-lhes demonstrada a necessidade de
observar e depois anotar o que surgia durante as sessões: as
crianças se exprimem mais do que antes, ou não?; estão mais à
vontade para falar delas mesmas?; a relação delas com os outros se
transforma?; o que muda para elas na escola?; etc. Tudo isso é
comentado e analisado durante as supervisões que ocorrem quando das
reuniões mensais.
Com
o passar dos meses, a própria possibilidade de expressão
linguística deles, oral e, às vezes, escrita, desenvolveu-se
significativamente, fato confirmado por algumas avaliações
realizadas por linguistas. Algumas dessas crianças retomaram os
estudos. Outras participaram de eventos em contextos que excedem e
muito o meio social a que pertencem e seu espaço de vida habitual,
como de alguns Encontros Nacionais de Adolescentes ou da inauguração
de uma biblioteca ligada ao Movimento dos Sem Terra. Também
visitaram museus localizados em outros bairros.
O
psicolinguista Evelio Cabrejo-Parra e eu encontramos alguns deles.
São mediadores em favelas, em casas para meninos em situação de
risco, em hospitais, ou no campo. Ficamos impressionados com a enorme
capacidade deles de se exprimir e falar de sua experiência de
maneira direta, engajada, e não a partir de um discurso informativo
sobre os supostos benefícios da leitura; pela acuidade de suas
observações, pela atenção e pelo respeito com que tratam aqueles
a quem seu trabalho de mediação se destina. Assim como ficamos
impressionados com a qualidade da atenção dos responsáveis pela
associação, que em nenhum momento intervinham no que diziam, não
substituíam as suas palavras.
É
verdade que duas são profissionais da escuta: Patrícia Pereira
Leite é psicanalista e Mareia Wada, psicóloga, ao passo que Cintia
Carvalho tem formação literária. Todas reconhecem, pelo seu
trabalho, que os rumos de um destino podem ser reorientados por meio
de uma intersubjetividade, uma disponibilidade psíquica, uma
atenção, e que isso, assim como a simbolização, é o cerne da
construção ou da reconstrução de si mesmo. Mas elas fazem uma
distinção bastante clara entre o trabalho clínico que realizam e
sua atividade no interior de A Cor da Letra. Conhecem o poder da
literatura por experiência e gosto pessoal e citam o crítico
Antonio Cândido:
“[...]
assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho
durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.
[...] Vista deste modo a literatura aparece claramente como
manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não
há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a
possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação.
[...] Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar
no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no
sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade
universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui
um direito”.
A
atuação delas é baseada na consideração da contribuição da
literatura para o desenvolvimento psíquico, com a convicção,
lastreada pela experiência e por observações, de que a arte da
narrativa, em particular, permite organizar a própria história e
transformá-la. Foi, no início, com René Diatkine, da Unidade
Noturna da Fundação Martine Lyon, integrada ao setor de Saúde
Mental do 13° Arrondissement de Paris, e da associação ACCES, que
Patrícia Pereira Leite se formou. Ali, ela aprendeu que um novo
desdobrar das possibilidades sempre é desejável, não importa quais
sejam os percalços da vida social ou psíquica do sujeito, se
sabemos ouvi-lo e mudar o olhar dirigido a ele; e entendeu que o
horror ao texto experimentado por certas crianças ou adolescentes,
para quem a escrita havia sido sinal de exclusão, é reversível
“sobretudo se não se reconstitui uma situação de avaliação
formal, se não se propõem questões destinadas a verificar se o
ouvinte entendeu bem o que se gostaria que ele entendesse”.
Alguns
dos jovens mediadores de A Cor da Letra lembram do reconhecimento que
conquistaram, particularmente junto aos moradores do lugar onde
vivem, como esta jovem: “Com esse trabalho, não sou mais uma
menina qualquer nessa comunidade, sou uma referência para as
crianças, quando passo na rua, todos me reconhecem”. Ou esta
outra: “Você sabe, as pessoas ouvem! Alguém prestou atenção em
mim!”.
Outros
falam do sentimento de responsabilidade, da importância do fato de
se sentirem participando de uma coisa mais vasta que eles próprios,
como este jovem: “Fui responsável por algo que não era apenas a
minha vida, algo que fazia com que saíssemos de nós mesmos”. Ou
Vai que agora trabalha na associação, depois de ter retomado os
estudos: “Ao trabalhar com jovens inseridos na mesma realidade em
que me encontrava anteriormente, eu sentia que tinha uma
responsabilidade muito grande: abrir os caminhos que tornam a
transgressão possível” — transgressão que consiste em deixar
as imposições sociais e se apropriar dos lugares e dos objetos que
não eram destinados a eles.
Eles
não farão isso a vida inteira; consideram a participação em A Cor
da Letra como um tempo, mas um tempo importante. E sempre existe a
ideia de multiplicação. Por exemplo, no projeto Mudando a História,
no qual 338 jovens se formaram em São Paulo, no Rio de Janeiro e em
duas outras cidades. Eles transmitiram, por sua vez, o que sabiam a
2.459 novos mediadores e, ao final, cerca de 30 mil crianças e
adolescentes foram beneficiados. “Abrimos clareiras, outros se
apoderam desses objetos e os carregam para mais longe”, diz
Patrícia.
Michèle
Petit, in A arte de ler: ou como resistir à adversidade
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