quarta-feira, 6 de maio de 2020

Um mecanismo aparentemente muito simples

No centro daquilo que desenvolviam aparece, com variações, um mecanismo aparentemente muito simples: o intercessor propõe alguns suportes escritos para pessoas que estão habitualmente distantes deles e os lê em voz alta; depois, entre os participantes, surgem histórias, ou algumas vezes uma discussão; ou ainda o silêncio. O que acontece nesses encontros? Dois grupos que têm uma longa experiência nesse tipo de mediação, cada um à sua maneira, dão uma ideia mais aproximada.
A Cor da Letra desenvolve desde 1998 projetos centrados na leitura e na literatura em várias regiões do Brasil. Esse centro de estudos trabalha com instituições que se dedicam a cuidar de crianças e jovens em situação de risco, ONGs, escolas públicas e privadas, hospitais, bibliotecas, centros sociais e culturais, em especial nos bairros urbanos pobres e no interior. Forma pessoas muito diferentes nessa arte das relações, da qual eu falava anteriormente, a fim de que “a leitura de histórias seja incorporada na rotina das instituições ou em diversos espaços da comunidade”, com a esperança de que essas “ilhas de expressão, de transmissão e de criação de cultura” se multipliquem. Afinal, qualquer pessoa, segundo esse grupo, pode se transformar em um mediador de leitura se for determinada, se dispuser de um pouco de tempo e de um vínculo com uma instituição ou uma comunidade locais, para garantir uma continuidade ao trabalho.
Quando parcerias institucionais são possíveis, com hospitais pediátricos, por exemplo, A Cor da Letra ensina ao pessoal (nesse caso, ao pessoal da saúde, do médico-chefe às enfermeiras e aos encarregados da limpeza) a entrar no universo das narrativas, a conhecer e respeitar a diversidade das culturas, dos tempos, das escolhas, a ler um texto em voz alta, exatamente como está escrito, e a acolher as palavras ou respeitar o silêncio das crianças. Quando os serviços públicos inexistem, a associação forma jovens ou moradores, para que assegurem essa mediação de forma militante e possam, por sua vez, iniciar outras pessoas nessa atividade.
Porém, no Brasil, assim como em vários lugares, não é fácil transmitir o gosto pela leitura aos adolescentes, especialmente quando eles cresceram nos meios populares. Quando as animadoras de A Cor da Letra chegaram nas favelas e começaram a tirar livros da mochila, muitos jovens se decepcionaram ou ficaram desconfiados. Tais objetos eram desprovidos de sentido; esses jovens só tinham conhecido a leitura na escola, o que não lhes trazia boas lembranças: “A escola foi uma experiência sem valor”, comenta Vai, “a leitura era obrigatória, imposta, aprendi apenas a memorizar os textos, o ato de ler não tinha nenhum sentido, eu só decifrava símbolos. Assim, logo anestesiei a criatividade, a possibilidade e a capacidade de descobrir. Durante vários anos, era como a Bela Adormecida, não distinguia nada, não ouvia, nem dizia nada”.
Onde habitualmente ninguém acredita na capacidade dos adolescentes, onde a atitude usual com relação a eles é a desconfiança, as mulheres que levam adiante A Cor da Letra tiveram confiança na criatividade, na audácia e na energia deles. Modificando o olhar sobre eles, “nós os mudamos de lugar”, diz Patrícia Pereira Leite. Como não havia prova final e uma vez que eles foram tocados pelas palavras, ou pela voz, ou pela energia dos adultos que vinham ler histórias e depois lhes propunham juntarem-se a eles, dezenas de jovens se mostraram abertos a receber uma formação.
A partir daí, foi sugerido que falassem da infância, por exemplo pensar em um objeto de que gostassem muito e em uma história associada a ele. “Nós refletimos juntos, a partir de temas que eles apresentam”, aponta Patrícia: "todo mundo tem histórias para contar". Vemos que o repertório cultural a partir do qual a associação trabalha não se constitui somente do que os formadores trazem, mas igualmente do que cada um propõe. Desde a idade mais tenra, todo menino, toda menina é considerado como sujeito ativo na construção de seus conhecimentos e de sua cultura.
Os adolescentes se perguntaram por que ter acesso aos livros era importante, e debateram o assunto. Vídeos que incluem crianças com livros ilustrados foram mostrados, analisados, comentados; elementos teóricos foram fornecidos sobre o desenvolvimento da linguagem na criança; estabeleceu-se a diferença entre contar e ler (o livro garante a repetição da história, a estabilidade). Se questionaram sobre o lugar que ocupavam, distinto daquele do professor ou de um amigo — muitos deles estariam na posição de dar a outros o que eles mesmos não puderam receber. As reuniões de formação também recorreram ao mecanismo e aos suportes que acabariam usando: foi-lhes proposto ler um livro ilustrado em voz alta e depois comentar essa experiência. No começo, a maioria não ousava fazê-lo, com medo de gaguejar, deformar as palavras, de serem ridicularizados. Ficaram surpresos quando alguém os ouviu com atenção, ao constatarem que a sua voz, sua palavra, tinha um valor, surpresos com a possibilidade de serem ouvidos. Aos poucos, eles se familiarizaram e a inibição que sentiam se atenuou.
Então, eles vão ler para outros, geralmente para crianças menores, diante da porta de suas casas. Foi-lhes demonstrada a necessidade de observar e depois anotar o que surgia durante as sessões: as crianças se exprimem mais do que antes, ou não?; estão mais à vontade para falar delas mesmas?; a relação delas com os outros se transforma?; o que muda para elas na escola?; etc. Tudo isso é comentado e analisado durante as supervisões que ocorrem quando das reuniões mensais.
Com o passar dos meses, a própria possibilidade de expressão linguística deles, oral e, às vezes, escrita, desenvolveu-se significativamente, fato confirmado por algumas avaliações realizadas por linguistas. Algumas dessas crianças retomaram os estudos. Outras participaram de eventos em contextos que excedem e muito o meio social a que pertencem e seu espaço de vida habitual, como de alguns Encontros Nacionais de Adolescentes ou da inauguração de uma biblioteca ligada ao Movimento dos Sem Terra. Também visitaram museus localizados em outros bairros.
O psicolinguista Evelio Cabrejo-Parra e eu encontramos alguns deles. São mediadores em favelas, em casas para meninos em situação de risco, em hospitais, ou no campo. Ficamos impressionados com a enorme capacidade deles de se exprimir e falar de sua experiência de maneira direta, engajada, e não a partir de um discurso informativo sobre os supostos benefícios da leitura; pela acuidade de suas observações, pela atenção e pelo respeito com que tratam aqueles a quem seu trabalho de mediação se destina. Assim como ficamos impressionados com a qualidade da atenção dos responsáveis pela associação, que em nenhum momento intervinham no que diziam, não substituíam as suas palavras.
É verdade que duas são profissionais da escuta: Patrícia Pereira Leite é psicanalista e Mareia Wada, psicóloga, ao passo que Cintia Carvalho tem formação literária. Todas reconhecem, pelo seu trabalho, que os rumos de um destino podem ser reorientados por meio de uma intersubjetividade, uma disponibilidade psíquica, uma atenção, e que isso, assim como a simbolização, é o cerne da construção ou da reconstrução de si mesmo. Mas elas fazem uma distinção bastante clara entre o trabalho clínico que realizam e sua atividade no interior de A Cor da Letra. Conhecem o poder da literatura por experiência e gosto pessoal e citam o crítico Antonio Cândido:

[...] assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. [...] Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. [...] Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”.

A atuação delas é baseada na consideração da contribuição da literatura para o desenvolvimento psíquico, com a convicção, lastreada pela experiência e por observações, de que a arte da narrativa, em particular, permite organizar a própria história e transformá-la. Foi, no início, com René Diatkine, da Unidade Noturna da Fundação Martine Lyon, integrada ao setor de Saúde Mental do 13° Arrondissement de Paris, e da associação ACCES, que Patrícia Pereira Leite se formou. Ali, ela aprendeu que um novo desdobrar das possibilidades sempre é desejável, não importa quais sejam os percalços da vida social ou psíquica do sujeito, se sabemos ouvi-lo e mudar o olhar dirigido a ele; e entendeu que o horror ao texto experimentado por certas crianças ou adolescentes, para quem a escrita havia sido sinal de exclusão, é reversível “sobretudo se não se reconstitui uma situação de avaliação formal, se não se propõem questões destinadas a verificar se o ouvinte entendeu bem o que se gostaria que ele entendesse”.
Alguns dos jovens mediadores de A Cor da Letra lembram do reconhecimento que conquistaram, particularmente junto aos moradores do lugar onde vivem, como esta jovem: “Com esse trabalho, não sou mais uma menina qualquer nessa comunidade, sou uma referência para as crianças, quando passo na rua, todos me reconhecem”. Ou esta outra: “Você sabe, as pessoas ouvem! Alguém prestou atenção em mim!”.
Outros falam do sentimento de responsabilidade, da importância do fato de se sentirem participando de uma coisa mais vasta que eles próprios, como este jovem: “Fui responsável por algo que não era apenas a minha vida, algo que fazia com que saíssemos de nós mesmos”. Ou Vai que agora trabalha na associação, depois de ter retomado os estudos: “Ao trabalhar com jovens inseridos na mesma realidade em que me encontrava anteriormente, eu sentia que tinha uma responsabilidade muito grande: abrir os caminhos que tornam a transgressão possível” — transgressão que consiste em deixar as imposições sociais e se apropriar dos lugares e dos objetos que não eram destinados a eles.
Eles não farão isso a vida inteira; consideram a participação em A Cor da Letra como um tempo, mas um tempo importante. E sempre existe a ideia de multiplicação. Por exemplo, no projeto Mudando a História, no qual 338 jovens se formaram em São Paulo, no Rio de Janeiro e em duas outras cidades. Eles transmitiram, por sua vez, o que sabiam a 2.459 novos mediadores e, ao final, cerca de 30 mil crianças e adolescentes foram beneficiados. “Abrimos clareiras, outros se apoderam desses objetos e os carregam para mais longe”, diz Patrícia.
Michèle Petit, in A arte de ler: ou como resistir à adversidade

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